Fernando Pessoa

"Cancioneiro"

Quando eu me sento à janela

Pelos vidros que a neve embaça

Vejo a doce imagem dela

Quando passa... passa.... passa...

Nesta escuridão tristonha

Duma travessa sombria

Quando aparece risonha

Brilha mais que a luz do dia.

Quando está noite ceifada

E contemplo imagem sua

Que rompe a treva fechada

Como um reflexo da lua,

Penso ver o seu semblante

Com funda melancolia

Que o lábio embriagante

Não conheceu a alegria

E vejo curvado à dor

Todo o seu primeiro encanto

Comunica-me o palor

As faces, aos olhos pranto.

Todos os dias passava

Por aquela estreita rua

E o palor que me aterrava

Cada vez mais se acentua

Um dia já não passou

O outro também já não

A sua ausência cavou

Ferida no meu coração

Na manhã do outro dia

Com o olhar amortecido

Fúnebre cortejo via

E o coração dolorido

Lançou-me em pesar profundo

Lançou-me a mágoa seu véu:

Menos um ser neste mundo

E mais um anjo no céu.

Depois o carro funério

Esse carro de amargura

Entrou lá no cemitério

Eis ali a sepultura:

Epitáfio

Cristãos! Aqui jaz no pó da sepultura

Uma jovem filha da melancolia

O seu viver foi repleto d'amargura

Seu rir foi pranto, dor sua alegria.

Quando eu me sento à janela

Pelos vidros que a neve embaça

Julgo ver imagem dela

Que já não passa... não passa.

1902

I

Soam vãos, dolorido epicurista,

Os versos teus, que a minha dor despreza;

Já tive a alma sem descrença presa

Desse teu sonho, que perturba a vista.

Da Perfeição segui em vã conquista,

Mas vi depressa, já sem a alma acesa,

Que a própria ideia em nós dessa beleza

Um infinito de nós mesmos dista.

Nem à nossa alma definir podemos

A Perfeição em cuja estrada a vida,

Achando-a intérmina, a chorar perdemos.

O mar tem fim, o céu talvez o tenha,

Mas não a ânsia de Coisa indefinida

Que o ser indefinida faz tamanha.

II

Nem defini-la, nem achá-la, a ela -

A Beleza. No mundo não existe.

Ai de quem com a alma inda mais triste

Nos seres transitórios quer colhê-la!

Acanhe-se a alma porque não conquiste

Mais que o banal de cada coisa bela,

Ou saiba que ao ardor de querer havê-la

À Perfeição - só a desgraça assiste.

Só quem da vida bebeu todo o vinho,

Dum tragoou não, mas sendo até o fundo,

Sabe(mas sem remédio) o bom caminho;

Conhece o tédio extremo da desgraça,

Que olha estupidamente o nauseabundo

Cristal inútil da vazia taça.

III

Só quem puder obter a estupidez

Ou a loucura pode ser feliz.

Buscar, querer, amar... tudo isto diz

Perder, chorar, sofrer, vez após vez.

A estupidez achou sempre o que quis

Do círculo banal - da sua avidez;

Nunca aos loucos o engano se desfez

Com quem um falso mundo seu condiz.

Há dois males: verdade e aspiração,

E há uma forma só de os saber males:

É conhecê-los bem, saber que são

Um o horror real, o outro o vazio -

Horror não menos - dois como que vales

Duma montanha que ninguém subiu.

IV

Leva me longe, meu suspiro fundo,

Além do que deseja e que começa,

Lá muito longe, onde o viver se esqueça

Das formas metafísicas do mundo.

Aí que o meu sentir vago e profundo

O seu lugar exterior conheça,

Aí durma em fim, aí enfim faleça

O cintilar do espírito fecundo.

Aí... mas de que serve imaginar

Regiões onde o sonho é verdadeiro

Ou terras para o ser atormentar?

É elevar demais a aspiração,

E, falhado esse sonho derradeiro,

Encontrar mais vazio o coração.

V

Braços cruzados, sem pensar nem crer,

Fiquemos pois sem mágoas nem desejos.

Deixemos beijos, pois o que são beijos?

A vida é só o esperar morrer.

Longe da dor e longe do prazer,

Conheçamos no sono os benfazejos

Poderes únicos; sem urzes, brejos,

A sua estrada sabe apetecer.

Coroado de papoilas e trazendo

Artes porque com sono tira sonhos,

Venha Morfeu, que as almas envolvendo,

Faça a felicidade ao mundo vir

Num nada onde sentimo-nos risonhos

Só de sentirmos nada já sentir.

VI

O sono - Oh, ilusão! - o sono? quem

Logrará esse vácuo ao qual aspira

A alma que, de aspirar em vão, delira,

E já nem força para querer tem?

Que sono apetecemos? O d'alguém

Adormecido na feliz mentira

Da sonolência vaga que nos tira

Todo o sentir no qual a dor nos vem?

Ilusão tudo! Querer um sono eterno,

Um descanso, uma paz, não é senão

O último anseio desesperado e vão.

Perdido, resta o derradeiro inferno

Do tédio intérmino, esse de já não

Nem aspirar a ter aspiração.

1909

Suavemente grande avança

Cheia de sol a onda do mar;

Pausadamente se balança,

E desce como a descansar.

Tão lenta e longa que parece

De uma criança de Titã

O glauco seio que adormece,

Arfando à brisa da manhã.

Parece ser um ente apenas

Este correr da onda do mar

Como uma cobra que em serenas

Dobras se alonguea colear.

Unido e vasto e interminável

No são sossego azul do sol,

Arfa com um mover-se estável

O oceano ébrio de arrebol.

E a minha sensação é nula,

Quer de prazer, quer de pesar...

Ébria de alheia a mim ondula

Na onda lúcida do mar.

1909

Há um país imenso mais real

Do que a vida que o mundo mostra ter

Mais do que a Natureza natural

À verdade tremendo de viver.

Sob um céu uno e plácido e normal

Onde nada se mostra haver ou ser

Onde nem vento geme, nem fatal

A ideia de uma nuvem se faz crer,

Jaz - uma terra não - não um solo

Mas estranha, gelando em desconsolo

A alma que vê esse pais sem véu,

Hirtamente silente nos espaços

Uma floresta de escarnados braços

Inutilmente erguidos para o céu.

1910

Tão abstrata é a ideia do teu ser

Que me vem de te olhar, que, ao entreter

Os meus olhos nos teus, perco-os de vista,

E nada fica em meu olhar, e dista

Teu corpo do meu ver tão longemente,

E a ideia do teu ser fica tão rente

Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me

Sabendo que tu és, que, só por ter-me

Consciente de ti, nem a mim sinto.

E assim, neste ignorar-me a ver-te, minto

A ilusão da sensação, e sonho,

Não te vendo, nem vendo, nem sabendo

Que te vejo, ou sequer que sou, risonho

Do interior crepúsculo tristonho

Em que sinto que sonho o que me sinto sendo.

1911

Ó naus felizes, que do mar vago

Volveis enfim ao silêncio do porto

Depois de tanto noturno mal -

Meu coração é um morto lago,

E à margem triste do lago morto

Sonha um castelo medieval...

E nesse, onde sonha, castelo triste,

Nem sabe saber a, de mãos formosas

Sem gosto ou cor, triste castelã

Que um porto além rumoroso existe,

Donde as naus negras e silenciosas

Se partem quando é no mar amanhã...

Nem sequer sabe que há o, onde sonha,

Castelo triste... Seu espírito monge

Para nada externo é perto e real...

E enquanto ela assim se esquece, tristonha,

Regressam, velas no mar ao longe,

As naus ao porto medieval...

1910(?)

Lenta e lenta a hora

Por mim dentro soa

(Alma que se ignora!)

Lenta e lenta e lenta,

Lenta e sonolenta

A lua se escoa...

Tudo tão inútil!

Tão como que doente

Tão divinamente

Fútil - ah, tão fútil

Sonho que se sente

De si próprio ausente...

Naufrágio ante o ocaso

Hora de piedade...

Tudo é névoa e acaso

Hora oca e perdida,

Cinza de vivida

(Que Poente me invade?)

Por que lenta ante olha

Lenta em seu som,

Que sintoignorar?

Por que é que me gela

Meu próprio pensar

Em sonhar amar?...

Que morta esta hora!

Que alma minha chora

Tão perdida e alheia?...

Mar batendo na areia,

Para quê? para quê?

Pra ser o que se vê

Na alva areia batendo?

Só isto? Não há

Lâmpada de haver -

- Um - sentido ardendo

Dentro da hora - já

Espuma de morrer?

1913

Pauis que roçarem ânsias pela minha alma em ouro...

Dobre longínquo de Outros Sinos... Empalidece o louro

Trigo na cinza do poente... Corre um frio carnal por minha alma...

Tão sempre a mesma, a Hora!... Balouçar de cimos de palma!...

Silêncio da parte inferior das folhas, outono delgado

Dum canto de vaga ave... Azul esquecidos em estagnado...

Ó que mudo grito de ânsia põe garras na Hora!...

Que pasmo de mim anseia por outra coisa que o que chora?...

Estendo as mãos para Além, mas no estender delas já vejo

Que não é aquilo que quero aquilo que desejo...

Címbalos de imperfeição... Ó tão antiguidade

A hora expulsa de si-Tempo!... Onda de recuo que invade

O meu abandonar-me a mim-próprio até desfalecer

E recordar tanto o eu presente que me sinto esquecer...

Fluido de auréola transparente de Foi, oco de ter-se...

O mistério sabe-me a eu ser outro... Luar sobre o não conter-se...

A sentinela é hirta, a lança que finca no chão

É mais alta que ela... Pra que é tudo isto... Dia chão...

Trepadeiras de despropósito lambendo de Hora os aléns!

Horizontes fechando os olhos ao espaço em que são elos de erro!

Fanfarras de ópios de silêncios futuros!... Longes trens!...

Portões vistos longe, através das árvores, tão de ferro!...

1913

O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas...

Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso...

E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas

Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso...

Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte...

O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto...

Minha ideia de ti é um cadáver que o mar traz à praia..., e entanto

Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte...

Abre todas as portas e que o vento varra a ideia

Que temos de que um fumo perfuma de ócio os salões...

Minha alma é uma caverna enchida pela maré cheia,

E a minha ideia de te sonhar uma caravana de histriões...

Chove ouro baço, mas não no lá-fora... É em mim... Sou a Hora,

E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela...

Na minhaatenção há uma viúva pobre que nunca chora...

No meu céu interior nunca houve uma única estrela...

Hoje o céu é pesado como a ideia de nunca chegar a um porto...

A chuva miúda é vazia... a Hora sabe a ter sido...

Não haver qualquer coisa como leitos para as naus!... Absorto

Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido...

Todas as minhas horas são feitas de jaspe negro,

Minhas ânsias todas talhadas num mármore que não há,

Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro,

E a minha bondade inversa não é nem boa nem má...

Os feixes dos lictores abriram-se à beira dos caminhos...

Os pendões das vitórias medievais nem chegaram às cruzadas...

Puseram in-fólios úteis entre as pedras das barricadas...

E a erva cresceu nas vias férreas com viços daninhos...

Ah, como esta hora é velha!... E todas as naus partiram!

Na praia só um cabo morto e uns restos de vela falam

De Longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram

Aquela angústia de sonhar mais que até para si calam...

O palácio está em ruínas... Dói ver no parque o abandono

Da fonte sem repuxo... Ninguém ergue o olhar da estrada

E sente saudades de si ante aquele lugar-Outono...

Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada...

A doida partiu todos os candelabros glabros,

Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas...

E a minha alma é aquela luz que não mais haverá nos candelabros...

E que querem ao lado aziago minhas ânsias, brisas fortuitas?...

Porque me aflijo e me enfermo?... Deitam-se nuas ao luar

Todas as ninfas... Veio o sol e já tinham partido...

O teu silêncio que me embala é a ideia de naufragar,

E a ideia de a tua voz soar a lira dum Apolo fingido...

Já não há caudas de pavões todas olhos nos jardins de outrora...

As próprias sombras estão mais tristes... Ainda

Há rastos de vestes de aias(parece) no chão, e ainda chora

Um como que eco de passos pela alameda que eis finda...

Todos os ocasos fundiram-se na minha alma...

As relvas de todos os prados foram frescas sob meus pés frios...

Secou em teu olhar a ideia de te julgares calma,

E eu ver isso em ti é um porto sem navios...

Ergueram-se a um tempo todos os remos... Pelo ouro das searas

Passou uma saudade de não serem o mar.. Em frente

Ao meu trono de alheamento há gestos com pedras raras...

Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente...Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao sol!

Todas as princesas sentiram o seio oprimido...

Da última janela do castelo só um girassol

Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas no nosso sentido...

Sermos, e não sermos mais!... Ó leões nascidos na jaula!...

Repique de sinos para além, no Outro Vale... Perto?...

Arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula...

Porque não há de ser o Norte o Sul?... O que está descoberto?...

E eu deliro... De repente pauso no que penso... Fito-te

E o teu silêncio é uma cegueira minha... Fito-te e sonho...

Há coisas rubras e cobras no modo como medito-te,

E a tua ideia sabe à lembrança de um sabor de medonho...

Para que não ter por ti desprezo? Porque não perdê-lo?...

Ah, deixa que eu te ignore... O teu silêncio é um leque -

Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo,

Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque...

Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos os peitos...

Murcharam mais flores do que as que havia no jardim...

O meu amar-te é uma catedral de silêncios eleitos,

E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim...

Alguém vai entrar pela porta... Sente-se o ar sorrir...

Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de virgens que tecem...

Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que há de vir,

O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem...

É preciso destruir o propósito de todas as pontes,

Vestir de alheamento as paisagens de todas as terras,

Endireitar à força a curva dos horizontes,

E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras...

Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!...

Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã - como nos desalegra!...

Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem

O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...

Suave. como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce...

Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito...

A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece,

E o meu saber-te a sorrir uma flor murcha a meu peito...

Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!...

Ah, se fôssemos as duas cores de uma bandeira de glória!...

Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia baptismal,

Pendão de vencidos tendo escrito ao centro este lema - Vitória!

O que é que me tortura?... Se até a tuaface calma

Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos...

Não sei... Eu sou um doido que estranha a sua própria alma...

Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos...

1913

Peguei no meu coração

E pu-lo na minha mão,

Olhei-o como quem olha

Grãos de areia ou uma folha.

Olhei-o pávido e absorto

Como quem sabe estar morto;

Com a alma só comovida

Do sonho e pouco da vida.

1913

I - Abismo

Olho o Tejo, e de tal arte

Que me esquece olhar olhando,

E súbito isto me bate

De encontro ao devaneando -

O que é ser-rio, e correr?

O que é está-lo eu a ver?

Sinto de repente pouco,

Vácuo, o momento, o lugar. Tudo de repente é oco -

Mesmo o meu estar a pensar.

Tudo - eu e o mundo em redor -

Fica mais que exterior.

Perde tudo o ser, ficar,

E do pensar se me some.

Fico sem poder ligar

Ser, ideia, alma de nome

A mim, à terra e aos céus...

E súbito encontro Deus.

II - Passou

Passou, fora de Quando,

De Porquê, e de Passando...,

Turbilhão de Ignorado,

Sem ter turbilhonado...,

Vasto por fora do Vasto

Sem ser, que a si se assombra...,

O universo é o seu rasto...

Deus é a sua sombra.

III - A voz de Deus

Brilha uma voz na noite...

De dentro de Fora ouvi-a...

Oh Universo, eu sou-te...

Oh, o horror da alegria

Deste pavor, do archote

Se apagar, que me guia!

Cinzas de ideia e de nome

Em mim, e a voz: Oh mundo,

Sermente em ti eu sou-me...

Mero eco de mim, me inundo

De ondas de negro lume

Em que para Deus me afundo.

IV - A queda

Da minha ideia do mundo

Caí...

Vácuo além de profundo,

Sem ter Eu nem Ali...

Vácuo sem si-próprio, caos

De ser pensado como ser...

Escada absoluta sem degraus...

Visão que se não pode ver

Além-Deus! Além-Deus! Negra calma...

Clarão de Desconhecido...

Tudo tem outro sentido, ó alma,

Mesmo o ter-um-sentido...

V - Braço sem corpo brandindo um gládio

Entre a árvore e o vê-la

Onde está o sonho?

Que arco da ponte mais vela

Deus?... E eu fico tristonho

Por não saber se a curva da ponte

É a curva do horizonte...

Entre o que vive e a vida

Para que lado corre o rio?

Árvore de folhas vestida -

Entre isso e Árvore há fio?

Pombas voando - o pombal

Está-lhes sempre à direita, ou é real?

Deus é um grande Intervalo,

Mas entre quê e quê?...

Entre o que digo e o que calo

Existo? Quem é queme vê?

Erro-me... E o pombal elevado

Está em torno na pomba, ou de lado?

1913(?)

I

Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito

E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios

Que largam do cais arrastando nas águas por sombra

Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...

O porto que sonho é sombrio e pálido

E esta paisagem é cheia de sol deste lado...

Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio

E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...

Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...

O vulto do cais é a estrada nítida e calma

Que se levanta e se ergue como um muro,

E os navios passam por dentro dos troncos das árvores

Com uma horizontalidade vertical,

E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...

Não sei quem me sonho...

Súbito toda a água do mar do porto é transparente

E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,

Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele porto,

E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa

Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem

E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,

E passa para o outro lado da minha alma...

II

Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia,

E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça...

Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso,

E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvido por dentro...

O esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes

Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar...

Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça

E sente-se chiar a água no facto de haver coro...

A missa é um automóvel que passa

Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste...

Súbito vento sacode em esplendor maior

A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo

Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe

Com o som de rodas de automóvel...

E apagam-se as luzes da igreja

Na chuva que cessa...

III

A Grande Esfinge do Egito sonha por este papel dentro...

Escrevo - e ela aparece-me através da minha mão transparente

E ao canto do papel erguem-se as pirâmides...

Escrevo - perturbo-me de ver o bico daminha pena

Ser o perfil do rei Queóps...

De repente paro...

Escureceu tudo... Caio por um abismo feito de tempo...

Estou soterrado sob as pirâmides a escrever versos à luz clara deste candeeiro

E todo o Egito me esmaga de alto através dos traços que faço com a pena...

Ouço a Esfinge rir por dentro

O som da minha pena a correr no papel...

Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme,

Varre tudo para o canto do teto que fica por detrás de mim,

E sobre o papel onde escrevo, entre ele e a pena que escreve

Jaz o cadáver do rei Queóps, olhando-me com olhos muito abertos,

E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo

E uma alegria de barcos embandeirados erra

Numa diagonal difusa

Entre mim e o que eu penso...

Funerais do rei Queóps em ouro velho e Mim!...

IV

Que pandeiretas o silêncio deste quarto!...

As paredes estão na Andaluzia...

Há danças sensuais no brilho fixo da luz...

De repente todo o espaço para....

Para, escorrega, desembrulha-se...,

E num canto do teto, muito mais longe do que ele está,

Abrem mãos brancas janelas secretas

E há ramos de violetas caindo

De haver uma noite de Primavera lá fora

Sobre o eu estar de olhos fechados...

V

Lá fora vai um redemoinho de sol os cavalos do carrossel...

Árvores, pedras, montes, bailam parados dentro de mim...

Noite absoluta na feira iluminada, luar no dia de sol lá fora,

E as luzes todas da feira fazem ruído dos muros do quintal...

Ranchos de raparigas de bilha à cabeça

Que passam lá fora, cheias de estar sob o sol,

Cruzam-se com grandes grupos peganhentos de gente que anda na feira,

Gente toda misturada com as luzes das barracas com a noite e com o luar,

E os dois grupos encontram-se e penetram-se

Até formarem só um que é os dois...

A feira e as luzes da feira e a gente que anda na feira,

E a noite que pega na feira e a levanta ao ar,

Andam por cima das copas das árvores cheias de sol,

Andam visivelmente por baixo dos penedos que luzem ao sol,

Aparecem do outro lado das bilhas que as raparigas levam à cabeça,

E toda esta paisagem de Primavera é a lua sobre a feira,

E toda a feira com ruídos e luzes é o chão deste dia de sol...

De repente alguém sacode esta hora dupla como numa peneira

E, misturado, o pó das duas realidades cai

Sobre as minhas mãos cheias de desenhos de portos

Com grandes naus que se vão e não pensam em voltar...

Pó de oirobranco e negro sobre os meus dedos...

As minhas mãos são os passos daquela rapariga que abandona a feira,

Sozinha e contente como o dia de hoje...

VI

O maestro sacode a batuta,

E lânguida e triste a música rompe...

Lembra-me a minha infância, aquele dia

Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal

Atirando-lhe com uma bola que tinha dum lado

O deslizar dum cão verde, e do outro lado

Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo,

Prossegue a música, e eis na minha infância

De repente entre mim e o maestro, muro branco,

Vai e vem a bola, ora um cão verde,

Ora um cavalo azul com um jockey amarelo...

Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância

Está em todos os lugares, e a bola vem a tocar música,

Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal

Vestida de cão verde tornando-se jockey amarelo...

(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...)

Atiro-a de encontro à minha infância e ela

Atravessa o teatro todo que está aos meus pés

A brincar com um jockey amarelo e um cão verde

E um cavalo azul que aparece por cima do muro

Do meu quintal... E a música atira com bolas

À minha infância... E o muro do quintal é feito de gestos

De batuta e rotações confusas de cães verdes

E cavalos azuis e jockeys amarelos...,

Todo o teatro é um muro branco de música

Por onde um cão verde corre atrás da minha saudade

Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo...

E dum lado para o outro, da direita para a esquerda,

Donde há árvores e entre os ramos ao pé da copa

Com orquestras a tocar música,

Para onde há filas de bolas na loja onde a comprei

E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância...

E a música cessa como um muro que desaba,

A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos,

E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se preto,

Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro,

E curva-se sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça,

Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo...

1914(?)

As tuas mãos terminam em segredo.

Os teus olhos são negros e macios

Cristo na cruz os teus seios(?) esguios

E o teu perfil princesas no degredo...

Entre buxos e ao pé de bancos frios

Nas entrevistas alamedas, quedo

O vento põe seu arrastado medo

Saudoso a longes velas de navios.

Mas quando o marsubir na praia e for

Arrasar os castelos que na areia

As crianças deixaram, meu amor,

Será o haver cais num mar distante...

Pobre do rei pai das princesas feias

No seu castelo à rosa do Levante!

1914

Elfos ou gnomos tocam?...

Roçam nos pinheirais

Sombras e bafos leves

De ritmos musicais...

Ondulam como em voltas

De estradas não sei onde,

Ou como alguém que entre árvores

Ora se mostra ou esconde...

Forma longínqua e incerta

Do que eu nunca terei...

Mal ouço e quase choro...

Porque choro não sei...

Tão ténue melodia

Que mal sei se ela existe

Ou se é só o crepúsculo,

Os pinhais e eu estar triste...

Mas cessa, como uma brisa,

Esquece a forma aos seus ais,

E agora não há mais música

Do que a dos pinheirais...

1914

Serena voz imperfeita, eleita

Para falar aos deuses mortos -

A janela que falta ao teu palácio deita

Para o Porto todos os portos.

Faísca da ideia de uma voz soando

Lírios nas mãos das princesas sonhadas

Eu sou a maré de pensar-te, orlando

A Enseada todas as enseadas.

Brumas marinhas esquinas de sonho...

Janelas dando para Tédio os charcos

E eu fito o meu Fim que me olha, tristonho,

Do convés do Barco todos os barcos...

1914

Vive o momento com saudade dele

Já ao vivê-lo...

Barcas vazias, sempre nos impele

Como a um solto cabelo

Um vento para longe, e não sabemos,

Ao viver, que sentimos ou queremos...

Demo-nos pois a consciência disto

Como de um lago

Posto em paisagens de torpor mortiço

Sob um céu ermo e vago,

Que a nossa consciência de nós seja

Uma coisa que nada já deseja...

Assim idênticos à hora toda

Em seu pleno labor,

Nossa vida será nossa anteboda:

Não nós, mas uma cor,

Um perfume, um meneio de arvoredo,

E a morte não virá nem tarde ou cedo...

Porque o que importa é que já nada importe...

Nada nos vale

Que se debruce sobre nós a Sorte,

Ou, tênue e longe, cale

Seus gestos... Tudo é o mesmo... Eis o momento...

Sejamo-lo... Pra que o pensamento?...

1914

Como a noite é longa!

Toda a noite é assim...

Senta-te, ama, perto

Do leito onde esperto.

Vem pra o pé de mim...

Amei tanta coisa...

Hoje nada existe.

Aqui ao pé da cama

Canta-me, minha ama,

Uma canção triste.

Era uma princesa

Que amou... Já não sei...

Como estou esquecido!

Canta-me ao ouvido

E adormecerei...

Que é feito de tudo?

Que fiz eu de mim?

Deixa-me dormir,

Dormir a sorrir

E seja isto o fim.

1914

Bate a luz no cimo

Da montanha, vê...

Sem querer, eu cismo

Mas não sei emquê...

Não sei que perdi

Ou que não achei...

Vida que vivi,

Que mal eu a amei!...

Hoje quero tanto

Que o não posso ter.

De manhã há o pranto

E ao anoitecer.

Tomara eu ter jeito

Para ser feliz...

Como o mundo é estreito,

E o pouco que eu quis!

Vai morrendo a luz

No alto da montanha...

Como um rio a flux

A minha alma banha.

Mas não me acarinha,

Não me acalma nada...

Pobre criancinha

Perdida na estrada!...

1914

Saber? Que sei eu?

Pensar é descrer.

- Leve e azul é o céu -

Tudo é tão difícil

De compreender!...

A ciência, uma fada

Num conto de louco...

- A luz é lavada -

Como o que nós vemos

É nítido e pouco!

Que sei eu que abrande

Meu anseio fundo?

Ó céu real e grande,

Não saber o modo

De pensar o mundo!

1914

Vai redonda e alta

A lua. Que dor

É em mim um amor?...

Não sei que me falta...

Não sei o que quero.

Nem posso sonhá-lo...

Como o luar é ralo

No chão vago e austero!...

Ponho-me a sorrir

Pra a ideia de mim...

E tão triste, assim

Como quem está a ouvir

Uma voz que o chama

Mas não sabe donde

(Voz que em si se esconde)

E Só a ela ama...

E tudo isto é o luar

E a minha dor

Tornado exterior

Ao meu meditar...

Que desassossego!

Que inquieta ilusão!

E esta sensação

Oca, de ser cego

No meu pensamento,

Na rainha vontade...

Ah, a suavidade

Do luar sem tormento

Batendo na alma

De quem só sentisse

O luar, e existisse

Só pra a sua calma.

1914

Sopra demais o vento

Para eu poder descansar...

Há no meu pensamento

Qualquer coisa que vai parar...

Talvez essa coisa da alma

Que acha real a vida...

Talvez esta coisa calma

Que me faz a alma vivida...

Sopra um vento excessivo...

Tenho medo de pensar...

O meu mistério eu avivo

Se me perco a meditar.

Vento que passa e esquece,

Poeira que se ergue e cai...

Ai de mim se eu pudesse

Saber o que em mim vai!

1914

Chove?... Nenhuma chuva cai...

Então onde é que eu sinto um dia

Em que o ruído da chuva atrai

A minha inútil agonia?

Onde é que chove, que eu o ouço?

Onde é que é triste, ó claro céu?

Eu quero sorrir-te, e não posso,

Ó céu azul, chamar-te meu...

E o escuro ruído da chuva

É constante em meu pensamento.

Meu ser é a invisível curva

Traçada pelo som do vento...

E eis que ante o sol e o azul do dia,

Como se a hora me estorvasse,

Eu sofro...E a luz e a sua alegria

Cai aos meus pés como um disfarce.

Ah, na minha alma sempre chove.

Há sempre escuro dentro em mim.

Se escuto, alguém dentro em mim ouve

A chuva, como a voz de um fim...

Quando é que eu serei da tua cor,

Do teu plácido e azul encanto,

Ó claro dia exterior,

Ó céu mais útil que o meu pranto?

1914

Ameaçou chuva. E a negra

Nuvem passou sem mais...

Todo o meu ser se alegra

Em alegrias iguais.

Nuvem que passa... Céu

Que fica e nada diz...

Vazio azul sem véu

Sobre a terra feliz...

E a terra é verde, verde...

Porque então minha vista

Por meus sonhos se perde?

De que é que a minha alma dista?

1914/15(?)

Meu pensamento é um rio subterrâneo.

Para que terras vai e donde vem?

Não sei... Na noite em que o meu ser o tem

Emerge dele um ruído subitâneo

De origens no Mistério extraviadas

De eu compreendê-las..., misteriosas fontes

Habitando a distância de ermos montes

Onde os momentos são a Deus chegados...

De vez em quando luze em minha mágoa

Como um farol num mar desconhecido

Um movimento de correr, perdido

Em mim, um pálido soluço de água...

E eu relembro de tempos mais antigos

Que a minha consciência da ilusão

Águas divinas percorrendo o chão

De verdores uníssonos e amigos,

E a ideia de uma Pátria anterior

À forma consciente do meu ser

Dói-me no que desejo, e vem bater

Como uma onda de encontro à minha dor.

Escuto-o... Ao longe, no meu vago tacto

Da minha alma, perdido som incerto,

Como um eterno rio indescoberto,

Mais que a ideia de rio certo e abstrato...

E pra onde é que ele vai, que se extravia

Do meu ouvi-lo ? A que cavernas desce?

Em que frios de Assombro é que arrefece?

De que névoas soturnas se anuvia?

Não sei... Eu perco-o... E outra vez regressa

A luz e a cor do mundo claro e atual,

E na interior distância do meu Real

Como se a alma acabasse, o rio cessa...

1914/15(?)

Não sei, ama, onde era,

Nunca o saberei...

Sei que era Primavera

E o jardim do rei...

(Filha, quem o soubera!...).

Que azul tão azul tinha

Ali o azul do céu!

Se eu não era a rainha,

Porque era tudo meu?

(Filha, quem o adivinha?).

E o jardim tinha flores

De que não me sei lembrar...

Flores de tantas cores...

Penso e fico a chorar...

(Filha, os sonhos são dores...).

Qualquer dia viria

Qualquer coisa a fazer

Toda aquela alegria

Mais alegria nascer

(Filha, o resto é morrer...).

Conta-me contos, ama...

Todosos contos são

Esse dia, e jardim e a dama

Que eu fui nessa solidão...

1916

I

Esqueço-me das horas transviadas...

O Outono mora mágoas nos outeiros

E põe um roxo vago nos ribeiros...

Hóstia de assombro a alma, e toda estradas...

Aconteceu-me esta paisagem, fadas

De sepulcros a orgíaco... Trigueiros

Os céus da tua face, e os derradeiros

Tons do poente segredam nas arcadas...

No claustro sequestrando a lucidez

Um espasmo apagado em ódio à ânsia

Põe dias de ilhas vistas do convés

No meu cansaço perdido entre os gelos,

E a cor do Outono é um funeral de apelos

Pela estrada da minha dissonância...

II

Há um poeta em mim que Deus me disse...

A Primavera esquece nos barrancos

As grinaldas que trouxe dos arrancos

Da sua efémera e espectral ledice...

Pelo prado orvalhado a meninice

Faz soar a alegria os seus tamancos...

Pobre de anseios teu ficar nos bancos

Olhando a hora como quem sorrisse...

Florir do dia a capitéis de Luz...

Violinos do silêncio enternecidos...

Tédio onde o só ter tédio nos seduz...

Minha alma beija o quadro que pintou...

Sento-me ao pé dos séculos perdidos

E cismo o seu perfil de inércia e voo...

III

Adagas cujas joias velhas galas...

Opalesci amar-me entre mãos raras,

E, fluido a febres entre um lembrar de aras,

O convés sem ninguém cheio de malas...

O íntimo silêncio das opalas

Conduz orientes até joias caras,

E o meu anseio vai nas rotas claras

De um grande sonho cheio de ócio e salas...

Passa o cortejo imperial, e ao longe

O povo só pelo cessar das lanças

Sabe que passa o seu tirano, e estruge

Sua ovação, e erguem as crianças...

Mas no teclado as tuas mãos pararam

E indefinidamente repousaram...

IV

Ó tocadora de harpa, se eu beijasse

Teu gesto, sem beijar as tuas mãos!,

E, beijando-o, descesse pelos desvãos

Do sonho, até que enfim eu o encontrasse

Tornado Puro Gesto, gesto-face

Da medalha sinistra - reis cristãos

Ajoelhando, inimigos e irmãos,

Quando processional o andor passasse!...

Teu gesto que arrepanha e se extasia...

O teu gesto completo, lua fria

Subindo, e em baixo, negros, os juncais...

Caverna em estalactites o teu gesto...

Não poder eu prendê-lo, fazer mais

Que vê-lo e que perdê-lo!... E o sonho é o resto...

V

Tênue, roçando sedas pelas horas,

Teu vulto ciciante passa e esquece,

E dia a dia adias para prece

O rito cujo ritmo só decoras...

Um mar longínquo e próximo humedece

Teus lábios onde, mais que em ti, descoras...

E, alada, leve, sobre a dor que choras,

Sem querer saber de ti a tarde desce...

Erra no anteluar avoz dos tanques...

Na quinta imensa gorgolejam águas,

Na treva vaga ao meu ter dor estanques...

Meu império é das horas desiguais,

E dei meu gesto lasso às algas mágoas

Que há para além de sermos outonais...

VI

Venho de longe e trago no perfil,

Em forma nevoenta e afastada,

O perfil de outro ser que desagrada

Ao meu atual recorte humano e vil.

Outrora fui talvez, não Boabdil,

Mas o seu mero último olhar, da estrada

Dado ao deixado vulto de Granada,

Recorte frio sob o unido anil...

Hoje sou a saudade imperial

Do que já na distância de mim vi...

Eu próprio sou aquilo que perdi...

E nesta estrada para Desigual

Florem em esguia glória marginal

Os girassóis do império que morri...

VII

Fosse eu apenas, não sei onde ou como,

Uma coisa existente sem viver,

Noite de Vida sem amanhecer

Entre as sirtes do meu dourado assomo...

Fada maliciosa ou incerto gnomo

Fadado houvesse de não pertencer

Meu intuito gloríola com ter

A árvore do meu uso o único pomo...

Fosse eu uma metáfora somente

Escrita nalgum livro insubsistente

Dum poeta antigo, de alma em outras gamas,

Mas doente, e, num crepúsculo de espadas,

Morrendo entre bandeiras desfraldadas

Na última tarde de um império em chamas...

VIII

Ignorado ficasse o meu destino

Entre pálios(e a ponte sempre à vista),

E anel concluso a chispas de ametista

A frase falha do meu póstumo hino...

Florescesse em meu glabro desatino

O himeneu das escadas da conquista

Cuja preguiça, arrecadada, dista

Almas do meu impulso cristalino...

Meus ócios ricos assim fossem, vilas

Pelo campo romano, e a toga traça

No meu soslaio anónimas(desgraça

A vida) curvas sob mãos intranquilas...

E tudo sem Cleópatra teria

Findado perto de onde raia o dia...

IX

Meu coração é um pórtico partido

Dando excessivamente sobre o mar

Vejo em minha alma as velas vãs passar

E cada vela passa num sentido.

Um soslaio de sombras e ruído

Na transparente solidão do ar

Evoca estrelas sobre a noite estar

Em afastados céus o pórtico ido...

E em palmares de Antilhas entrevistas

Através de, com mãos eis apartados

Os sonhos, cortinados de ametistas,

Imperfeito o sabor de compensando

O grande espaço entre os troféus alçados

Ao centro do triunfo em ruído e bando...

X

Aconteceu-me do alto do infinito

Esta vida. Através de nevoeiros,

Do meu próprio ermo ser fumos primeiros,

Vim ganhando, e através estranhos ritos

De sombra e luz ocasional, e gritos

Vagos ao longe, e assomos passageiros

De saudade incógnita, luzeiros

De divino, este ser fosco e proscrito...

Caiu chuva em passados que fui eu.

Houve planícies de céu baixo e neve

Nalguma coisa de alma do que é meu.Narrei-me a sombra e não me achei sentido

Hoje sei-me o deserto onde Deus teve

Outrora a sua capital de olvido...

XI

Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela

E oculta mão colora alguém em mim.

Pus a alma no nexo de perdê-la

E o meu princípio floresceu em Fim.

Que importa o tédio que dentro em mim gela,

E o leve Outono, e as galas, e o marfim,

E a congruência da alma que se vela

Com os sonhados pálios de cetim?

Disperso... E a hora como um leque fecha-se...

Minha alma é um arco tendo ao fundo o mar...

O tédio? A mágoa? A vida? O sonho? Deixa-se...

E, abrindo as asas sobre Renovar,

A erma sombra do voo começado

Pestaneja no campo abandonado...

XII

Ela ia, tranquila pastorinha,

Pela estrada da minha imperfeição.

Seguia-a, como um gesto de perdão,

O seu rebanho, a saudade minha...

"Em longes terras hás de ser rainha"

Um dia lhe disseram, mas em vão...

Seu vulto perde-se na escuridão...

Só sua sombra ante meus pés caminha...

Deus te dê lírios em vez desta hora,

E em terras longe do que eu hoje sinto

Serás, rainha não, mas só pastora -

Só sempre a mesma pastorinha a ir,

E eu serei teu regresso, esse indistinto

Abismo entre o meu sonho e o meu porvir...

XIII

Emissário de um rei desconhecido

Eu cumpro informes instruções de além,

E as bruscas frases que aos meus lábios vêm

Soam-me a um outro e anômalo sentido...

Inconscientemente me divido

Entre mim e a missão que o meu ser tem,

E a glória do meu Rei dá-me o desdém

Por este humano povo entre quem lido...

Não sei se existe o Rei que me mandou

Minha missão será eu a esquecer,

Meu orgulho o deserto em que em mim estou...

Mas há! Eu sinto-me altas tradições

De antes de tempo e espaço e vida e ser...

Já viram Deus as minhas sensações...

XIV

Como uma voz de fonte que cessasse

(E uns para os outros nossos vãos olhares

Se admiraram), para além dos meus palmares

De sonho, a voz que do meu tédio nasce

Parou... Apareceu já sem disfarce

De música longínqua, asas nos ares,

O mistério silente como os mares,

Quando morreu o vento e a calma pasce...

A paisagem longínqua só existe

Para haver nela um silêncio em descida

Para o mistério, silêncio a que a hora assiste...

E, perto ou longe, grande lago mudo,

O mundo, o informe mundo onde há a vida...

E Deus, a Grande Ogiva ao fim de tudo...

1914-1916

Há no firmamento

Umfrio lunar.

Um vento nevoento

Vem de ver o mar.

Quase maresia

A hora interroga,

E uma angústia fria

Indistinta voga.

Não sei o que faça,

Não sei o que penso,

O frio não passa

E o tédio é imenso.

Não tenho sentido,

Alma ou intenção...

Estou no meu olvido...

Dorme, coração...

1917

Súbita mão de algum fantasma oculto

Entre as dobras da noite e do meu sono

Sacode-me e eu acordo, e no abandono

Da noite não enxergo gesto ou vulto.

Mas um terror antigo, que insepulto

Trago no coração, como de um trono

Desce e se afirma meu senhor e dono

Sem ordem, sem meneio e sem insulto.

E eu sinto a minha vida de repente

Presa por uma corda de Inconsciente

A qualquer mão noturna que me guia.

Sinto que sou ninguém salvo uma sombra

De um vulto que não vejo e que me assombra,

E em nada existo como a treva fria.

1917

Para onde vai a minha vida, e quem a leva?

Por que faço eu sempre o que não queria?

Que destino contínuo se passa em mim na treva?

Que parte de mim, que eu desconheço, é que me guia?

O meu destino tem um sentido e tem um jeito,

A minha vida segue uma rota e uma escala,

Mas o consciente de mim é o esboço imperfeito

Daquilo que faço e que sou; não me iguala.

Não me compreendo nem no que, compreendendo, faço.

Não atinjo o fim ao que faço pensando num fim.

É diferente do que é o prazer ou a dor que abraço.

Passo, mas comigo não passa um eu que há em mim.

Quem sou, senhor, na tua treva e no teu fumo?

Além da minha alma, que outra alma há na minha?

Por que me destes o sentimento de um rumo,

Se o rumo que busco não busco, se em mim nada caminha

Senão com um uso não dos meus passos, senão

Com um destino escondido de mim nos meus atos?

Para que sou consciente se a consciência é uma ilusão?

Que sou eu entre quê e os fatos?

Fechai-me os olhos, toldai-me a vista da alma!

Ó ilusões! Se eu nada sei de mim e da vida,

Ao menos goze esse nada, sem fé, mas com calma,

Ao menos durma viver, como uma praia esquecida...

1917

Quem te disse ao ouvido esse segredo

Que raras deusas têm escutado -

Aquele amor cheio de crença e medo

Que é verdadeiro só se é segredado?...

Quem te disse tão cedo?

Não fui eu, quete não ousei dizê-lo.

Não foi um outro, porque o não sabia.

Mas quem roçou da testa teu cabelo

E te disse ao ouvido o que sentia?

Seria alguém, seria?

Ou foi só que o sonhaste e eu te o sonhei?

Foi só qualquer ciúme meu de ti

Que o supôs dito, porque o não direi,

Que o supôs feito, porque o só fingi

Em sonhos que nem sei?

Seja o que for, quem foi que levemente,

A teu ouvido vagamente atento,

Te falou desse amor em mim presente

Mas que não passa do meu pensamento

Que anseia e que não sente?

Foi um desejo que, sem corpo ou boca,

A teus ouvidos de eu sonhar-te disse

A frase eterna, imerecida e louca -

A que as deusas esperam da ledice

Com que o Olimpo se apouca.

1917(?)

I

Andei léguas de sombra

Dentro em meu pensamento.

Floresceu às avessas

Meu ócio com sem-nexo,

E apagaram-me as lâmpadas

Na alcova cambaleante.

Tudo prestes se volve

Um deserto macio

Visto pelo meu tacto

Dos veludos da alcova,

Não pela minha vista.

Há um oásis no Incerto

E, como uma suspeita

De luz por não-há-frinchas,

Passa uma caravana.

Esquece-me de súbito

Como é o espaço, e o tempo

Em vez de horizontal

É vertical.

A alcova

Desce não sei por onde

Até não me encontrar

Ascende um leve fumo

Das minhas sensações.

Deixo de me incluir

Dentro de mim. Não há

Cá-dentro nem lá-fora.

E o deserto está agora

Virado para baixo.

A noção de mover-me

Esqueceu-se do meu nome.

Na alma meu corpo pesa-me.

Sinto-me um reposteiro

Pendurado na sala

Onde jaz alguém morto.

Qualquer coisa caiu

E tiniu no infinito.

II

Na sombra Cleópatra jaz morta.

Chove.

Embandeiraram o barco de maneira errada.

Chove sempre.

Para que olhas tu a cidade longínqua?

Tua alma é a cidade longínqua.

Chove friamente.

E quanto à mãe que embala ao colo um filho morto -

Todos nós embalamos ao colo um filho morto.

Chove, chove.

O sorriso triste que sobra a teus lábios cansados,

Vejo-o no gesto com que os teus dedos não deixam os teus anéis.

Porque é que chove?

III

Em mim o Universo -

É uma nódoa esbatida

De eu ser consciente sobre

Minha ideia das coisas.

Se acenderem as velas

E não houver apenas

A vaga luz de fora -

Não sei que candeeiro

Aceso onde na rua -

Terei foscos desejos

De nunca haver mais nada

No Universo e na Vida

De que o obscuro momento

Que é minha vida agora.

Um momento afluente

Dum rio sempre a ir

Esquecer-se de ser,

Espaço misterioso

Entre espaços desertos

Cujo sentido é nulo

E sem ser nada a nada.

E assim a hora passa

Metafisicamente.

IV

As minhas ansiedades caem

Poruma escada abaixo

Os meus desejos balançam-se

Em meio de um jardim vertical.

Na Múmia a posição é absolutamente exata.

Música longínqua,

Música excessivamente longínqua,

Para que a Vida passe

E colher esqueça aos gestos.

V

Porque abrem as coisas alas para eu passar?

Tenho medo de passar entre elas, tão paradas conscientes.

Tenho medo de as deixar atrás de mim a tirarem a Máscara.

Mas há sempre coisas atrás de mim.

Sinto a sua ausência de olhos fitar-me, e estremeço.

Sem se mexerem, as paredes vibram-me sentido.

Falam comigo sem voz de dizerem-me as cadeiras.

Os desenhos do pano da mesa têm vida, cada um é um abismo.

Luze a sorrir com visíveis lábios invisíveis

A porta abrindo-se conscientemente

Sem que a mão seja mais que o caminho para abrir-se.

De onde é que estão olhando para mim?

Que coisas incapazes de olhar estão olhando para mim?

Quem espreita de tudo?

As arestas fitam-me.

Sorriem realmente as paredes lisas.

Sensação de ser só a minha espinha.

As espadas.

1917(ou anterior)

I. Plenilúnio

As horas pela alameda

Arrastam vestes de seda,

Vestes de seda sonhada

Pela alameda alongada

Sob o azular do luar...

E ouve-se no ar a expirar -

A expirar mas nunca expira

Uma flauta que delira,

Que é mais a ideia de ouvi-la

Que ouvi-la quase tranquila

Pelo ar a ondear e a ir...

Silêncio a tremeluzir...

II. Saudade dada

Em horas inda louras, lindas

Clorindas e Belindas, brandas,

Brincam no tempo das berlindas,

As vindas vendo das varandas.

De onde ouvem vir a rir as vindas

Fitam a fio as frias bandas.

Mas em torno à tarde se entorna

A atordoar o ar que arde

Que a eterna tarde já não torna!

E em tom de atoarda todo o alarde

Do adornado ardor transtorna

No ar de torpor da tarda tarde.

E há nevoentos desencantos

Dos encantos dos pensamentos

Nos santos lentos dos recantos

Dos bentos cantos dos conventos...

Prantos de intentos, lentos, tantos

Que encantam os atentos ventos.

III. Pierrô bêbado

Nas ruas da feira,

Da feira deserta,

Só a lua cheia

Branqueia e clareia

As ruas da feira

Na noite entreaberta.

Só a lua alva

Branqueia e clareia

A paisagem calva

De abandono e alva

Alegria alheia.

Bêbeda branqueia

Como pela areia

Nas ruas da feira,

Da feira deserta,

Na noite já cheia

De sombra entreaberta.

A lua branqueia

Nas ruas da feira

Deserta e incerta...

IV. Minuete invisível

Elas são vaporosas,

Pálidas sombras, as rosas

Nadas da hora lunar...

Vêm, aéreas, dançar

Com perfumes soltos

Entre os canteiros e os buxos...

Chora no som dos repuxos

O ritmo que há nos seus vultos...

Passam e agitam a brisa...

Pálida, a pompa indecisa

Dasua flébil demora

Paira em auréola à hora...

Passam nos ritmos da sombra...

Ora é uma folha que tomba,

Ora uma brisa que treme

Sua leveza solene...

E assim vão indo, delindo

Seu perfil único e lindo,

Seu vulto feito de todas,

Nas alamedas, em rodas,

No jardim lívido e frio...

Passam sozinhas, a fio,

Como um fumo indo, a rarear,

Pelo ar longínquo e vazio,

Sob o, disperso pelo ar,

Pálido pálio lunar...

V. Hiemal

Baladas de uma outra terra, aliadas

Às saudades das fadas, amadas por gnomos idos,

Retinem lívidas ainda aos ouvidos

Dos luares das altas noites aladas...

Pelos canais barcas erradas

Segredam-se rumos descridos...

E tresloucadas ou casadas com o som das baladas,

As fadas são belas, e as estrelas

São delas... Ei-las alheadas...

E são fumos os rumos das barcas sonhadas,

Nos canais fatais iguais de erradas,

As barcas parcas das fadas,

Das fadas aladas e hiemais

E caladas...

Toadas afastadas, irreais, de baladas...

Ais...

1913-1917

O sol às casas, como a montes,

Vagamente doura.

Na cidade sem horizontes

Uma tristeza loura.

Com a sombra da tarde desce

E um pouco dói

Porque quanto é tarde

Tudo quanto foi.

Nesta hora mais que em outra choro

O que perdi.

Em cinza e ouro o rememoro

E nunca o vi.

Felicidade por nascer,

Mágoa a acabar,

Ânsia de só aquilo ser

Que há de ficar -

Sussurro sem que se ouça, palma

Da isenção.

Ó tarde, fica noite, e alma

Tenha perdão.

1918

Ah! A angústia, a raiva vil, o desespero

De não poder confessar

Num tom de grito, num último grito austero

Meu coração a sangrar!

Falo, e as palavras que digo são um som

Sofro, e sou eu.

Ah! Arrancar a música o segredo do tom

Do grito seu!

Ah! Fúria de a dor nem ter sorte em gritar,

De o grito não ter

Alcance maior que o silêncio, que volta, do ar

Na noite sem ser!

1920

Onde pus a esperança, as rosas

Murcharam logo.

Na casa, onde fui habitar,

O jardim, que eu amei por ser

Ali o melhor lugar,

E por quem essa casa amei -

Decerto o achei,

E, quando o tive, sem razão para o ter

Onde pus a afeição, secou

A fonte logo.

Da floresta, que fui buscar

Por essa fonte ali tecer

Seu canto de rezar -

Quando na sombra penetrei,

Só o lugar achei

Da fonte seca, inútil de se ter.

Para quê, pois, afeição, esperança,

Se perco, logo

Que as uso, a causa para as usar,

Se tê-las sabe a não as ter?

Crer ou amar -

Até à raiz, do peito onde alberguei

Tais sonhos e os gozei,

O vento arranque e leve ondequiser

E eu os não possa achar!

1920

Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços

E chama-me teu filho.

Eu sou um rei

Que voluntariamente abandonei

O meu trono de sonhos e cansaços.

Minha espada, pesada a braços lassos,

Em mãos viris e calmas entreguei;

E meu ceptro e coroa, - eu os deixei

Na antecâmara, feitos em pedaços.

Minha cota de malha, tão inútil

Minhas esporas, de um tinir tão fútil,

Deixei-as pela fria escadaria.

Despi a realeza, corpo e alma,

E regressei à noite antiga e calma

Como a paisagem ao morrer do dia.

1920(?)

Ah, quanta vez, na hora suave

Em que me esqueço,

Vejo passar um voo de ave

E me entristeço!

Porque é ligeiro, leve, certo

No ar de amavio?

Porque vai sob o céu aberto

Sem um desvio?

Porque ter asas simboliza

A liberdade

Que a vida nega e a alma precisa?

Sei que me invade

Um horror de me ter que cobre

Como uma cheia

Meu coração, e entorna sobre

Minha alma alheia

Um desejo, não de ser ave,

Mas de poder

Ter não sei quê do voo suave

Dentro em meu ser.

1921

Feliz dia para quem é

O igual do dia,

E no exterior azul que vê

Simples confia!

O azul do céu faz pena a quem

Não pode ser

Na alma um azul do céu também

Com que viver

Ah, e se o verde com que estão

Os montes quedos

Pudesse haver no coração

E em seus segredos!

Mas vejo quem devia estar

Igual do dia

Insciente e sem querer passar.

Ah, a ironia

De só sentir a terra e o céu

Tão belos ser

Quem de si sente que perdeu

A alma para os ter!

1921

Nasce um Deus. Outros morrem. A verdade

Nem veio nem se foi: o Erro mudou.

Temos agora uma outra Eternidade,

E era sempre melhor o que passou.

Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.

Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.

Um novo Deus é só uma palavra.

Não procures nem creias: tudo é oculto.

(sem data)

No entardecer da terra

O sopro do longo Outono

Amareleceu o chão.

Um vago vento erra,

Como um sonho mau num sono,

Na lívida solidão.

Soergue as folhas, e pousa

As folhas, e volve, e revolve,

E esvai-se inda outra vez.

Mas a folha não repousa,

E o vento lívido volve

E expira na lividez.

Eu já não sou quem era;

O que eu sonhei, morri-o;

E até do que hoje sou

Amanhã direi, quem dera

volver a sê-lo!... Mais frio

O vento vago voltou.

1924(ou anterior)

Ó sino da minha aldeia,

Dolentena tarde calma,

Cada tua badalada

Soa dentro da minha alma.

E é tão lento o teu soar,

Tão como triste da vida,

Que já a primeira pancada

Tem o som de repetida.

Por mais que me tanjas perto

Quando passo, sempre errante,

És para mim como um sonho.

Soas-me na alma distante.

A cada pancada tua

Vibrante no céu aberto,

Sinto mais longe o passado,

Sinto a saudade mais perto.

1913(?)

Leve, breve, suave,

Um canto de ave

Sobe no ar com que principia

O dia.

Escuto, e passou...

Parece que foi só porque escutei

Que parou.

Nunca, nunca, em nada,

Raie a madrugada,

Ou esplenda o dia, ou doure no declive,

Tive

Prazer a durar

Mais do que o nada, a perda, antes de eu o ir

Gozar.

1920(?)

Pobre velha música!

Não sei porque agrado,

Enche-se de lágrimas

Meu olhar parado.

Recordo outro ouvir-te.

Não sei se te ouvi

Nessa minha infância

Que me lembra em ti.

Com que ânsia tão raiva

Quero aquele outrora!

E eu era feliz? Não sei:

Fui-o outrora agora.

1924(ou anterior)

Dorme enquanto eu velo...

Deixa-me sonhar...

Nada em mim é risonho.

Quero-te para sonho,

Não para te amar.

A tua carne calma

É fria em meu querer.

Os meus desejos são cansaços.

Nem quero ter nos braços

Meu sonho do teu ser.

Dorme, dorme, dorme,

Vaga em teu sorrir...

Sonho-te tão atento

Que o sonho é encantamento

E eu sonho sem sentir.

1924(ou anterior)

Sol nulo dos dias vãos,

Cheios de lida e de calma,

Aquece ao menos as mãos

A quem não entras na alma!

Que ao menos a mão, roçando

A mão que por ela passe

Com externo calor brando

O frio da alma disfarce!

Senhor, já que a dor é nossa

E a fraqueza que ela tem,

Dá-nos ao menos a força

De a não mostrar a ninguém!

1920(?)

Trila na noite uma flauta. É de algum

Pastor? Que importa? Perdida

Série de notas vaga e sem sentido nenhum.

Como a vida.

Sem nexo ou princípio ou fim ondeia

A ária alada.

Pobre ária fora de música e de voz, tão cheia

De não ser nada!

Não há nexo ou fio por que se lembre aquela

Ária, ao parar;

E já ao ouvi-la sofro a saudade dela

E o quando cessar.

1924(ou anterior)

Põe-me as mãos nos ombros...

Beija-me na fronte...

Minha vida é escombros,

A minha alma insonte .

Eu não sei porquê,

Meu desde onde venho,

Sou o ser que vê,

E vê tudo estranho.

Põe a tua mão

Sobre o meu cabelo...

Tudo é ilusão.

Sonhar é sabê-lo.

1912(?)

Manhã dos outros! Ó sol que dás confiança

Só a quem já confia!

É só à dormente, e não à morta, esperança

Que acorda o teu dia.

A quem sonha de dia e sonha de noite, sabendo

Todo o sonho vão,

Mas sonha sempre, só para sentir-se vivendo

E a ter coração.

A esses raias sem o dia que trazes, ou somente

Como alguém que vem

Pela rua, invisível ao nosso olhar consciente,

Por não ser-nos ninguém.

1920(?)

Treme em luz a água.

Mal vejo. Parece

Que uma alheia mágoa

Na minha alma desce -

Mágoa erma de alguém

De algum outro mundo

Onde a dor é um bem

E o amor é profundo,

E só punge ver,

Ao longe, iludida,

A vida a morrer

O sonho da vida.

1920(?)

Dorme sobre o meu seio.

Sonhando de sonhar...

No teu olhar eu leio

Um lúbrico vagar.

Dorme no sonho de existir

E na ilusão de amar.

Tudo é nada, e tudo

Um sonho finge ser

O espaço negro é mudo.

Dorme, e, ao adormecer,

Saibas do coração sorrir

Sorrisos de esquecer.

Dorme sobre o meu seio,

Sem mágoa nem amor...

No teu olhar eu leio

O íntimo torpor

De quem conhece o nada-ser

De vida e gozo e dor.

1924(ou anterior)

Ao longe, ao luar,

No rio urna vela

Serena a passar,

Que é que me revela?

Não sei, mas meu ser

Tornou-se-me estranho,

E eu sonho sem ver

Os sonhos que tenho.

Que angústia me enlaça?

Que amor não se explica

É a vela que passa

Na noite que fica.

1924(ou anterior)

Em toda a noite o sono não veio. Agora

Raia do fundo

Do horizonte, encoberta e fria, a manhã.

Que faço eu no mundo?

Nada que a noite acalme ou levante a aurora,

Coisa séria ou vã

Com olhos tontos da febre vã da vigília

Vejo com horror

O novo dia trazer-me o mesmo dia do fim

Do mundo e da dor -

Um dia igual aos outros, da eterna família

De serem assim.

Nem o símbolo ao menos vale, a significação

Da manhã que vem

Saindo lenta da própria essência da noite que era,

Para quem,

Por tantas vezes ter sempre esperado em vão,

Já nada espera.

1920(?)

Ela canta, pobre ceifeira,

Julgando-se feliz talvez;

Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia

De alegre e anónima viuvez,

Ondula como um canto de ave

No ar limpo como um limiar,

E há curvas no enredo suave

Do som que ela tem a cantar.

Ouvi-la alegra e entristece,

Nasua voz há o campo e a lida,

E canta como se tivesse

Mais razões para cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão!

O que em mim sente está pensando.

Derrama no meu coração

A tua incerta voz ondeando!

Ah, poder ser tu, sendo eu!

Ter a tua alegre inconsciência,

E a consciência disso! Ó céu!

Ó campo! Ó canção! A ciência

Pesa tanto e a vida é tão breve!

Entrai por mim dentro! Tornai

Minha alma a vossa sombra leve!

Depois, levando-me, passai!

1914(?)

Sonho. Não sei quem sou neste momento.

Durmo sentindo-me. Na hora calma

Meu pensamento esquece o pensamento,

Minha alma não tem alma.

Se existo é um erro eu o saber. Se acordo

Parece que erro. Sinto que não sei.

Nada quero nem tenho nem recordo.

Não tenho ser nem lei.

Lapso de consciência entre ilusões,

Fantasmas me limitam e me contém.

Dorme insciente de alheios corações,

Coração de ninguém.

1923

Nada sou, nada posso, nada sigo.

Trago, por ilusão, meu ser comigo.

Não compreendo compreender, nem sei

Se hei de ser, sendo nada, o que serei.

Fora disto, que é nada, sob o azul

Do lato céu um vento vão do sul

Acorda-me e estremece no verdor.

Ter razão, ter vitória, ter amor

Murcharam na haste morta da ilusão.

Sonhar é nada e não saber é vão.

Dorme na sombra, incerto coração.

1923

Não é ainda a noite

Mas é já frio o céu.

Do vento o ocioso açoite

Envolve o tédio meu.

Que vitórias perdidas

Por não as ter querido!

Quantas perdidas vidas!

E o sonho sem ter sido...

Ergue-te, ó vento, do ermo

Da noite que aparece!

Há um silêncio sem termo

Por trás do que estremece...

Pranto dos sonhos fúteis,

Que a memória acordou,

Inúteis, tão inúteis -

Quem me dirá quem sou?

1926

Pouco importa de onde a brisa

Traz o olor que nela vem

O coração não precisa

De saber o que é o bem.

A mim me baste nesta hora

A melodia que embala,

Que importa se, sedutora,

As forças da alma cala?

Quem sou, para que o mundo perca

Com o que penso a sonhar?

Se a melodia me cerca

Vivo só o me cercar...

1926

No plaino abandonado

Que a morna brisa aquece,

De balas traspassado

- Duas, de lado a lado - ,

Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.

De braços estendidos,

Alvo, louro, exangue,

Fita com olhar langue

E cego os céus perdidos.

Tão jovem! que jovem era!

(Agora que idade tem?)

Filho único, a mãelhe dera

Um nome e o mantivera:

"O menino da sua mãe".

Caiu-lhe da algibeira

A cigarreira breve.

Dera-lha a mãe. Está inteira

E boa a cigarreira.

Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada

Ponta a roçar o solo,

A brancura embainhada

De um lenço... Deu-lhe a criada

Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:

"Que volte cedo, e bem!"

(Malhas que o Império tece!)

Jaz morto, e apodrece,

O menino da sua mãe.

1926(ou anterior)

Ditosos a quem acena

Um lenço de despedida!

São felizes: têm pena...

Eu sofro sem pena a vida.

Doou-me até onde penso,

E a dor é já de pensar,

Órfão de um sonho suspenso

Pela maré a vazar...

E sobe até mim, já farto

De improfícuas agonias,

No cais de onde nunca parto,

A maresia dos dias.

1927(ou anterior)

Paira à tona de água

Uma vibração,

Há uma vaga mágoa

No meu coração.

Não é porque a brisa

Ou o que quer que seja

Faça esta indecisa

Vibração que adeja,

Nem é porque eu sinta

Uma dor qualquer.

Minha alma é indistinta

Não sabe o que quer.

É uma dor serena,

Sofre porque vê.

Tenho tanta pena!

Soubesse eu de quê!...

1928

Qualquer música, ah, qualquer,

Logo que me tire da alma

Esta incerteza que quer

Qualquer impossível calma!

Qualquer música - guitarra,

Viola, harmônio, realejo...

Um canto que se desgarra...

Um sonho em que nada vejo...

Qualquer coisa que não vida!

Jota, fado, a confusão

Da última dança vivida...

Que eu não sinta o coração!

1928(ou anterior)

Vão vagos pela estrada,

Cantando sem razão

À última esperança dada

À última ilusão.

Não significam nada.

Mimos e bobos são.

Vão juntos e diversos

Sob um luar de ver,

Em que sonhos imersos

Nem saberão dizer,

E cantam aqueles versos

Que lembram sem querer.

Pajens de um morto mito,

Tão líricos!, tão sós!,

Não têm na voz um grito,

Mal têm a própria voz;

E ignora-os o infinito

Que nos ignora a nós.

1927(?)

Natal... Na província neva.

Nos lares aconchegados,

Um sentimento conserva

Os sentimentos passados.

Coração oposto ao mundo,

Como a família é verdade!

Meu pensamento é profundo,

Estou só e sonho saudade.

E como é branca de graça

A paisagem que não sei,

Vista de trás da vidraça

Do lar que nunca terei!

1928(ou anterior)

Tenho dó das estrelas

Luzindo há tanto tempo,

Há tanto tempo...

Tenho dó delas.

Não haverá um cansaço

Das coisas.

De todas as coisas,

Como das pernas ou de um braço?

Um cansaço de existir,

De ser,

Só de ser,

O ser triste brilhar ou sorrir...

Não haverá, enfim,

Para as coisas que são,

Não a morte, mas sim

Uma outra espéciede fim,

Ou uma grande razão -

Qualquer coisa assim

Como um perdão?

1928(ou anterior)

A lâmpada acesa

(Outrem a acendeu)

Baixa uma beleza

Sobre o chão que é meu.

No quarto deserto

Salvo o meu sonhar,

Faz no chão incerto

Um círculo a ondear.

E entre a sombra e a luz

Que oscila no chão

Meu sonho conduz

Minha inatenção.

Bem sei... Era dia

E longe de aqui...

Quanto me sorria

O que nunca vi!

E no quarto silente

Com a Luz a ondear

Deixei vagamente

Até de sonhar...

1929

Um muro de nuvens densas

Põe na base do ocidente

Negras roxuras pretensas.

Com a noite tudo acaba.

O céu frio é transparente.

Nada de chuva desaba.

E não sei se tenho pena

Ou alegria da ausente

Chuva e da noite serena

De resto, nunca sei nada,

Minha alma é a sombra presente

De uma presença passada.

Meus sentimentos são rastros.

Só meu pensamento sente...

A noite esfria-se de astros.

1929

Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,

Sem nada já que me atraia, nem nada que desejar,

Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida,

E nunca terei agonia, pois dormirei de seguida.

A vida é como uma sombra que passa por sobre um rio

Ou como um passo na alfombra de um quarto que jaz vazio;

O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é;

A glória concede e nega; não tem verdades a fé.

Por isso na orla morena da praia calada e só,

Tenho a alma feita pequena, livre de mágoa e de dó;

Sonho sem quase já ser, perco sem nunca ter tido,

E comecei a morrer muito antes de ter vivido.

Deem-me, onde aqui jazo, só uma brisa que passe,

Não quero nada do acaso, senão a brisa na face;

Deem-me um vago amor de quanto nunca terei,

Não quero gozo nem dor, não quero vida nem lei.

Só, no silêncio cercado pelo som brusco do mar,

Quero dormir sossegado, sem nada que desejar,

Quero dormir na distância de um ser que nunca foi seu,

Tocado do ar sem fragrância da brisa de qualquer céu.

1929

Como inútil taça cheia

Que ninguém ergue da mesa,

Transborda de dor alheia

Meu coração sem tristeza.

Sonhos de mágua figura

Só para ter que sentir

E assim não tem a amargura

Que se temeu a fingir.

Ficção num palco sem tábuas

Vestida de papel seda

Mima uma dança de mágoas

Para que nada suceda.

1930

Sagra, sinistro, a alguns o astro baço.

Seus três anéisirreversíveis são

A desgraça, a tristeza, a solidão.

Oito luas fatais fitam no espaço.

Este, poeta, Apolo em seu regaço

A Saturno entregou. A plúmbea mão

Lhe ergueu ao alto o aflito coração,

E, erguido, o apertou, sangrando lasso.

Inúteis oito luas da loucura

Quando a cintura tríplice denota

Solidão e desgraça e amargura!

Mas da noite sem fim um rastro brota,

Vestígios de maligna formosura:

É a lua além de Deus, álgida e ignota.

1924(?)

Boiam leves, desatentos,

Meus pensamentos de mágoa

Como, no sono dos ventos,

As algas, cabelos lentos

Do corpo morto das águas.

Boiam como folhas mortas

À tona de águas paradas.

São coisas vestindo nadas,

Pós remoinhando nas portas

Das casas abandonadas.

Sono de ser, sem remédio,

Vestígio do que não foi,

Leve mágoa, breve tédio,

Não sei se para, se flui;

Não sei se existe ou se dói.

1930

Contemplo o lago mudo

Que uma brisa estremece.

Não sei se penso em tudo

Ou se tudo me esquece.

O lago nada me diz.

Não sinto a brisa mexê-lo.

Não sei se sou feliz

Nem se desejo sê-lo.

Trémulos vincos risonhos

Na água adormecida.

Por que fiz eu dos sonhos

A minha única vida?

1930

Às vezes entre a tormenta,

Quando já umedeceu,

Raia uma nesga de céu,

Com que a alma se alimenta.

E às vezes entre o torpor

Que não é tormenta da alma,

Raia uma espécie de calma

Que não conhece o langor.

E, quer num quer noutro caso,

Como o mal feito está feito,

Restam os versos que deito,

Vinho no copo do acaso.

Porque verdadeiramente

Sentir é tão complicado

Que é só andando enganado

É que se crê que se sente.

Sofremos? Os versos pecam.

Mentimos? Os versos falham.

E tudo é chuvas que orvalham

Folhas caídas que secam.

1930

Dá a surpresa de ser

É alta, de um louro escuro.

Faz bem só pensar em ver

Seu corpo meio maduro.

Seus seios altos parecem

(Se ela estivesse deitada)

Dois montinhos que amanhecem

Sem ter que haver madrugada.

E a mão do seu braço branco

Assenta em palmo espalhado

Sobre a saliência do flanco

Do seu relevo tapado.

Apetece como um barco.

Tem qualquer coisa de gomo.

Meu Deus, quando é que eu embarco?

Ó fome, quando é que eu como?

1930

Tenho dito tantas vezes

Quanto sofro sem sofrer

Que me canso dos revezes

Que sonho só pra os não ter.

E esta dor que não tem mágoa,

Esta tristeza inatingível

Passa em mim como um som de água

Ouvido num outro nível.

E, de aí, talvez que seja

Uma nova antiga dor

Que outra vida minha esteja

Lembrandono meu torpor.

E é como a aragem que nasce

De ouvir música e sentir...

Ah, que a emoção em mim passe

Como se a estivesse a ouvir!

1930

Lenta e quieta a sombra vasta

Cobre o que vejo menos já.

Pouco somos, pouco nos basta.

O mundo tira o que nos dá.

Que nos contente o pouco que há.

A noite, vindo corno nada,

Lembra-me quem deixei de ser,

A curva anónima da estrada

Faz-me lembrar, faz-me esquecer,

Faz-me ter pena e ter de a ter.

Ó largos campos já cinzentos

Na noite, para além de mim,

Vou amanhã meus pensamentos

Enterrar onde estais assim.

Vou ter aí sossego e fim.

Poesia! Nada! A hora desce

Sem qualidade ou emoção.

Meu coração o que é que esquece?

Se é o que eu sinto que foi vão,

Porque me dói o coração?

1930

Chove. É dia de Natal.

Lá para o Norte é melhor:

Há a neve que faz mal.

E o frio que ainda é pior.

E toda a gente é contente

Porque é dia de o ficar.

Chove no Natal presente.

Antes isso que nevar.

Pois apesar de ser esse

O Natal da convenção,

Quando o corpo me arrefece

Tenho o frio e Natal não.

Deixo sentir a quem quadra

E o Natal a quem o fez,

Pois se escrevo ainda outra quadra

Fico gelado dos pés.

1930

Por trás daquela janela

Cuja cortina não muda

Coloco a visão daquela

Que a alma em si mesma estuda

No desejo que a revela.

Não tenho falta de amor.

Quem me queira não me falta.

Mas teria outro sabor

Se isso fosse interior

Àquela janela alta.

Por quê? Se eu soubesse, tinha

Tudo o que desejo ter.

Amei outrora a Rainha,

E há sempre na alma minha

Um trono por preencher.

Sempre que posso sonhar,

Sempre que não vejo, ponho

O trono nesse lugar;

Além da cortina é o lar,

Além da janela o sonho.

Assim, passando, entreteço

O artifício do caminho

E um pouco de mim me esqueço

Pois mais nada à vida peço

Do que ser o seu vizinho.

1930

"Já repeti o antigo encantamento

E a grande Deusa aos olhos se negou.

Já repeti, nas pausas do amplo vento,

As orações cuja alma é um ser fecundo.

Nada me o abismo deu ou o céu mostrou.

Só o vento volta onde estou toda e só,

E tudo dorme no confuso mundo.

Outrora meu condão fadava as sarças

E a minha evocação do solo erguia

Presenças concentradas das que esparsas

Dormem nas formas naturais das coisas.

Outrora a minha voz acontecia.

Fadas e elfos, se eu chamasse, via,

E as folhas da florestaeram lustrosas.

Minha varinha, com que da vontade

Falava às existências essenciais,

Já não conhece a minha realidade.

Já, se o círculo traço, não há nada.

Murmura o vento alheio extintos ais,

E ao luar que sobe além dos matagais

Não sou mais do que os bosques ou a estrada.

Já me falece o dom com que me amavam.

Já me não torno a forma e o fim da vida

A quantos que, buscando-os, me buscavam.

Já, praia, o mar dos braços não me inunda.

Nem já me vejo ao sol saudado erguida,

Ou, em êxtase mágico perdida,

Ao luar, à boca da caverna funda.

Já as sacras potências infernais,

Que, dormentes sem deuses nem destino,

À substância das coisas são iguais,

Não ouvem minha voz ou os nomes seus.

A música partiu-se do meu hino.

Já meu furor astral não é divino

Nem meu corpo pensado é já um Deus.

E as longínquas deidades do atro poço,

Que tantas vezes, pálida, evoquei

Com a raiva de amar em alvoroço,

Inevocadas hoje ante mim estão.

Como, sem que as amasse, eu as chamei,

Agora, que não amo, as tenho, e sei

Que meu vendido ser consumirão.

Tu, porém, Sol, cujo ouro me foi presa,

Tu, Lua, cuja prata converti,

Se já não podeis dar-me essa beleza

Que tantas vezes tive por querer,

Ao menos meu ser findo dividi -

Meu ser essencial se perca em si,

Só meu corpo sem mim fique alma e ser!

Converta-me a minha última magia

Numa estátua de mim em corpo vivo!

Morra quem sou, mas quem me fiz e havia,

Anónima presença que se beija,

Carne do meu abstrato amor cativo,

Seja a morte de mim em que revivo;

E tal qual fui, não sendo nada, eu seja!"

1930

Gato que brincas na rua

Como se fosse na cama,

Invejo a sorte que é tua

Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais

Que regem pedras e gentes,

Que tens instintos gerais

E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,

Todo o nada que és é teu.

Eu vejo-me e estou sem mim,

Conheço-me e não sou eu.

1931

Não: não digas nada!

Supor o que dirá

A tua boca velada

É ouvi-lo já.

É ouvi-lo melhor

Do que o dirias.

O que és não vem à flor

Das frases e dos dias.

És melhor do que tu.

Não digas nada; sê!

Graça do corpo nu

Que invisível se vê.

1931

De onde é quase o horizonte

Sobe uma névoa ligeira

E afaga o pequeno monte

Que para na dianteira.

E com braços de farrapo

Quase invisíveis e frios

Fazcair seu ser de trapo

Sobre os contornos macios.

Um pouco de alto medito

A névoa só com a ver.

A vida? Não acredito.

A crença? Não sei viver.

1931

Vaga, no azul amplo solta,

Vai uma nuvem errando.

O meu passado não volta.

Não é o que estou chorando.

O que choro é diferente.

Entra mais na alma da alma.

Mas como, no céu sem gente,

A nuvem flutua calma,

E isto lembra uma tristeza

E a lembrança é que entristece,

Dou à saudade a riqueza

De emoção que a hora tece.

Mas, em verdade, o que chora

Na minha amarga ansiedade

Mais alto que a nuvem mora,

Está para além da saudade.

Não sei o que é nem consinto

À alma que o saiba bem

Visto da dor com que minto

Dor que a minha alma tem.

1931

O tempo que eu hei sonhado

Quantos anos foi de vida!

Ah, quanto do meu passado

Foi só a vida mentida

De um futuro imaginado!

Aqui à beira do rio

Sossego sem ter razão.

Este seu correr vazio

Figura, anónimo e frio,

A vida vivida em vão.

A esperança que pouco alcança!

Que desejo vale o ensejo?

E uma bola de criança

Sobe mais que a minha esperança.

Rola mais que o meu desejo.

Ondas do rio, tão leves

Que não sois ondas sequer,

Horas, dias, anos, breves

Passam - verduras ou neves

Que o mesmo sol faz morrer.

Gastei tudo que não tinha

Sou mais velho do que sou.

A ilusão, que me mantinha,

Só no palco era rainha;

Despiu-se, e o reino acabou.

Leve som das águas lentas,

Gulosas da margem ida,

Que lembranças sonolentas

De esperanças nevoentas!

Que sonhos o sonho e a vida!

Que fiz de mim? Encontrei-me

Quando estava já perdido.

Impaciente deixei-me

Como a um louco que teime

No que lhe foi desmentido.

Som morto das águas mansas

Que correm por ter que ser,

Leva não só as lembranças,

Mas as mortas esperanças -

Mortas, porque hão de morrer.

Sou já o morto futuro.

Só um sonho me liga a mim -

O sonho atrasado e obscuro

Do que eu devera ser - muro

Do meu deserto jardim.

Ondas passadas, levai-me

Para o olvido do mar!

Ao que não serei legai-me,

Que cerquei com um andaime

A casa por fabricar.

1924

Hoje que a tarde é calma e o céu tranquilo,

E a noite chega sem que eu saiba bem,

Quero considerar-me e ver aquilo

Que sou, e o que sou o que é que tem.

Olho por todo o meu passado e vejo

Que fui quem foi aquilo em torno meu,

Salvo o que o vagoe incógnito desejo

De ser eu mesmo de meu ser me deu.

Como a páginas já relidas, vergo

Minha atenção sobre quem fui de mim,

E nada de verdade em mim albergo

Salvo uma ânsia sem princípio ou fim.

Como alguém distraído na viagem,

Segui por dois caminhos par a par.

Fui com o mundo, parte da paisagem;

Comigo fui, sem ver nem recordar.

Chegado aqui, onde hoje estou, conheço

Que sou diverso no que informe estou.

No meu próprio caminho me atravesso

Não conheço quem fui no que hoje sou.

Serei eu, porque nada é impossível,

Vários trazidos de outros mundos, e

No mesmo ponto espacial sensível

Que sou eu, sendo eu por estar aqui?

Serei eu, porque todo o pensamento

Podendo conceber, bem pode ser,

Um dilatado e múrmuro momento,

De tempos-seres de quem sou o viver?

1931

Guia-me a só razão.

Não me deram mais guia

Alumia-me em vão?

Só ela me alumia.

Tivesse quem criou

O mundo desejado

Que eu fosse outro que sou

Ter-me-ia outro criado.

Deu-me olhos para ver.

Olho, vejo, acredito.

Como ousarei dizer:

"Cego, fora eu bendito"?

Como o olhar, a razão

Deus me deu, para ver

Para além da visão

Olhar de conhecer.

Se ver é enganar-me,

Pensar um descaminho,

Não sei. Deus os quis dar-me

Por verdade e caminho.

1932

Há quase um ano não escrevo.

Pesada, a meditação

Torna-me alguém que não devo

Interromper na atenção.

Tenho saudades de mim,

De quando, de alma alheada,

Eu era não ser assim,

E os versos vinham de nada.

Hoje penso quanto faço,

Escrevo sabendo o que digo...

Para quem desce do espaço

Este crepúsculo antigo?

1932

Fúria nas trevas o vento

Num grande som de alongar

Não há no meu pensamento

Senão não poder parar.

Parece que a alma tem

Treva onde sopre a crescer

Uma loucura que vem

De querer compreender.

Raiva nas trevas o vento

Sem se poder libertar.

Estou preso ao meu pensamento

Como o vento preso ao ar.

1932

A morte é a curva da estrada,

Morrer é só não ser visto.

Se escuto, eu te ouço a passada

Existir como eu existo.

A terra é feita de céu.

A mentira não tem ninho.

Nunca ninguém se perdeu.

Tudo é verdade e caminho.

1932

Quem bate à minha porta

Tão insistentemente

Saberá que está morta

A alma que em mim sente?

Saberá que eu a velo

Desde que a noite é entrada

Com o vácuo e vão desvelo

De quem não vela nada?

Saberá que estou surdo?

Porque o sabe ou não sabe,

E assim bate, ermo eabsurdo,

Até que o mundo acabe?

1932

Não dormes sob os ciprestes,

Pois não há sono no mundo.

...

O corpo é a sombra das vestes

Que encobrem teu ser profundo.

Vem a noite, que é a morte

E a sombra acabou sem ser.

Vais na noite só recorte,

Igual a ti sem querer.

Mas na Estalagem do Assombro

Tiram-te os Anjos a capa.

Segues sem capa no ombro,

Com o pouco que te tapa.

Então Arcanjos da Estrada

Despem-te e deixam-te nu.

Não tens vestes, não tens nada:

Tens só teu corpo, que és tu.

Por fim, na funda caverna,

Os Deuses despem-te mais.

Teu corpo cessa, alma externa,

Mas vês que são teus iguais.

...

A sombra das tuas vestes

Ficou entre nós na Sorte.

Não estás morto, entre ciprestes.

...

Neófito, não há morte.

1935(ou anterior)

Na sombra do Monte Abiegno

Repousei de meditar.

Vi no alto o alto Castelo

Onde sonhei de chegar.

Mas repousei de pensar

Na sombra do Monte Abiegno.

Quando fora amor ou vida,

Atrás de mim o deixei,

Quando fora desejá-los,

Porque esqueci não lembrei.

À sombra do Monte Abiegno

Repousei porque abdiquei.

Talvez um dia, mais forte

Da força ou da abdicação,

Tentarei o alto caminho

Por onde ao Castelo vão.

Na sombra do Monte Abiegno

Por ora repouso, e não.

Quem pode sentir descanso

Com o Castelo a chamar?

Está no alto, sem caminho

Senão o que há por achar.

Na sombra do Monte Abiegno

Meu sonho é de o encontrar.

Mas por ora estou dormindo,

Porque é sono o não saber.

Olho o Castelo de longe,

Mas não olho o meu querer.

Da sombra do Monte Abiegno

Que me virá desprender?

1932

Do vale à montanha,

Da montanha ao monte,

Cavalo de sombra,

Cavaleiro monge,

Por casas, por prados,

Por quinta e por fonte,

Caminhais aliados.

Do vale à montanha,

Da montanha ao monte,

Cavalo de sombra,

Cavaleiro monge,

Por penhascos pretos,

Atrás e defronte,

Caminhais secretos.

Do vale à montanha,

Da montanha ao monte,

Cavalo de sombra,

Cavaleiro monge,

Por plainos desertos

Sem ter horizontes,

Caminhais libertos.

Do vale à montanha,

Da montanha ao monte,

Cavalo de sombra,

Cavaleiro monge,

Por ínvios caminhos,

Por rios sem ponte,

Caminhais sozinhos.

Do vale à montanha,

Da montanha ao monte

Cavalo de sombra,

Cavaleiro monge,

Por quanto é sem fim,

Sem ninguém que o conte,

Caminhais em mim.

1932

Cansa sentir quando se pensa.

No ar da noite a madrugar

Há uma solidão imensa

Que tem por corpo o frio do ar.

Neste momento insone e triste

Em que não sei quem hei de ser,

Pesa-me o informe real que existe

Na noite antes de amanhecer.

Tudo isto me parece tudo.

E é uma noite a ter um fim

Um negroastral silêncio surdo

E não poder viver assim.

(Tudo isto me parece tudo.

Mas noite, frio, negro sem fim,

Mundo mudo, silêncio mudo -

Ah, nada é isto, nada é assim!)

1932

Não meu, não meu é quanto escrevo,

A quem o devo?

De quem sou o arauto nado?

Porque, enganado,

Julguei ser meu o que era meu?

Que outro me deu?

Mas, seja como for, se a sorte

For eu ser morte

De uma outra vida que em mim vive,

Eu, o que estive

Em ilusão toda esta vida

Aparecida,

Sou grato. Ao que do pó que sou

Me levantou.

(E me fez nuvem um momento

De pensamento).

(Ao de quem sou, erguido pó,

Símbolo só).

1932

Sorriso audível das folhas,

Não és mais que a brisa ali.

Se eu te olho e tu me olhas,

Quem primeiro é que sorri?

O primeiro a sorrir ri.

Ri, e olha de repente,

Para fins de não olhar,

Para onde nas folhas sente

O som do vento passar.

Tudo é vento e disfarçar.

Mas o olhar, de estar olhando

Onde não olha, voltou;

E estamos os dois falando

O que se não conversou.

Isto acaba ou começou?

1930

O poeta é um fingidor

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,

Na dor lida sentem bem,

Não as duas que ele teve,

Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda

Gira, a entreter a razão,

Esse comboio de corda

Que se chama coração.

1931

Dizem que finjo ou minto

Tudo que escrevo. Não.

Eu simplesmente sinto

Com a imaginação.

Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,

O que me falha ou finda,

É como que um terraço

Sobre outra coisa ainda.

Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio

Do que não está ao pé,

Livre do meu enleio,

Sério do que não é.

Sentir? Sinta quem lê!

1933(ou anterior)

Passa uma nuvem pelo sol

Passa uma pena por quem vê.

A alma é como um girassol:

Vira-se ao que não está ao pé.

Passou a nuvem; o sol volta.

A alegria girassolou.

Pendão latente de revolta,

Que hora maligna te enrolou?

1933

É brando o dia, brando o vento.

É brando o sol e brando o céu.

Assim fosse meu pensamento!

Assim fosse eu, assim fosse eu!

Mas entre mim e as brandas glórias

Deste céu limpo e este ar sem mim

Intervêm sonhos e memórias...

Ser eu assim, ser eu assim!

Ah, o mundo é quanto nós trazemos.

Existe tudo quantoexisto.

Há porque vemos.

E tudo é isto, tudo é isto!

1933

Entre o luar e a folhagem,

Entre o sossego e o arvoredo,

Entre o ser noite e haver aragem

Passa um segredo.

Segue-o minha alma na passagem

Tênue lembrança ou saudade,

Princípio ou fim do que não foi,

Não tem lugar, não tem verdade,

Atrai e dói.

Segue-o meu ser em liberdade.

Vazio encanto ébrio de si!

Tristeza ou alegria o traz?

O que sou dele a quem sorri?

Não é nem faz.

Só de segui-lo me perdi.

1933

Ouço, como se o cheiro

De flores me acordasse...

É música - um canteiro

De influência e disfarce.

Impalpável lembrança,

Sorriso de ninguém,

Com aquela esperança

Que nem esperança tem...

Que importa, se sentir

É não se conhecer?

Ouço, e sinto sorrir

O que em mim nada quer.

1933

Nuvens sobre a floresta...

Sombra com sombra a mais...

Minha tristeza é esta -

A das coisas reais.

A outra, a que pertence

Aos sonhos que perdi,

Nesta hora não me vence,

Se a há, não a há aqui.

Mas esta, a do arvoredo

Que o céu sem luz invade,

Faz-me receio e medo...

Quem foi minha saudade?

1933

Não sei se é sonho, se realidade,

Se uma mistura de sonho e vida,

Aquela terra de suavidade

Que na ilha extrema do sul se olvida.

É a que ansiamos. Ali, ali

A vida é jovem e o amor sorri

Talvez palmares inexistentes,

Áleas longínquas sem poder ser,

Sombra ou sossego deem aos crentes

De que essa terra se pode ter

Felizes, nós? Ali, talvez, talvez,

Naquela terra, daquela vez,

Mas já sonhada se desvirtua,

Só de pensá-la cansou pensar;

Sob os palmares, à luz da lua,

Sente-se o frio de haver luar

Ah, nesta terra também, também

O mal não cessa, não dura o bem.

Não é com ilhas do fim do mundo,

Nem com palmares de sonho ou não,

Que cura a alma seu mal profundo,

Que o bem nos entra no coração.

É em nós que é tudo. É ali, ali,

Que a vida é jovem e o amor sorri.

1933

Aqui onde se espera

- Sossego, só sossego -

Isso que outrora era,

Aqui onde, dormindo,

- Sossego, só sossego -

Se sente a noite vindo,

E nada importaria

- Sossego, só sossego -

Que fosse antes o dia,

Aqui, aqui estarei

- Sossego, só sossego -

Como no exílio um rei,

Gozando da ventura

- Sossego, só sossego -

De não ter a amargura

De reinar, masguardando

- Sossego, só sossego -

O nome venerando...

Que mais quer quem descansa

- Sossego, só sossego -

Da dor e da esperança,

Que ter a negação

- Sossego, só sossego -

De todo o coração?

1933

Redemoinha o vento,

Anda à roda o ar.

Vai meu pensamento

Comigo a sonhar.

Vai saber na altura

Como no arvoredo

Se sente a frescura

Passar alta a medo.

Vai saber de eu ser

Aquilo que eu quis

Quando ouvi dizer

O que o vento diz.

1933

Momento imperceptível,

Que coisa foste, que há

Já em mim qualquer coisa

Que nunca passará?

Sei que, passados anos,

O que isto é lembrarei,

Sem saber já o que era,

Que até já o não sei.

Mas, nada só que fosse,

Fica dele um ficar

Que será suave ainda

Quando eu o não lembrar.

1933

Vai alto pela folhagem

Um rumor de pertencer,

Como se houvesse na aragem

Uma razão de querer.

Mas, sim, é como se o som

Do vento no arvoredo

Tivesse um intuito, ou bom

Ou mau, mas feito em segredo,

E que, pensando no abismo

Onde os ventos são ninguém,

Subisse até onde cismo,

E, alto, alado, num vaivém

De tormenta comovesse

As árvores agitadas

Até que delas me viesse

Este mau conto de fadas.

1933

Quando as crianças brincam

E eu as ouço brincar,

Qualquer coisa em minha alma

Começa a se alegrar.

E toda aquela infância

Que não tive me vem,

Numa onda de alegria

Que não foi de ninguém.

Se quem fui é enigma,

E quem serei visão,

Quem sou ao menos sinta

Isto no coração.

1933

Passos tardam na relva

Entre o luar e o luar,

Tudo é eflúvio e selva.

Sente-se alguém passar.

Passa, pisando leve

O chão que o luar desmente,

Num pálido hausto leve

De pisar levemente.

É elfo, é gnomo, é fada

A forma que ninguém vê?

Lembro: não houve nada.

Sinto, e a saudade crê.

1933

O que me dói não é

O que há no coração

Mas essas coisas lindas

Que nunca existirão...

São as formas sem forma

Que passam sem que a dor

As possa conhecer

Ou as sonhar o amor.

São como se a tristeza

Fosse árvore e, uma a uma,

Caíssem suas folhas

Entre o vestígio e a bruma.

1933

Porque é que um sono agita

Em vez de repousar

O que em minha alma habita

E a faz não descansar?

Que externa sonolência,

Que absurda confusão,

Me oprime sem violência

Me faz ver sem visão?

Entre o que vivo e a vida,

Entre quem estou esou,

Durmo numa descida,

Descida em que não vou.

E, num infiel regresso

Ao que já era bruma,

Sonolento me apresso

Para coisa nenhuma.

1933

Contemplo o que não vejo.

É tarde, é quase escuro,

E quanto em mim desejo

Está parado ante o muro.

Por cima o céu é grande;

Sinto árvores além;

Embora o vento abrande,

Há folhas em vaivém.

Tudo é do outro lado,

No que há e no que penso.

Nem há ramo agitado

Que o céu não seja imenso.

Confunde-se o que existe

Com o que durmo e sou

Não sinto, não sou triste,

Mas triste é o que estou.

1933

Entre o sono e o sonho,

Entre mim e o que em mim

É o quem eu me suponho,

Corre um rio sem fim.

Passou por outras margens,

Diversas mais além,

Naquelas várias viagens

Que todo o rio tem.

Chegou onde hoje habito

A casa que hoje sou.

Passa, se eu me medito;

Se desperto, passou.

E quem me sinto e morre

No que me liga a mim

Dorme onde o rio corre -

Esse rio sem fim.

1933

A morte chega cedo,

Pois breve é toda vida

O instante é o arremedo

De uma coisa perdida.

O amor foi começado,

O ideal não acabou,

E quem tenha alcançado

Não sabe o que alcançou.

E a tudo isto a morte

Risca por não estar certo

No caderno da sorte

Que Deus deixou aberto.

1933

Repousa sobre o trigo

Que ondula um sol parado.

Não me entendo comigo.

Ando sempre enganado.

Tivesse eu conseguido

Nunca saber de mim,

Ter-me-ia esquecido

De ser esquecido assim.

O trigo mexe leve

Ao sol alheio e igual.

Como a alma aqui é breve

Com o seu bem e mal!

1933

Tudo que faço ou medito

Fica sempre na metade.

Querendo, quero o infinito.

Fazendo, nada é verdade.

Que nojo de mim me fica

Ao olhar para o que faço!

Minha alma é lúcida e rica,

E eu sou um mar de sargaço -

Um mar onde boiam lentos

Fragmentos de um mar de além...

Vontades ou pensamentos?

Não o sei e sei-o bem.

1933

Se eu, ainda que ninguém,

Pudesse ter sobre a face

Aquele clarão fugace

Que aquelas árvores têm,

Teria aquela alegria

Que as coisas têm de fora,

Porque a alegria é da hora;

Vai com o sol quando esfria.

Qualquer coisa me valera

Melhor que a vida que tenho -

Ter esta vida de estranho

Que só do sol me viera!

1933

Tenho tanto sentimento

Que é frequente persuadir-me

De que sou sentimental,

Mas reconheço,ao medir-me,

Que tudo isso é pensamento,

Que não senti afinal.

Temos, todos que vivemos,

Uma vida que é vivida

E outra vida que é pensada,

E a única vida que temos

É essa que é dividida

Entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é verdadeira

E qual errada, ninguém

Nos saberá explicar;

E vivemos de maneira

Que a vida que a gente tem

É a que tem que pensar.

1933

Durmo. Se sonho, ao despertar não sei

Que coisas eu sonhei.

Durmo. Se durmo sem sonhar, desperto

Para um espaço aberto

Que não conheço, pois que despertei

Para o que inda não sei.

Melhor é nem sonhar nem não sonhar

E nunca despertar.

1933

Viajar! Perder países!

Ser outro constantemente,

Por a alma não ter raízes

De viver de ver somente!

Não pertencer nem a mim!

Ir em frente, ir a seguir

A ausência de ter um fim,

E da ânsia de o conseguir!

Viajar assim é viagem.

Mas faço-o sem ter de meu

Mais que o sonho da passagem.

O resto é só terra e céu.

1933

Que coisa distante

Está perto de mim?

Que brisa fragrante

Me vem neste instante

De ignoto jardim?

Se alguém me dissesse,

Não quisera crer.

Mas sinto-o, e é esse

O ar bom que me tece

Visões sem as ver.

Não sei se é dormindo

Ou alheado que estou;

Sei que estou sentindo

A boca sorrindo

Aos sonhos que sou.

1933

Na ribeira deste rio

Ou na ribeira daquele

Passam meus dias a fio.

Nada me impede, me impele,

Me dá calor ou dá frio.

Vou vendo o que o rio faz

Quando o rio não faz nada.

Vejo os rastros que ele traz,

Numa sequência arrastada,

Do que ficou para trás.

Vou vendo e vou meditando,

Não bem no rio que passa

Mas só no que estou pensando,

Porque o bem dele é que faça

Eu não ver que vai passando.

Vou na ribeira do rio

Que está aqui ou ali,

E do seu curso me fio,

Porque, se o vi ou não vi.

Ele passa e eu confio.

1933

No mal-estar em que vivo

No mal pensar em que sinto,

Sou de mim mesmo cativo,

A mim mesmo minto.

Se fosse outro fora outro.

Se em mim houvesse certeza,

Não seria o fluido e neutro

Que ama a beleza.

Sim, que ama a beleza e a nega

Nesta vida sem bordão

Que contra si mesma alega

Que tudo é vão.

1933

Quando era criança

Vivi, sem saber,

Só para hoje ter

Aquela lembrança.

E hoje que sinto

Aquilo que fui.

Minha vida flui,

Feita do que minto.

Mas nesta prisão,

Livro único, leio

O sorriso alheio

De quem fuientão.

1933

Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva

Não faz ruído senão com sossego.

Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva

Do que não sabe, o sentimento é cego.

Chove. Meu ser(quem sou) renego...

Tão calma é a chuva que se solta no ar

(Nem parece de nuvens) que parece

Que não é chuva, mas um sussurrar

Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.

Chove. Nada apetece...

Não paira vento, não há céu que eu sinta.

Chove longínqua e indistintamente,

Como uma coisa certa que nos minta,

Como um grande desejo que nos mente.

Chove. Nada em mim sente...

1933

Grandes mistérios habitam

O limiar do meu ser,

O limiar onde hesitam

Grandes pássaros que fitam

Meu transpor tardo de os ver.

São aves cheias de abismo,

Como nos sonhos as há.

Hesito se sondo e cismo,

E à minha alma é cataclismo

O limiar onde está.

Então desperto do sonho

E sou alegre da luz,

Inda que em dia tristonho;

Porque o limiar é medonho

E todo passo é uma cruz.

1933

Dorme, que a vida é nada!

Dorme, que tudo é vão!

Se alguém achou a estrada,

Achou-a em confusão,

Com a alma enganada.

Não há lugar nem dia

Para quem quer achar,

Nem paz nem alegria

Para quem, por amar,

Em quem ama confia.

Melhor entre onde os ramos

Tecem dosséis sem ser

Ficar como ficamos,

Sem pensar nem querer.

Dando o que nunca damos.

1933

Não sei que sonho me não descansa

E me faz mal...

Mas eia! o harmônio a guiar a dança

Nesse quintal.

E eu perco o fio ao que não existe

E ouço dançar,

Já não alheio, nem sequer triste,

Só de escutar.

Quanta alegria onde os outros são

E dançam bem!

Dei-lhes de graça meu coração

E o que ele tem.

Na noite calma o harmónio toca

Aquela dança,

E o que em mim sonha um momento evoca

Nova esperança.

Nova esperança que há de cessar

Quando, já dia,

O harmônio eterno que há de acabar

Feche a alegria.

Ah, ser os outros! Se eu o pudesse

Sem outros ser!,

Enquanto o harmônio minha alma enchesse

De o não saber.

1933

Em meus momentos escuros

Em que em mim não há ninguém,

E tudo é névoas e muros

Quando a vida dá ou tem,

Se, um instante, erguendo a fronte

De onde em mim sou aterrado,

Vejo o longínquo horizonte

Cheio de sol posto ou nado,

Revivo, existo, conheço,

E, ainda que seja ilusão

O exterior em que me esqueço,

Nada mais quero nem peço.

Entrego-lhe o coração.

1934

Onda que, enrolada, tornas,

Pequena, ao mar que te trouxe

E ao recuarte transtornas

Como se o mar nada fosse,

Porque é que levas contigo

Só a tua cessação,

E, ao voltar ao mar antigo,

Não levas meu coração?

Há tanto tempo que o tenho

Que me pesa de o sentir.

Leva-o no som sem tamanho

Com que te ouço fugir!

1934

Montes, e a paz que há neles, pois são longe...

Paisagens, isto é, ninguém...

Tenho a alma feita para ser de um monge

Mas não me sinto bem.

Se eu fosse outro, fora outro. Assim

Aceito o que me dão,

Como quem espreita para um jardim

Onde os outros estão.

Que outros? Não sei. Há no sossego incerto

Uma paz que não há,

E eu fito sem o ler o livro aberto

Que nunca me dirá...

1934

Neste mundo em que esquecemos

Somos sombras de quem somos,

E os gestos reais que temos

No outro em que, almas, vivemos,

São aqui esgares e assomos.

Tudo é noturno e confuso

No que entre nós aqui há.

Projeções, fumo difuso

Do lume que brilha ocluso

Ao olhar que a vida dá.

Mas um ou outro, um momento.

Olhando bem, pode ver

Na sombra e seu movimento

Qual no outro mundo é o intento

Do gesto que o faz viver.

E então encontra o sentido

Do que aqui está a esgarçar,

E volve ao seu corpo ido,

Imaginado e entendido,

A intuição de um olhar.

Sombra do corpo saudosa,

Mentira que sente o laço

Que a liga à maravilhosa

Verdade que a lança, ansiosa,

No chão do tempo e do espaço.

1934

Foi um momento

O em que pousaste

Sobre o meu braço,

Num movimento

Mais de cansaço

Que pensamento.

A tua mão

E a retiraste.

Senti ou não?

Não sei. Mas lembro

E sinto ainda

Qualquer memória

Fixa e corpórea

Onde pousaste

A mão que teve

Qualquer sentido

Incompreendido,

Mas tão de leve!...

Tudo isto é nada,

Mas numa estrada

Como é a vida

Há uma coisa

Incompreendida...

Sei eu se quando

A tua mão

Senti pousando

Sobre o meu braço,

E um pouco, um pouco,

No coração,

Não houve um ritmo

Novo no espaço?

Como se tu,

Sem o querer,

Em mim tocasses

Para dizer

Qualquer mistério,

Súbito e etéreo,

Que nem soubesses

Que tinha ser.

Assim a brisa

Nos ramos diz

Sem o saber

Uma imprecisa

Coisa feliz.

1934

Cessa o teu canto!

Cessa, que, enquanto

O ouvi, ouvia

Uma outra voz

Como que vindo

Nos interstícios

Do brando encanto

Com que o teu canto

Vinha até nós.

Ouvi-te e ouvi-a

No mesmo tempo

E diferentes

Juntas a cantar.

E a melodia

Que não havia,

Se agora a lembro,

Faz-me chorar.

Foi tua voz

Encantamento

Que, sem querer,

Nesse momento

Vago acordou

Um ser qualquer

Alheio a nós

Que nos falou?

Não sei. Não cantes!

Deixa-me ouvir

Qual o silêncio

Que há a seguir

A tu cantares!

Ah, nada, nada!

Só os pesares

De terouvido,

De ter querido

Ouvir para além

Do que é o sentido

Que uma voz tem.

Que anjo, ao ergueres

A tua voz

Sem o saberes

Veio baixar

Sobre esta terra

Onde a alma erra

E com as asas

Soprou as brasas

De ignoto lar?

Não cantes mais!

Quero o silêncio

Para dormir

Qualquer memória

Da voz ouvida,

Desentendida,

Que foi perdida

Por eu a ouvir...

1934

... E assim vedes, meu Irmão, que as verdades que vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade.

Do ritual do grau de Mestre do Átrio na Ordem Templária de Portugal

Conta a lenda que dormia

Uma Princesa encantada

A quem só despertaria

Um Infante, que viria

De além do muro da estrada

Ele tinha que, tentado,

Vencer o mal e o bem,

Antes que, já libertado,

Deixasse o caminho errado

Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,

Se espera, dormindo espera.

Sonha em morte a sua vida,

E orna-lhe a fronte esquecida,

Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,

Sem saber que intuito tem,

Rompe o caminho fadado.

Ele dela é ignorado.

Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino -

Ela dormindo encantada,

Ele buscando-a sem tino

Pelo processo divino

Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro

Tudo pela estrada fora,

E falso, ele vem seguro,

E, vencendo estrada e muro,

Chega onde em sono ela mora.

E, inda tonto do que houvera,

À cabeça, em maresia,

Ergue a mão, e encontra hera,

E vê que ele mesmo era

A Princesa que dormia.

1934(ou anterior)

Houve um ritmo no meu sono,

Quando acordei o perdi.

Porque saí do abandono

De mim mesmo, em que vivi?

Não sei que era o que não era.

Sei que suave me embalou,

Como se o embalar quisera

Tornar-me outra vez quem sou.

Houve uma música finda

Quando acordei de a sonhar.

Mas não morreu: dura ainda

No que me faz não pensar.

1934

Azul, ou verde, ou roxo, quando o sol

O doura falsamente de vermelho,

O mar é áspero , casual ou mo(le),

É uma vez abismo e outra espelho.

Evoco porque sinto velho

O que em mim quereria mais que o mar

Já que nada ali há por desvendar.

Os grandes capitães e os marinheiros

Com que fizeram a navegação,

Jazem longínquos, lúgubres parceiros

Do nosso esquecimento e ingratidão.

Só o mar, às vezes, quando são

Grandes as ondas e é deveras mar

Parece incertamente recordar.

Mas sonho... O mar é água, é agua nua,

Serva do obscuro ímpeto distante

Que, como a poesia, vem da lua

Que umavez o abate outra o levanta.

Mas, por mais que descante

Sobre a ignorância natural do mar,

Pressinto-o, vazante, a murmurar.

Quem sabe o que é a alma? Quem conhece

Que alma há nas coisas que parecem mortas.

Quanto em terra ou em nada nunca esquece.

Quem sabe se no espaço vácuo há portas?

Ó sonho que me exortas

A meditar assim a voz do mar,

Ensina-me a saber-te meditar.

Capitães, contramestres - todos nautas

Da descoberta infiel de cada dia ó

Acaso vos chamou de ignotas flautas

A vaga e impossível melodia.

Acaso o vosso ouvido ouvia

Qualquer coisa do mar sem ser o mar

Sereias só de ouvir e não de achar?

Quem atrás de intérminos oceanos

Vos chamou à distância como quem

Sabe que há nos corações humanos

Não só uma ânsia natural de bem

Mas, mais vaga, mais subtil também,

Uma coisa que quer o som do mar

E o estar longe de tudo e não parar.

Se assim é, e se vós e o mar imenso

Sois qualquer coisa, vós por o sentir

E o mar por o ser, disto que penso;

Se no fundo ignorado do existir

Há mais alma que a que pode vir

À tona vã de nós, como à do mar,

Fazei-me livre, enfim, de o ignorar.

Dai-me uma alma transposta de argonauta,

Fazei que eu tenha, como o capitão

Ou o contramestre, ouvidos para a flauta

Que chama ao longe o nosso coração,

Fazei-me ouvir, como a um perdão,

Numa reminiscência de ensinar,

O antigo português que fala o mar!

1935

Começa a ir ser dia,

O céu negro começa,

Numa menor negrura

Da sua noite escura,

A ter uma cor fria

Onde a negrura cessa.

Um negro azul-cinzento

Emerge vagamente

De onde o oriente dorme

Seu tardo sono informe,

E há um frio sem vento

Que se ouve e mal se sente.

Meu eu, o mal dormido,

Não sinto noite ou frio,

Nem sinto vir o dia

Da solidão vazia.

Só sinto o indefinido

Do coração vazio.

Em vão o dia chega

A quem não dorme, a quem

Não tem que ter razão

Dentro do coração,

Que quando vive nega

E quando ama não tem.

Em vão, em vão, e o céu

Azula-se de verde

Acinzentadamente.

Que é que a minha alma sente?

Nem isto, não, nem eu,

Na noite que se perde.

1935

Amamos sempre no que temos

O que não temos quando amamos.

O barco para, largo os remos

E, um a outro, as mãos nos damos.

A quem dou as mãos?

À Outra.

Teus beijos são de mel de boca,

São os que sempre pensei dar,

E agora a minha boca toca

A boca que eu sonhei beijar.

De quem é a boca?

DaOutra.

Os remos já caíram na água,

O barco fez o que a água quer.

Meus braços vingam minha mágoa

No abraço que enfim podem ter.

Quem abraço?

A Outra.

Bem sei, és bela, és quem desejei...

Não deixe a vida que eu deseje

Mais que o que pode ser teu beijo

O poder ser eu que te beije.

Beijo, e em quem penso?

Na Outra.

Os remos vão perdidos já,

O barco vai não sei para onde.

Que fresco o teu sorriso está,

Ah, meu amor, e o que ele esconde!

Que é do sorriso

Da Outra?

Ah, talvez mortos ambos nós,

Num outro rio sem lugar

Em outro barco outra vez sós

Possamos nós recomeçar.

Que talvez sejas

A Outra.

Mas não, nem onde essa paisagem

É sob eterna luz eterna

Te acharei mais que alguém na viagem

Que amei com ansiedade terna

Por ser parecida

Com a Outra.

Ah, por ora, idos remo e rumo,

Dá-me as mãos, a boca, o teu ser.

Façamos desta hora um resumo

Do que não poderemos ter.

Nesta hora, a única,

Sê a Outra.

1935

Não me digas mais nada. O resto é a vida.

Sob onde a uva está amadurecida

Moram meus sonos, que não querem nada.

Que é o mundo? Uma ilusão vista e sentida.

Sob os ramos que falam com o vento,

Inerte, abdico do meu pensamento.

Tenho esta hora e o ócio que está nela.

Levem o mundo: deixem-me o momento!

Se vens, esguia e bela, deitar vinho

Em meu copo vazio, eu, mesquinho

Ante o que sonho, morto te agradeço

Que não sou para mim mais que um vizinho.

Quando a jarra que trazes aparece

Sobre meu ombro e sua curva desce

A deitar vinho, sonho-te, e, sem ver-te,

Por teu braço teu corpo me apetece.

Não digas nada que tu creias. Fala

Como a cigarra canta. Nada iguala

O ser um som pequeno entre os rumores

Com que este mundo .

A vida é terra e o vivê-la é lodo.

Tudo é maneira, diferença ou modo.

Em tudo quanto faças sê só tu,

Em tudo quanto faças sê tu todo.

1935

Teus olhos entristecem

Nem ouves o que digo.

Dormem, sonham esquecem...

Não me ouves, e prossigo.

Digo o que já, de triste,

Te disse tanta vez...

Creio que nunca o ouviste

De tão tua que és.

Olhas-me de repente

De um distante impreciso

Com um olhar ausente.

Começas um sorriso.

Continuo a falar.

Continuas ouvindo

O que estás a pensar,

Já quase não sorrindo.

Até que neste ocioso

Sumir da tarde fútil,

Se esfolha silencioso

O teu sorriso inútil.

1935

Há doenças piores que as doenças,

Há dores que não doem,nem na alma

Mas que são dolorosas mais que as outras.

Há angústias sonhadas mais reais

Que as que a vida nos traz, há sensações

Sentidas só com imaginá-las

Que são mais nossas do que a própria vida.

Há tanta coisa que, sem existir,

Existe, existe demoradamente,

E demoradamente é nossa e nós...

Por sobre o verde turvo do amplo rio

Os circunflexos brancos das gaivotas...

Por sobre a alma o adejar inútil

Do que não foi, nem pôde ser, e é tudo.

Dá-me mais vinho, porque a vida é nada.

1935

No ouro sem fim da tarde morta,

Na poeira de ouro sem lugar

Da tarde que me passa à porta

Para não parar,

No silêncio dourado ainda

Dos arvoredos verde fim,

Recordo. Eras antiga e linda

E estás em mim...

Tua memória há sem que houvesses,

Teu gesto, sem que fosses alguém,

Como uma brisa me estremeces

E eu choro um bem...

Perdi-te. Não te tive. A hora

É suave para a minha dor.

Deixa meu ser que rememora

Sentir o amor,

Ainda que amar seja um receio,

Uma lembrança falsa e vã,

E a noite deste vago anseio

Não tenha manhã.

1935(?)

Sonhos, sistemas, mitos, ideias...

Fito a água insistente contra o cais,

E, como flocos de um papel rasgado,

A ela dando-me como a um justo fado,

Sigo-os com os olhos em que não há mais

Que um vão desassossego resignado.

Eles a mim como consolarão -

A mim que de inquieto já nem choro;

Que na erma mente e no ermo coração

Sombras, só sombras, sombra, rememoro;

A mim, em tudo, sempre, em vão.

Cansado até dos deuses que não são?

1935(?)

Na quinta entre ciprestes

Secaram todas as fontes,

As rosas brancas agrestes

Trazidas do fim dos montes

Vós mas tirastes, que as destes...

No rio ao pé de salgueiros

Passaram as águas em vão,

Com tristezas de estrangeiros

Passaram pelos salgueiros

As ondas, sem ter razão.

1935(?)

Dizem?

Esquecem.

Não dizem?

Disseram.

Fazem?

Fatal.

Não fazem?

Igual.

Por quê

Esperar?

- Tudo é

Sonhar.

1935(?)

Cerca de grandes muros quem te sonhas.

Depois, onde é visível o jardim

Através do portão de grade dada,

Põe quantas flores são as mais risonhas,

Para que te conheçam só assim.

Onde ninguém o vir não ponhas nada.

Faze canteiros como os que outros têm,

Onde os olhares possam entrever

O teu jardim como lhe vais mostrar.

Mas onde és teu, e nunca o vê ninguém

Deixa as flores que vêm do chão crescer

E deixa as ervas naturais medrar.

Faze de ti um duplo ser guardado;

E que ninguém, que veja e fite, possa

Sabermais que um jardim de quem tu és -

Um jardim ostensivo e reservado,

Por trás do qual a flor nativa roça

A erva tão pobre que nem tu a vês...

1935(?)

(Falta uma citação de Sêneca)

Ai que prazer

Não cumprir um dever,

Ter um livro para ler

E não o fazer!

Ler é maçada,

Estudar é nada.

O sol doira

Sem literatura.

O rio corre, bem ou mal,

Sem edição original.

E a brisa, essa,

De tão naturalmente matinal,

Como tem tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.

Estudar é uma coisa em que está indistinta

A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quanto há bruma,

Esperar por D. Sebastião,

Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...

Mas o melhor do mundo são as crianças,

Flores, música, o luar, e o sol, que peca

Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto

É Jesus Cristo,

Que não sabia nada de finanças

Nem consta que tivesse biblioteca...

1935

O céu, azul de luz quieta,

As ondas brandas a quebrar,

Na praia lúcida e completa -

Pontos de dedos a brincar.

No piano anónimo da praia

Tocam nenhuma melodia

De cujo ritmo por fim saia

Todo o sentido deste dia.

Que bom, se isto satisfizesse!

Que certo, se eu pudesse crer

Que esse mar e essas ondas e esse

Céu têm vida e têm ser.

1935(?)

A criança loura

Jaz no meio da rua,

Tem as tripas de fora

E por uma corda sua

Um comboio que ignora.

A cara está um feixe

De sangue e de nada.

Luz um pequeno peixe

- Dos que boiam nas banheiras -

À beira da estrada.

Cai sobre a estrada o escuro.

Longe, ainda uma luz doura

A criação do futuro...

E o da criança loura?

1929(ou anterior)

Não tínhamos ainda visto o cadáver de nosso Pai prudente e sábio. Por isso afastámos para um lado o altar. Então pudemos levantar uma chapa forte de metal amarelo, e ali estava um belo corpo célebre, inteiro e incorrupto..., e tinha na mão um pequeno livro em pergaminho, escrito a ouro, intitulado T., que é, depois da Bíblia, o nosso mais alto tesouro... nem deve ser facilmente submetido à censura do mundo.

Fama Fraternitatis Roseae Crucis.

I

Quando, despertos deste sono, a vida,

Soubermos o que somos, e o que foi

Essa queda até Corpo, essa descida

Até à noite que nos a Alma obstrui,

Conheceremos pois toda a escondida

Verdade do que é tudoque há ou flui?

Não: nem na Alma livre é conhecida...

Nem Deus, que nos criou, em Si a inclui.

Deus é o Homem de outro Deus maior:

Adam Supremo, também teve Queda;

Também, como foi nosso Criador,

Foi criado, e a Verdade lhe morreu...

De além o Abismo, Spirito Seu, Lha veda;

Aquém não a há no Mundo, Corpo Seu.

II

Mas antes era o Verbo, aqui perdido

Quando a Infinita Luz, já apagada,

Do Caos, chão do Ser, foi levantada

Em Sombra, e o Verbo ausente escurecido.

Mas se a Alma sente a sua forma errada,

Em si, que é Sombra, vê enfim luzido

O Verbo deste mundo, humano e ungido,

Rosa Perfeita, em Deus crucificada.

Então, senhores do limiar dos Céus,

Podemos ir buscar além de Deus

O Segredo do Mestre e o Bem profundo;

Mas só de aqui, mas já de nós, despertos,

No sangue atual de Cristo enfim, libertos

Do a Deus que morre a geração do Mundo.

III

Ah, mas aqui, onde irreais erramos,

Dormimos o que somos, e a verdade,

Inda que enfim em sonhos a vejamos,

Vemo-la, porque em sonho, em falsidade.

Sombras buscando corpos, se os achamos

Como sentir a sua realidade?

Com mãos de sombra. Sombras, que tocamos?

Nosso toque é ausência e vacuidade.

Quem desta Alma fechada nos liberta?

Sem ver, ouvimos para além da sala

De ser: mas como, aqui, a porta aberta?

Calmo na falsa morte a nós exposto,

O Livro ocluso contra o peito posto,

Nosso Pai Rosaeacruz conhece e cala.