Jacob Grimm and Wilhelm Grimm

"Perolas e Diamantes: Contos Infantis"

Carta-prefacio

... Sr. Henrique Marques Junior.

Pede-me V. algumas palavras para acompanhar o decimo volumesinho da sua encantadora bibliotéca infantil; e eu, abrindo uma excéção aos meus hábitos, de bom grado lhe envio o que deseja para abrir as suas "Perolas e diamantes."

E digo abro uma excéção, porque até hoje me tenho sistematicamente recusado a prologar livros alheios, assim como para os meus jámais tenho pedido prologos a outros camaradas. Mas isto não quer dizer que V. tenha andado mal fazendo-o, pelo contrario tem feito muito bem em vista do assunto de que se trata e das pessôas autorisadas que tem chamado a depôr no tribunal da opinião publica. Isto porque a questão pedagogica, a que se liga a litteratura infantil, tem tantos controvertores que sobre ella ainda não se póde, com segurança, dogmatisar preceitos e sistemas.

Muitos pedagogistas, e eu estou com elles, estimam a literatura infantil muito variada e imaginosa e aceitam como util o conto tradicional, o conto fantastico, emfim.

Entre muitas razões que para issoapontam é o prazer excécional que esses contos despertam na criança, e vêr que com elles, mais do que com outros, se desperta e desenvolve no espirito infantil o gosto da leitura.

Outras, pessôas gradas e ponderadas que desejam educar as crianças como quem cria flores perfeitas para determinados resultados já previstos pela sciencia, protestam contra a fantasia e querem só a verdade...

Como se nós podessemos explicar a um pequenino espirito que se entre-abre á luz o que é uma geleira, uma borboleta, um trasatlantico sem o auxilio de fantasia!

Comprehenderá a criança melhor que um homem possa descer ao fundo glauco das ondas revestido d'um escafandro do que vá aos infernos buscar o cabello de ouro do diabo?...

Para ellas tudo são surpresas, tudo maravilhas.

Acrescentando ainda que os contos educativos e moraes para o serem, igualmente são fantasiados e para a maior parte das crianças é tão longiqua, tão extraordinaria uma viagem á Suissa ou á Italia, como uma passeata dada com as botas de sete leguas do gigante.

Por mais que se queira, não é possivel fugir á fantasia, que é afinal a parte intelectual e superior da vida; o ponto está em que se canalise devidamente a atenção e o gosto infantil e se lhe vá anotando o que de impossivel se conta para os entreter.

Os psicólogos estão muito enganados; não são os contos fantasticos que desenvolvem as imaginações desvairadas: a criança logo que começa a raciocinar sabe muito bem discernir até onde chega o possivel e onde se entra no limite do impossivel. Tem até graça uma observação que tenho feito entre as crianças do meu conhecimento - e não são poucas as que tenho estudado - a criança mais fantasista, mais imaginosa, mais creadora de sonhos de acordado, é a que menos lê, a que menos se interessa pelas criações alheias. As ponderadas, as serenas, as positivas, aceitam esse acepipe como um prazer do espirito e não desvairam com elle.

Veja-se e compare-se a riqueza fabulosa das literaturas infantis das raças frias do norte, em comparação com as das raças latinas.

Veja-se como lá a fantasia se expande livremente e como são familiares a toda a gente os contos e fabulas tradicionaes.

Por cá abusa-se do sentimentalismo como se fosse qualidade que désse mais condições de resistencia ao ser humano.

E... para terminar, que o espaço é pouco, dir-lhe hei que considero bem o incluir a serie graciosa que acaba de enfeixar sob o sugestivo titulo de "Perolas e diamantes," verdadeiras joias preciosas do escrinio magnifico dos mestres suprêmos que foram, no genero, os irmãos Grimm.

Não esquecerei nunca o deslumbramento, o encanto que senti ao

lêr,pela primeira vez, estes contos, e a anciedade com que acompanhei o homem-urso na sua dolorida peregrinação enfeudado ao diabo... desejava falar n'esta pequenina collecção destacando um por um dos seus lindos episodios, mas... tenho que cinjir-me ao pequeno espaço que me é dado.

Termino, pois, dizendo-lhe: em nome das crianças portuguêzas agradeço o cuidado que tem tido em lhes escolher lindos contos para seu prazer, e em nome das mães pedindo-lhe que não desanime na empreza.

A literatura portuguêza é ainda pobre, apezar do que ultimamente se tem feito; precisamos mais e mais...

As crianças tudo merecem, ellas que nos lêem com tanto enthusiasmo e tão sinceramente nos estimam.

Creia-me

Anna de Castro Osorio.

O violino maravilhoso

Era uma vez um homem muito rico, mas muito avarento, que tinha como creado um rapaz honesto e activo, como não haverá muitos; todas as manhans o moço se erguia ao romper da alva e só se deitava ao ultimo cantar do gallo.

Quando havia algum trabalho mais penoso, ante o qual todos recuavam, o rapaz fazia-o, contente, satisfeito e sem sombra de azedume.

Logo que acabou o primeiro anno de permanencia em casa do avarento, que não estipulára soldada, não recebeu um ceitil de paga, pensando de si para si que o moço, não tendo dinheiro, não se tentaria com outra collocacão. O rapaz calou-se e continuou a trabalhar como d'antes; ao cabo de dois annos, o avarento nada deu e o rapaz permaneceu no seu mutismo.

Ao fim do terceiro anno, o rico, espicaçado pela consciencia, metteu a mão ao bolso para remunerar o fiel creado, mas, raciocinando, arrependeu-se e tirou a mão vasia. O rapaz exclamou então:

- Patrão servi-o tres annos o melhor que me foi possivel; agora quero vêr mundo e por isso peço que me pague as soldadas que me deve.

- Tens razão - respondeu o rico avarento - fiquei sempre muito satisfeito com o teu trabalho e a tua boa-vontade, e por isso vou remunerar-te como mereces. Aqui tens tres escudos novos; é um por cada anno que me serviste.

O rapaz, que andava sempre alegre e que era d'uma grande simplicidade no que respeitava a dinheiro, julgou ter recebido uma fortuna que lhe permittiria viver vida folgada por largos annos.

Disse adeus ao antigo patrão e foi-se embora, atravessando montes e valles, cantando, saltando e alegre que nem um passarinho.

Ao acercar-se d'um monte, viu sair um velhinho muito corcovado que lhe gritou:

- Olé companheiro, não pareces levar em conta de pesares a tua vida?!

- Que ganho eu em me apoquentar? - retorquiu o moço - Tenho na algibeira a soldadade tres annos de trabalho.

- E a quanto monta essa fortuna?

- A tres escudos novinhos, muito luzidios. Olha, sentel-os trincolejar, quando lhes toco com as mãos?

- Ora ouve cá - tornou o gnomo, de bom coração como se vae vêr. Eu estou muito velhinho, e forças para trabalhar já não tenho; tu, que és novo e forte, estás ainda em bom tempo de ganhares a vida.

O rapaz, que era de boa indole, apiedou-se do velho gnomo e fez-lhe presente dos tres preciosos escudos que tanto prazer lhe davam.

- Como és esmoler - expressou-se então o genio bom em figura de gnomo - dou-te licença para que me peças tres cousas que são a paga dos teus tres escudos.

- Então, pois sim! - fez o rapaz incredulamente - Isto que tu queres fazer é só do dominio das phantasias para entreter creanças. Mas, emfim, sempre quero experimentar. Desejo então: uma espingarda que acerte logo no que eu alveje; um violino que tenha a virtude de forçar a bailar todos quantos me oiçam; e, finalmente, que toda e qualquer pessoa me conceda, sem mais a quellas, a graça que eu pedir.

Ilustração da página 22

- Ai, ai! lastimava-se o infeliz judeu

- És modesto no pedir - retrucou o gnomo que, curvando-se, tirou do monte uma espingarda, e um bonito violino que se podia metter na

algibeira. Aqui tens - continuou o gnomo ao dar-lh'os - e fica sciente de que serás servido sempre na primeira graça que solicitares.

O rapaz, jovialissimo, continuou a sua róta. Depois de caminhar um boccado deparou-se-lhe um judeu, muito feio, com barbas de chibo muito compridas e que estava absorto a ouvir o canto de uma avesinha.

- É extraordinario que um animal de tão pequeno talhe possua um trinado tão cheio. Quanto não daria eu para o ter engaiolado!

- Posso satisfazer o teu desejo - disse o rapaz que tinha ouvido as ultimas palavras, e apontando a espingarda ao passarinho este caiu atordoado em cima dos espinhos.

- Vá lá, seu maroto, vá lá buscar o passarinho.

- Tractas-me com crueldade - respondeu o judeu - mas não deixo de agradecer-te e vou apanhar a avesinha.

Em seguida metteu-se pelos espinhos custando-lhe a abrir caminho. De subito o rapaz teve uma estupenda lembrança: principiou a dar arcadas no violino. Logo o judeu ergueu as pernas e começou a saltar, a pular, a torcer-se todo, ficando preso nos espinhos dos ramos, em que se achava e que lhe espicaçavam a cara, arrancando-lhe asbarbas; ficou com o vestuario todo rasgado e a cara a escorrer sangue.

- Ai, ai! - lastimava-se o infeliz judeu - Socega, aquieta-te, não toques mais n'esse amaldiçoado instrumento; aqui não é logar proprio para baile!

O azougado moço não fazia caso do pedido pensando com os seus botões:

- Este rabino esfolou tanto infeliz em quanto poude, que é justo que seja esfolado agora!

E de novo tomou o violino tirando accordes mais ligeiros. O pobre judeu, forçado a acompanhar o compasso, pulava e saltava; a cara cada vez estava mais ensanguentada, o fato desfazia-se em farrapos e o pobre velho gemia de dôr. A subitas gritava:

- Apieda-te de mim, pelas barbas de Abrahão, que em paga te darei uma bolsa cheia de dinheiro que trago commigo.

- Alegras-me tanto com essa boa-nova que vou guardar o dinheiro. Antes, porém, quero dar-te os meus parabens pela maneira graciosa e original por que danças! É uma perfeição!

O judeu então, entregando-lhe a bolsa que promettêra, suspirou

immenso, emquanto que o alegre moço continuou a andar, cantando. Quando já o não avistou, o rabino, não podendo conter o seu rancor, exclamou:

- Musico das duzias, estás a contas commigo. Grande marau! Has de pagar-me a partida mais cara do que ossos!

Tendo com essa fala dado vasão ao seu odio, seguiu por atalhos e alcançou a cidade mais proxima antes que o rapaz apparecesse. Uma vez lá, foi queixar-se ao juiz n'estes termos:

- Venho aqui pedir justiça, senhor, para um maroto que me atacou maltractou e roubou o que eu trazia. A prova de que não minto é olhar-me a maneira porque vem o fato e a minha cara. Forçou-me a dar-lhe a bolsa que trazia cem moedas d'ouro, que eram todo o meu peculio, as economias que consegui com o meu trabalho, o unico bem que possuia. Faça todo o possivel para que esse thesouro me seja restituido.

Ilustração da página 30

O moço então... tocou o mais possivel...

- Foi com alguma arma que o gatuno te pôz assim? - perguntou a autoridade.

- Nada, não senhor. Agarrou-me e agatanhou-me. É ainda moço, e traz uma espingarda e um violino; com estes dados facilmente se conhece.

O magistrado pôz em campo os guardas, que depressa viram o indigitado marau, que muito tranquilamente se encaminhou para essa localidade. Deram-lhe voz de prisão e trouxeram-n'o ante o magistrado e o judeu, que repetiu a accusação.

- Não toquei n'essa creatura nem com um dedo - defendeu-se o rapaz - assim como não lhe tirei á força o dinheiro que elle trazia;offereceu-me da melhor vontade para que eu não tocasse mais no violino, cujos accordes o faziam nervoso!

- É mentira! - exclamou o rabino - Está a mentir impunemente!

- Está resolvida a questão? - ajuntou o magistrado - pois é caso extraordinario um judeu dar de mão beijada uma bolsa com ouro, só por não ouvir um boccado de musica. Pois senhor: a sentença do seu mau acto está lavrada: vae ser enforcado immediatamente!

O verdugo - que se havia ido chamar, segurou o innocente moço, conduziu-o á forca, que já estava erguida na praça principal onde accorreu toda a cidade em pezo, e o rabino fôra o primeiro a mostrar-se

fazendo menção de soccar o pobre condemnado, verberando:

- Marau, vaes ter a recompensa que te é devida!

O moço conservou-se muito tranquillo; subiu sosinho a escada appoiada á forca; ao chegar ao topo, virou-se para o juiz já togado, que viera vistoriar o patibulo e solicitou-lhe:

- Antes de ter o nó na garganta, concede-me um derradeiro favor?

- Concedo - respondeu o magistrado - desde o momento em que não seja o perdão!

- Nada d'isso é, pois não sou tão exigente... desejava apenas tirar uns ligeiros accordes do violino!

Ao ouvir taes palavras, o rabino deu um estridente grito de susto e pediu encarecidamente ao juiz que não consentisse!

- Qual a razão porque não hei de conceder a graça que este homem me pediu, se é a unica alegria que por instantes posso dar-lhe? Tragam-lhe o violino.

- Ai, meu Deus! - lamentou o rabino ao querer fugir, mas sem que lhe fosse possivel abrir caminho pela compacta massa de povo que enchia a praça.

- Dou-lhe uma peça d'ouro - prometteu elle no auge da aflicção - se me amarrar com força ao pau da forca!

N'esse instante, porém, o rapaz deu o primeiro toque no violino. O magistrado, o escrivão, o beleguim, os guardas, emfim tudo o que compunha o corpo da magistratura da terra, os circumstantes, o proprio judeu, tiveram um estremecimento; ao segundo toque, todos ergueram as pernas, o proprio verdugo desceu a escada e collocou-se em pé de dança.

O moço então - ao vêl-os n'aquella pouco parlamentar attitude - tocou o mais possivel, e agora os vereis: o povo fazia cabriolas; o juiz e o judeu saltavam como que movidos por molas; rapazinhos, velhos, magros, gordos, tudo dançava; se até os cães se erguiam nas patas de traz e dançavam como todos! O condemnado deu uns accordes mais fortes e n'essa occasião era inexplicavel o movimento: pareciam possessos de algum espirito ruim, batendocom as cabeças umas nas outras, pizando-se, acotovellando-se, atropellando-se. Gemiam com dores, e o magistrado, afflicto, fatigadissimo, pediu:

- Não toques mais que eu perdôo-te! Foi o que o moço quiz ouvir, visto

que, concordando que o gracejo fôra longo, parou e guardou o violino no bolso, desceu os degraus e veiu postar-se em frente do rabino que, esfalfado, extenuado exhausto, se sentára na rua, respirando a custo.

- Agora és tu quem vaes confessar a proveniencia da bolsa que me déste, com peças d'ouro. Não mintas, de contrario pego novamente no violino e tornas a dançar uma farandola! - taes as palavras que o rapaz dirigiu ao judeu, que confessou terrificado:

- Roubei-a, roubei-a, tu tiveste jus a ella pela tua honestidade; dei-t'a para que não tocasses mais no violino!

Apparecendo o juiz, já um pouco refeito do cançasso, inqueriu do que se havia passado e provando-se á evidencia que tinha havido roubo, mandou enforcar o rabino.

João no auge da alegria

Era uma vez um rapaz que dava pelo nome de João e que esteve a servir durante sete annos n'um logarejo de provincia. Ao cabo d'esse tempo, despediu-se do patrão e disse-lhe:

- Patrão, terminou o meu tempo de serviço para que fôra chamado, mas, desejando regressar para casa de minha mãe, precisava que me pagasse o meu salario.

- Como fôste sempre fiel e honesto - respondeu o patrão - mereces boa paga; e, pronunciando estas palavras, deu-lhe uma barra quase tão grande como a cabeça do seu antigo creado.

João tirou o lenço da algibeira, embrulhou n'elle a barra, pôl-a aos hombros e metteu pernas a caminho em direitura á casa da mãe. Andando sempre, ainda que custando-lhe a andar, por causa do peso do fardo, viu passar a seu lado um viandante trotando satisfeito n'um bonito e fogoso corcel.

- Que bom ha de ser andar a cavallo! - exclamou João em tom alto. - Aquelle homem vae alli commodamente sentado, não dá topadas nas pedras, não estraga as botas e anda sem que dê por isso.

- Mas olha lá, ó rapaz - respondeu o viandante que lhe ouvia a exclamativa - porque é que vaes a pé?

- Porque assim me é necessario - tornou João - Levo uma trouxa muito pesada que tem de ir para casa; é ouro, é certo, mas pesa-me como

chumbo e quasi me custa levantar o pescoço!

Ilustração da página 37

- Queres tu entrar n'uma combinação commigo?

- Queres tu entrar n'uma combinação commigo? - aventurou o cavalleiro, que fizera estacar o animal - Faze troca: eucedo-te o meu bonito cavallo dando-me tu a barra d'ouro!

- Com o maximo prazer! Advirto-o, porêm, de que o carrego é pesado!

O viandante depressa se desmontou do ginete, ajudou João a montar-se e em seguida tomou a barra, dizendo ao ingenuo moço, emquanto lhe dava as guias:

- Assim que desejes andar tão veloz como o vento, basta dares um estalido com a lingua e gritares: upa, upa!

João ficou louco de contente, apenas se viu escarranchado no cavallo, e partiu a rapido galope. Ao fim de certo tempo, lembrou-se d'ir mais depressa ainda, e, dando um estalido com a lingua, incitou: upa upa! O animal, comprehendendo a indicação, largou n'uma corrida desenfreada, dando grandes upas e taes foram elles que o alegre João, não podendo suster-se no dorso do animal, caiu estatelado no meio da estrada, quasi á beira d'um poço. O cavallo continuou a correr, mas um aldeão que vinha em sentido inverso, trazendo uma vacca, agarrou-o pela redea e assim o levou para juncto de João que, levantando-se, estava a vêr se havia soffrido algum desastre com o trambulhão.

- Olha que asneira, montar a cavallo! Arrisca-se a gente a deparar um animal como este que nos atira de pernas ao ar! Nunca mais caio n'outra. Agradeço o seu favor, mas não me fale no cavallo; se fosse uma vaquinha, isso então era outro cantar; basta levál-a deante de si, com certo geitinho; e não é só isso: dá tambem o leite com que se faz a manteiga e o queijo que nos sustenta. Que não faria eu para assim possuir um animal!

- Se faz n'isso muito empenho - alvitrou o aldeão eu não ponho duvida em a trocar pelo seu cavallo.

João açambarcou logo a ideia, cheio de satisfação; o aldeão montou o animal e depressa se eclipsou.

João tocou a vacca, que ia na sua frente muito devagar, emquanto ia magicando nas vantagens da troca que acabára de fazer:

- Desde o momento em que me não falte uma fatia de pão, e com

certeza não será isso o que me ha de faltar, posso, quando a fome me aperte, comer manteiga ou queijo, se tiver seccuras, munjo a vacca, e bebo um excellente leite. Que mais podes ambicionar, ó Janeco?

Ao acercar-se d'um albergue, parou e querendo possuir alimento para sempre, deu cabo de toda a comida e gastou os derradeiros escudos n'uma cerveja. De seguida, tornou a pôr-se a caminho da casa precedido pela pachorrenta vacca.

O sol estava a pino e escaldava o rapaz e João, encontrando-se n'um sitio desarborizado, sentiu tanta sêde que se lembroude beber leite; para esse fim, amarrou a vacca a uma sebe e, descarapuçando-se, começou a mungir o animalejo, mas por mais esforços que empregasse não conseguiu uma gottinha de leite. Como era leigo no assumpto, magoou a vacca que, com a dôr, lhe deu um coice que atirou longe João, que com a dôr desmaiou.

Por felicidade, acercou-se um homem que levava, n'um carrinho de mão, um porco ainda pequeno.

- Que diabo foi isso? - perguntou o homensinho, ajudando-o a pôr em pé.

João narrou-lhe o succedido; o homem do porco offereceu-lhe a borracha, dizendo-lhe:

- Ande, beba-lhe um gole para o pôr firme! E quer saber? A vacca está velha; boa apenas para puxar a uma carroça ou então para ir para o matadouro. Por esse motivo não é para admirar que lhe não conseguisse tirar leite.

- Oh co'a breca! - exclamou João, arranjando o cabello que se havia emmaranhado com a queda - Quem o diria! O que é verdade é que, matando-se, a vacca ainda alimenta muita gente, mas como acho a carne pouco saborosa, não me servia. Agora se fosse um porquito! Isso era ouro sobre azul! Eu então que sou doido por chispe com feijão branco e chouriço de sangue!

- Ah, sim?! - lembrou o homem - Então tome lá o porco em troca da vacca!

- Deus o ajude! - acceitou João dando a vacca; puxou o porco pela corda que o segurava no carrinho.

Ilustração da página 43

... a vacca deu-lhe um coice...

Á medida que ia andando, ia pensando, que tudo lhe corria em maré de rosas; mal tinha uma contrariedade e logo lhe desappareceu. N'isto dá de rosto com um rapazinho que levava debaixo do braço um gordo pato. Deram-se os bons dias e começaram de conversa. João narrou os seus feitos, gabando-se da sua ventura; em compensação, o rapazito disse que o pato era uma encommenda para um baptisado que tinha logar na proxima localidade.

- Tome-lhe o peso - aconselhou o rapazelho, agarrando o pato pelas azas - Pesa bem, não é assim?! Não é caso para espantos, pois ha mais de dois mezes que foi para a engorda. Quem o cosinhar póde gabar-se de apanhar uma excellente enxundia!

- E é verdade que sim! - appoiou o nosso João - Está gordo que é uma belleza! Comtudo, o meu porquinho tambem não está mau!

O rapazito calou-se, mas não fazia outra coisa senão olhar para um lado e para o outro inquieto; em seguida, meneando a cabeça, disse:

- Quer saber uma cousa?Roubaram não ha muitas horas um porco a uma das auctoridades da terra por onde eu agora fiz caminho. Está-me cá a parecer que é esse mesmo, sim, quasi que ia jurar! Que mau boccado lhe fariam passar se o vissem com elle. O menos que lhe faziam era mettêl-o n'uma enxovia muito escura!

João, muito assustado, exclamou:

- O meu amigo é que me póde valer n'estes apuros! Desde que conhece os cantos á villa, nada mais facil que occultál-o; dê-me o pato que lhe cedo por troca o porco.

- Corro grave risco com a transacção - hesitou o moço - mas para o livrar das mãos da justiça, acceito-a!

Agarrou a corda e, puxando pelo porco, depressa se esgueirou por um atalho. O nosso heroe, descuidado e alegre, continuou a andar, raciocinando:

- Fazendo bem as contas, eu ainda ganho com a troca: a carne do pato é muito saborosa e com as pennas faço uma almofada.

Depois de haver transposto a derradeira localidade antes de chegar á sua aldeia natal, notou um amolador parado com a sua roda que fazia girar cantando.

João estacou e ficou a olhar para o que o homem estava fazendo; em seguida, dirigiu-lhe a palavra.

- Pela sua alegria se vê que tudo lhe corre no melhor dos mundos possiveis!

- Certamente, todo o officio é ouro em fio, um bom amolador anda sempre endinheirado. Onde comprou esse bello pato?

- Comprar não comprei... foi uma troca que fiz! troquei-o por um porco.

- E o porco?

- Foi em troca d'uma vacca!

- E a vacca?

- Trocada por um cavallo!

- E o cavallo?

- Por uma bola d'ouro do tamanho da minha cabeça!

- E esse ouro?

- Foi a paga que recebi de sete annos de serviço!

- Sim, senhor! - exclamou o amolador - Não se perde! Se não mudar de tactica ainda ha de junctar muito dinheiro.

- Parece que sim! - retorquiu João - Que hei de agora fazer para o conseguir?

- Faça-se amolador. É-lhe necessaria apenas uma pedra de amolar... o resto depois vem com o andar dos tempos. Tenho aqui uma; já está um pouco gasta, mas para lh'a vender não, troco-a pelo pato. Convem-lhe?

- Se convêm! - acceitou logo João - Se succeder, como diz, que nunca me ha de faltar dinheiro, serei um rei pequeno, sem cuidados, sem ralações e sem trabalho!

Entregou em seguida o pato ao amolador, que lhe deu uma pedra de amolar e uma outra que apanhára do chão.

- Olhe - dissepara o heroe do conto - aqui tem mais uma; esta é magnifica para fabricar uma bigorna e endireitar pregos. Tome sentido n'ella.

João tomou as duas pedras e lá se foi muito contente, com os olhos brilhando de alegria.

- Nasci dentro de algum folle com certeza; pensou de si para si - tenho sorte em tudo!

Entretanto como já andava desde manhã sentiu-se fatigado; estava com fome, mas nada tinha com que a matar, por ter comido todo o farnel quando da troca da vacca. Custou-lhe a andar e volta e meia tinha

que parar para descançar; as pedras faziam-lhe muito pezo e disse com os seus botões que era bem bom que não as levasse, pois que lhe impediam andar mais ligeiro. Arrastando-se conforme pôde, chegou proximo de uma fonte ficando contente por encontrar com que molhar as guellas e crear alento para a caminhada.

Não querendo estragar as pedras, pôl-as no rebordo da fonte e curvou-se para encher o barrete da limpida agua que corria da bica; mas, tocando-lhes sem dar por isso, as pedras rebolaram e caíram com grande ruido dentro d'agua.

João, assim que as viu desapparecer, saltou de contentamento e, ajoelhando-se, agradeceu a Deus, com os olhos marejados, a mercê que lhe havia feito de o livrar d'aquelle peso.

- Era esta a unica cousa que me incommodava! Não creio que haja rapaz mais feliz do que eu!

E de coração ao largo, não possuindo mais cousa alguma, pôz novamente pernas a caminho e só parou quando topou com a porta de casa de sua mãe.

Pelle d'urso

Em epochas bastante afastadas houve um rapazito que sentou praça e desde então mostrou heroicidade, sendo o primeiro a avançar ao chover das balas. Emquanto durou a guerra, tudo lhe correu ás mil maravilhas; mas assim que se assignaram as pazes, o nosso soldado recebeu a soldada que lhe cumpria e o commandante da columna, a que o mancebo pertencia, disse-lhe que fosse para onde lhe aprouvesse, pois no regimento já não era preciso. Os paes haviam morrido, e o infeliz, n'estas condições, não tinha patria. Não sabendo a quem recorrer, foi ter com os irmãos pedir-lhes albergue emquanto não havia novo rompimento de hostilidades. Ora, como os irmãos eram muito ruins responderam-lhe:

- Em que poderemos empregar-te? Em nada nos poderias ser util! Tracta de te arrumar algures.

Ao pobre soldado só ficára a espingarda; pôl-a ao hombro, e resolveu correr mundo. Depressa chegou a uma charneca, onde vegetava um numero de arvores muito limitado. Sentou-se cabisbaixo á sombra e

começou a matutar na triste situação a que se via reduzido.

- Estousem dinheiro - pensou - só conheço o officio das armas, e agora que estão feitas as pazes, este officio de nada me póde servir, e o meu fim é morrer de fome.

De repente, ouviu um ruido; voltou-se e viu, defronte de si, um desconhecido, com um casaco verde; estava vestido com esmero, mas tinha pés-de cabra.

- Eu sei o que te falta - disse-lhe o estranho personagem - Conceder-te-hei tantas riquezas quantas queiras, mas é necessario que não sejas medroso, pois n'esse caso não estou para tentar fortuna.

- Soldado e medo são cousas que não se casam - respondeu o rapaz - Podes tentar.

- N'esse caso, olha para traz! - tornou o diabo feito homem.

O soldado olhou e viu um enorme urso que avançava para elle urrando.

- Ah! elle é isso?! Espera lá que já te vaes calar de vez! - e o soldado assim falando apontou e fez fogo tão certeiro que a bala entrou no focinho do pesado animal que caiu redondo, sem um gemido.

- Está provado que não te falta coragem! Falta ainda outra condição para o contracto.

- Desde o momento em que não seja cousa alguma contraria á minha saude, estou disposto a tudo o que quizeres.

- A condição é esta: durante sete annos não te lavarás, nem farás a barba, nem te pentearás, nem cortarás as unhas e, por ultimo, nem resarás. Se te agrada a proposta, dou-te um fato e um manto que não tirarás senão ao cabo d'esses sete annos. Se morreres entretanto, cairás em meu poder; se, pelo contrario, viveres muito tempo, conquistarás a liberdade e serás rico o resto de teus dias.

O soldado reflectiu no perigo que corria, mas, como varias vezes havia affrontado a morte, decidiu-se a arriscar a vida na empreza, e acceitou o alvitre. O diabo despiu o casaco verde, que fez vestir ao soldado, accrescentando:

- Desde que vistas este casaco não te ha de faltar dinheiro; mette a mão na algibeira e verás que te não minto.

Dicto isto tirou a pelle ao urso morto e presenteou com ella o soldado a quem disse:

- Este é que é o teu manto; servir-te-ha de cama, porque não te é permittido deitar-te sob lençoes. Como consequencia d'este nosso contracto todos te chamarão Pelle d'urso.

Ao terminar a indicação, o demo sumiu-se.

O soldado vestiu o casaco, metteu a mão á algibeira e achou o que o estupendo personagem lhe dissera; em seguida, envolvendo-se na pelle d'urso, pôz-se a caminho, mostrando-se sempre e em toda a parte bondoso e esmoler. O primeiroanno correu bem, mas ao segundo anno já era um monstro; o cabello tapava-lhe os olhos completamente; a barba parecia um grosseiro boccado de feltro; os dedos afuselavam-se em garras e o rosto estava tão sujo que se houvesse semeado n'elle qualquer planta, esta não deixaria de se desenvolver. A sua presença afugentava toda a gente; como, porêm, por todos os logares em que passava, elle distribuia esmolas aos pobres, pedindo-lhes que orassem por elle, afim de que não morresse antes de sete annos, e como usava pagar depressa e bem, nunca ficára ao relento, e tinha sempre quem lhe désse dormida.

No meiado do quarto anno, chegou a uma estalagem, mas o estalajadeiro recusou-se a dar-lhe gasalhado; este homem nem mesmo consentiu que o estranho hospede fosse dormir para a estrebaria, receoso de que a presença de similhante exemplar da especie humana lhe espantasse os cavallos. Comtudo Pelle d'urso metteu a mão na algibeira, tirando um punhado de dinheiro, e o estalajadeiro á vista do diabolico iman curvou-se á imperiosa ambição e consentiu que o estranho viandante ficasse n'um pessimo quarto interior, e ainda sob condição de que não se mostraria a pessoa alguma, temendo sempre que a casa, por aquelle dever de hospitalidade, perdesse os créditos.

Emquanto Pelle d'urso, sentado sósinho no humilde casinholo, pensava tristemente na lentidão dos annos que ainda tinha a passar sob aquelles medonhos trajes, ouviu queixumes e suspiros que partiam d'um quarto proximo. Como era dotado de bom coração - e sem se lembrar do pedido do hospedeiro - abriu a porta e viu um velho que chorava a bom chorar e que, dolorosamente, punha as mãos na cabeça. Pelle d'urso acercou-se do companheiro de estalagem que se ergueu subitamente querendo fugir. Ao ouvir, porêm, a voz da estranha creatura, serenou, e a sua conversa amavel fêl-o animar a confiar-lhe as maguas que o affligiam. Os seus recursos iam diminuindo a olhos vistos; as filhas e elle estavam sujeitos a soffrer as maiores privações, e tão pobre era que não podia

pagar hospedagem ao estalajadeiro, razão pela qual o iam prender.

- Se outro não é o vosso cuidado, consolae-vos - disse Pelle d'urso ao ouvir a narrativa do velho - A mim não me falta dinheiro.

Chamou o estalajadeiro e pagou-lhe tudo o que o velho lhe devia, entregando a este uma bolsa recheadinha d'ouro.

Quando o velho se viu tão facilmente livre de apoquentações, não teve palavras para exprimir o seu grande reconhecimento; ao cabo de algum tempo, disse a Pelle d'urso:

Ilustração da página 61

... viu defronte de si um desconhecido

- Siga-me; as tres filhas quepossuo são perfeitas maravilhas de belleza; auctorizo-o a escolher uma



para mulher. Assim que souberem da boa-acção que practicou em meu favor, serão as primeiras a acceder ao meu desejo. Realmente, o seu aspecto é exquisito e pouco attrahente, mas a que escolher saberá disfarçar a primeira impressão que é, decerto, desagradavel.

A proposta agradou a Pelle d'urso, que de muito boamente acompanhou o velho. Apezar de afastados de casa, a primeira filha ao vêl-o fugiu, transida de medo, aos gritos. A segunda - valha a verdade - não fugiu senão depois de o ter bem examinado dos pés á cabeça.

- Como posso eu acceitar por marido um ser que não tem aspecto humano? Marido por marido, então antes preferia o urso pardo que ultimamente se exhibiu pelas ruas, que dava ares de homem, vestindo um rico manto e de luvas calçadas! Era feio, mas facilmente me habituaria a vêl-o.

Quando coube a vez da mais novinha esta disse:

- Meu pae, este homem deve ter um bom coração, pois que duvida alguma teve em livral-o de apuros; se, para lhe provar a gratidão de que está possuido para com elle, lhe prometteu noiva, não se dirá que a sua palavra se não cumpre.

Que alegria não transpareceria no rosto do pobre soldado, se não estivesse tão velado pelo cabello! O seu coração rejubilou ao ouvir as boas palavras da linda moça! Tirou do dedo um annel que trazia, partiu-o em duas metades e deu uma das partes á rapariga, tendo antes d'isso

o cuidado de escrever o nome na parte que deu á promettida e o d'ella na metade com que ficou. Feito isto, despediu-se dos seus novos conhecimentos, dizendo-lhes:

- Tenho ainda de correr mundo durante tres annos; se voltar ao cabo d'esse tempo casamos; se não tornar, a sua palavra está desligada do compromisso, pois é prova segura de que morri; rogue a Deus para que me conserve a vida.

A infeliz namorada vestiu-se toda de negro, e sempre que se lembrava do seu promettido as lagrimas corriam-lhe abundantes. As irmans não se cançavam de a motejar e escarnecer.

- Acautela-te ao extenderes-lhe a mão, não vá elle dar-te a pata! - dizia-lhe a mais velha.

- Sê prudente, pois os ursos são traiçoeiros, e ainda que lhe agradasses, póde muito bem ser que depois te devore! - fazia côro a segunda irman.

- Tens de fazer-lhe todas as vontades, senão dá urros! - tornava a primeira.

E accrescentava a do meio:

- Sim, sim... e olha que a cerimonia deve ser bem divertida, pois os ursos dançam alegremente.

A pobrecreatura conservava-se alheia aos motejos que lhe não faziam diminuir o sentimento que nutria pelo bemfeitor de seu pae. Entretanto Pelle d'urso, percorrendo varios logares, continuava practicando o bem e semeando dinheiro a rôdo em esmolas, na esperança de que os mendigos rogariam por elle. Chegou finalmente o ultimo dia dos sete annos de caminheiro.

Tomou o caminho da charneca e foi sentar-se no mesmo sitio em que se havia sentado sete annos antes. Pouco tempo esteve só, pois que, segundos depois, sentiu soprar o vento e viu na sua frente o diabo olhando-o tristemente; em seguida restituiu ao viandante o seu antigo traje, recebendo em troca o casaco verde que lhe cedêra.

- Não te apresses - disse Pelle d'urso - primeiro tens que me arranjar convenientemente.

Se a lembrança agradou ou não ao demo é cousa que não podemos averiguar, mas o que é certo é que, com vontade ou sem ella, não teve outro remedio senão ir buscar agua, lavar Pelle d'urso, cortar-lhe o

cabello e as unhas, penteál-o e fazer-lhe a barba. Limpo e arranjado, Pelle d'urso voltou ao seu aspecto de soldado valente; nunca fôra tão formoso.

Assim que se viu livre do diabolico personagem de uma vez para sempre, o heroe do nosso conto sentiu-se leve que nem uma penna. Rapido se encaminhou para uma povoação proxima, comprou uma andaina de velludo, sentou-se n'uma elegante carruagem puxada a duas parelhas de cavallos brancos, e deu ordem ao cocheiro para se dirigir a casa da noiva. Pessoa alguma o reconheceu; e o futuro sogro, imaginando-o um alto personagem, fêl-o entrar para o gabinete em que permaneciam as filhas. Convidou-o a sentar-se entre as mais velhas que tiveram o cuidado de offerecer-lhe vinhos generosos, doces dos mais finos, emfim fizeram tudo o que puderam para lhe agradar, e dizendo em segredo, entre si, que nunca tinham contemplado personagem tão perfeito. Comtudo a noiva, coberta de lucto, permanecia sentada defronte d'elle; não erguia os olhos nem dizia palavra. Por fim, o desconhecido - para nós bem conhecido - pedindo ao velho se consentia ser esposo de uma das filhas, as duas mais velhas levantaram se como se mola as impellisse, e foram paramentar-se com os mais ricos vestidos que possuiam, pois qualquer d'ellas estava crente de que era sobre si que incidia a escolha do desconhecido personagem. Ora, este apenas se viu só com a futura, tirou da algibeira metade do annel que conservara preciosamente, metteu-a n'um calice que encheu de vinho generoso, apresentando-o á fiel menina que o acceitou e, depois de o beber, notou no fundo a metade do annel; sentiu pulsar oseu coração; tomou a outra metade que trazia pendente de um collar que lhe envolvia o pescoço, approximou as duas e viu que se ajustavam perfeitamente. Por então o rapaz disse:

- Sou o teu noivo, o noivo que ha tres annos viste coberto com uma pelle d'urso, mas graças a Deus recobrei a minha fórma primitiva.

Ao concluir, apertou-a nos braços, e beijou-a na testa. N'essa occasião, entraram as duas irmans muito tafulas nos seus vestidos, e ao verem que o personagem já estava compromettido com a mais moça, é que se lembraram de que não podia ser outro senão Pelle d'urso, de quem tão pouco haviam feito. Ficaram tão corridas de vergonha e de invejoso ciume que fugiram do gabinete: uma deitou-se a um poço, e a outra enforcou-se na primeira arvore que encontrou.

Á noite bateram á porta; o noivo foi abril-a e reconheceu pelo casaco

verde o diabo que lhe disse:

- Fiquei sem a tua alma, é certo, mas em compensação appareceram-me duas!

Aventuras de João-Pequenino

No tempo em que Deus andava pelo mundo, estava um pobre lavrador aquecendo-se á lareira emquanto se lastimava á mulher, que perto d'elle fiava, desgostoso por não ser contemplado com filhos.

- Que socego - accrescentou - vae n'esta casa emquanto que em outras então tanto barulho ha causado pela alegria e pelos risos da pequenada!

- Tens razão - appoiou a mulher, suspirando. - Oxalá tivéssemos um só, embora tão pequenino que quasi se não visse. Isso me bastaria para nos alegrar e querer-lhe iamos de todo o coração.

A boa mulher, alguns dias passados, principiou a andar doente, e ao cabo de sete mezes foi mãe d'um menino tão bem formado que se disséra de todo o tempo, mas muito pequenino. Ao vêl-o, a mãe não se conteve que não dissesse:

- É exactamente como nós o haviamos desejado; não deixa, apezar de mais pequeno do que um dedal, de ser o nosso filhinho.

Por via d'isso toda a parentella lhe ficou chamando João-Pequenino. Crearam-n'o tão bem quanto puderam; não cresceu mais, ficando sempre do mesmo tamanho em que nascêra. Era muito vivo, muito esperto; e tinha uns olhitos muito brilhantes; e bem cedo mostrou o tino e actividade sufficientes para levar a bom-effeito qualquer empreza a que se abalançasse.

O camponez, certo dia, apromptava-se para ir cortar madeira á matta visinha e disse para comsigo:

- Bem precisava eu de quem me conduzisse a carroça.

- Pae - gritou João-Pequenino - eu guio a carroça, se quer; não se assuste que chegará a tempo.

O homem desatou a rir:

- Isso éimpossivel! Se és tão pequenino, como has de segurar a redea ao cavallo?

- Isso não faz ao caso, pae! Se a mãe vae atrellar o cavallo, eu

metto-me na orelha do cavallo e ensino-lhe o caminho a seguir.

- Pois então, experimentemos.

A boa da mãe metteu o cavallo á carroça, e introduziu João-Pequenino na orelha do animal; e o João-ninguem gritava todo o caminho: Vá, cavallo! mas tão distinctamente que o animal andava como se na realidade o guiasse algum carroceiro; d'esta maneira chegou a carroça á matta, indo pelos melhores caminhos.

No momento em que a carroça torneava uma sebe, e se ouvia a voz do rapazinho: vá, cavallo! passaram dois individuos desconhecidos que exclamaram estupefactos:

- É celebre! Uma carroça que anda á voz de um carroceiro que não se vê!

- Alguma cousa ha de extraordinario; sigamos o vehiculo para vêr onde pára!

Continuou a carroça no caminho que levava até parar no sitio onde havia arvores caídas. Assim que João-Pequenino avistou o pae, gritou:

- Então, pae, guiei ou não guiei a carroça? Agora põe-me no chão.

O lenhador, segurando com uma das mãos a redea, serviu-se da outra para tirar de dentro da orelha do cavallo o rapazito a quem pôz no chão; o rapazinho sentou-se n'um feto.

Os dois desconhecidos, ao vêrem João-Pequenino, não sabiam que imaginar, de tal maneira ficaram extacticos com o rarissimo phenomeno. Falaram em segredo e resolveram:

- Este exemplar póde trazer-nos uma fortuna, se quizermos expôl-o a troco de alguns cobres em qualquer povoação; não será mau comprál-o.

Em seguida encaminharam-se para o camponez, e propuzeram-lhe:

- Quer vender-nos esse anãosinho sob a condição que cuidaremos muito d'elle?

- Não, - respondeu o interrogado - é meu filho e por dinheiro algum eu me desfaria d'elle.

João-Pequenino, porêm, que percebêra e ouvira bem toda a conversa, trepou pelas pernas do pae á altura do hombro e segredou-lhe:

- Pae, acceite a proposta, que eu em breve estarei de volta.

Ante esse conselho de João-Pequenino, o pae cedeu-o aos homens por uma valiosa moeda de ouro.

- Onde queres tu collocál-o? - perguntaram entre si.

- Ora, ponham-me na aba do chapéu; assim posso vêr tudo quanto se passa em volta de mim e não ha meio de me perderem - alvitrou João-Pequenino, accrescentando: - Mas, cuidado, não me deixem cair.

Os homens assim fizeram; João-Pequenino despediu-se do pae, e foram-se embora com o rapazinho. Fartáram-se de caminhar até ao cair da tarde; n'essa occasião o boccadinho de gente gritou-lhes:

- Parem, que preciso de descer!

- Deixa-te estar no meuchapéu; não estejas com cerimonias, porque os passarinhos tambem me fazem isso muita vez!

- Não, não quero! - insistiu João-Pequenino - ponham-me depressa no chão.

O homem pegou no João-ninguem e pôl-o no chão n'um relvado á beira-estrada; João-Pequenino depressa alcançou umas moutas e de repente encafuou-se n'uma toca de rato que buscára de propósito.

- Boa viagem, meus senhores, continuem o caminho sem a minha companhia - lhes gritou, rindo. Quizeram agarrál-o, fazendo cócegas na toca de rato com palhinhas - como é de uso fazer-se aos grillos, mas perderam o tempo e o feitio, pois que João-Pequenino cada vez se mettia mais para dentro da toca, e a noite visinhava-se, de modo que foram obrigados a ir para casa, fulos e com as mãos a abanar.

Quando já iam longe, João-Pequenino saiu do improvisado esconderijo. Arreceou-se de seguir viagem á noite, por meio de campos, porque partir uma perna não é difficil. Felizmente avistou uma cavidade no topo de uma arvore, exclamando:

- Louvado Deus, já tenho casa para dormir.

Quando ia a pegar no somno, ouviu a voz de tres homens que abancaram por baixo da arvore, ceando e conversando:

- Como havemos de proceder para roubar a esse rico parocho toda a sua fortuna?

- Eu lhes digo! - dirigiu-se lhes a voz invisivel.

- Quem está ahi?! - gritou um dos ladrões verdadeiramente aterrorizado - Ouvi uma voz!

Calaram-se para escutar, quando João-Pequenino se tornou a ouvir:

- Tomem-me á sua conta, que eu os ajudarei n'essa piedosa tarefa.

- Onde é que estás?

- Procurem na arvore, no sitio d'onde parte a voz.

Os ladrões encontraram-n'o por fim e exclamaram:

- Pedaço de gente, como é que tu nos pódes ser util!

- Ora, de um modo bem facil: metto-me pelas grades da janella que ha no quarto do parocho e vou-lhes passando tudo o que quizerem.

- Pois bem, seja! - accederam os ladrões - Vamos á experiencia!

Assim que chegaram ao presbyterio, João-Pequenino introduziu-se no quarto, e em seguida começou a gritar com toda a força dos pulmões:

- Querem tudo o que está aqui?

Os ladrões amedrontados disseram-lhe:

- Fala mais baixo que acordas toda a gente!

João-Pequenino fazendo ouvidos de mercador, cada vez gritava mais:

- O que é que vocês querem? É tudo isto?

A creada, que dormia no quarto pegado áquelle em que o heroe da historieta se encontrava, ouviu este ruido, levantou-se da cama e pôz-se de ouvido á escuta; os malfeitores haviam desapparecido, mas cobrando animo e, suppondo que o rapazito só os queria amedrontar por merabrincadeira, voltaram á carga, e disseram-lhe devagarinho:

- Tem mais tento: passa-nos alguma cousa, anda! João-Pequenino, se gritava até então, agora quasi que berrava:

- Vou dar-lhes já tudo; aparem as mãos!

D'esta feita, a creada ouviu tudo perfeitamente; saltou da cama e correu para a porta. Os gatunos ao presentirem gente deram ás de villa Diogo, como se o Diabo lhes tivesse dado azas; a creada, não ouvindo mais cousa alguma, foi accender uma candeia. Quando appareceu, João-Pequenino, sem que ella o tivesse enxergado, foi esconder-se no palheiro. A creada, depois de ter pesquizado todos os cantos á casa sem que nada visse, tornou a deitar-se, suppondo que tudo o que ouvira fôra sonho.

João-Pequenino tinha-se aninhado no feno, onde arranjára uma boa caminha em que contava dormir até manhan, indo em seguida para casa dos paes que a essa hora deviam estar em sobresaltos. Não pararam porém, aqui as aventuras d'este ratão; havia de passar ainda por bem maus boccados. A creada ergueu-se ao luzir do buraco para dar

ração ao gado. A primeira cousa que fez foi ir ao palheiro buscar forragem, d'onde tomou uma braçada de feno com o infeliz João-Pequenino lá mettido muito ferrado no somno. E tão bem dormia que não deu por cousa alguma e quando despertou viu-se na bocca de uma vacca, que o enguliu com um boccado de feno. A primeira impressão que sentiu foi a de se julgar caido num moinho de pisoeiro; mas depressa comprehendeu onde é que realmente estava. Evitando o metter-se por entre os dentes, deixou-se escorregar pela garganta até ao estomago. O compartimento em que se encontrou parecia-lhe estreito, sem janella, e onde não havia sol, nem luz, nem sequer candeia! A casa em que morava desagradava-lhe bastante, e o que mais complicava a sua critica situação, era a quantidade de feno que lá se armazenava, estreitando mais ainda o pouco espaço em que se continha. Por fim, não podendo mais suster-se do terror que d'elle se apossára, João-Pequenino gritou o mais que poude:

- Basta de feno, basta de feno que eu não posso mais... abafo!

Ilustração da página 85

- Eu lhes digo, dirigiu-se-lhe a voz invisivel

A moça do parocho, que n'esse momento estava precisamente a mungir a vacca, ao ouvir a voz sem que visse quem falava, mas que reconhecia pela que a tinha acordado durante a noite, assustou-se tanto que saltou do banco em que estava



sentada, entornando o leite. Foi de caminho, a toda a pressa chamar o parocho para lhe dizer:

- Senhor cura, a vacca fala!

- Tu ensandeceste, rapariga? - tornouo padre, emquanto que despreoccupadamente se dirigia para o estabulo, para se certificar do que ouvira.

Não tinha ainda o parocho franqueado o portal quando João-Pequenino gritou de novo:

- Basta de feno... que eu atabafo!

O terror apoderou-se então do padre, que suppondo a vacca enfeitiçada, ou que tinha o diabo mettido no corpo, disse que era preciso dar cabo d'ella. Abateram-n'a, e o estomago, onde o pobre

João-Pequenino se via prisioneiro, foi lançado para o estrume.

O rapazito viu-se em pancas para se desenvencilhar do mal-cheiroso sitio em que se conservava, e apenas conseguiu ter a cabeça desembaraçada, uma nova desgraça o veiu ferir, uma aventura inesperada. Um lobo esfaimado atirou-se ao estomago da vacca, e, chamando-lhe um figo, enguliu-o d'uma assentada. João-Pequenino não descoroçoou.

- Talvez - pensou com os seus botões - este lobo seja sociavel.

E de dentro da barriga, em que estava novamente preso, gritou-lhe:

- Bom lobo, vou ensinar-te o sitio onde ha uma excellente prêsa.

- E onde fica isso? - perguntou o lobo.

- N'esta e n'aquella casa; pouco trabalho tens: basta-te deslizar pelo exgotto da cosinha; ahi encontrarás bons boccados, como toucinho, chouriço á discreção; que mais queres? E olha que te não levo nada pelo conselho!

E assim o experto João-Pequenino lhe deu os signaes certos da casa do pae.

O lobo não quiz ouvir mais, nem se fez rogado, nem se quer foi preciso dar-lhe o recado mais d'uma vez; metteu-se pela cosinha e comeu á tripa-fôrra. Quando, porêm, quiz sair, foi-lhe impossivel. Tirou o ventre de miserias, de tal maneira que não houve meio de passar pelo cano. João-Pequenino - que tudo previra começou a fazer um grande barulho no corpo do lobo, aos pulos e em altos gritos; o lobo pedia-lhe:

- Vê lá se estás quieto! Tu assim acordas meio mundo!

- Deixa-me cá... Tu comeste até que te regalaste; agora sou eu que me divirto a meu modo! - e continuou a gritar tanto quanto podia.

Acabou por accordar a familia, que veiu pressurosa olhar para a cosinha pelo buraco da fechadura. O pae e a mãe ao verem que estava alli um lobo, armaram-se: o pae com um machado e a mulher com uma fouce.

- Fica para traz - aconselhou o marido á mulher quando entraram na cosinha, eu vou matal-o com o machado, mas se o não matar d'um só golpe, tu abres-lhe a barriga!

João-Pequenino - ao conhecer a voz do pae - pôz-se a gritar:

- Sou eu, meu pae, sou eu que estou na barriga do lobo!

- Graças! - exclamou o paelouco de contente. - Ora até que emfim que

o nosso filho foi encontrado!...

E disse logo á mulher que puzesse de parte a fouce não fosse ferir o João-Pequenino. Em seguida com faca e tesoura abriu a barriga do lobo d'onde saltou lesto o nosso sympathico João-Pequenino.

- Não pódes calcular, filho, - exclamou o pae - os sustos que temos tido com a tua sorte!

- Acredito, pae... mas olhe, eu fartei-me de correr mundo; felizmente que já vejo a luz do dia!

- Onde tens tu estado?

- Ora, onde tenho estado! Estive n'uma toca de rato, na cavidade de uma arvore, no feno, na barriga de uma vacca, no estrume e por fim na barriga de um lobo! Agora estou com os meus queridos paes!

- E nós não te tornariamos a vender por dinheiro algum d'este mundo! - disseram os paes abraçando-o e apertando-o contra o coração.

Deram-lhe de comer e vestiram-lhe outro fato, pois o primitivo vinha em estado lastimoso, o que é natural, attendendo aos sitios pouco limpos por onde viajára o nosso João-Pequenino.

Os tres cabellos d'oiro do Diabo

Era uma vez uma pobre mulherzinha que deu á luz um filho, e como elle tivesse nascido n'um folle, não tinha ainda visto a luz do dia, e já prediziam que aos quatorze annos casaria com a princeza. Pouco tempo depois appareceu na aldeia, vindo incognito, o rei, que, perguntando que novas havia, ouvira dizer:

- Não ha muitos dias nasceu um rapazinho n'um folle, o que indica vir a ser muito feliz, demais que já lhe auguraram casamento com a princeza, quando chegasse aos quatorze annos.

O rei - que não tinha bom fundo - ficára agastado com a previdencia; pediu para lhe indicarem a morada dos paes do rapaz, para onde se dirigiu com sorrisos. Em seguida falou assim:

- Sois pobres, por isso peço que me confieis o rapaz, a quem arranjarei um bom futuro.

Os paes, a principio, recusaram similhante proposta; mas o desconhecido offereceu-lhes uma grossa maquia em ouro; lembrando-se

elles da predicção de que, tendo nascido n'um folle, nada de mau lhe podia acontecer, resolveram acceitar, separando-se do filho.

Assim que d'alli saíu, o monarcha metteu o rapazinho n'uma caixa, que amarrou á sella do cavallo e continuou sua derrota. Não tardou a encontrar um ribeiro, com certa fundura, para onde atirou a caixa, exclamando:

- E assim livro minha filha de casar com tão desgraçado pretendente!

Mas o mais curioso é que a caixa não naufragou, bem pelo contrario singrou o rio ao sabor da corrente como se fôra umbarquinho, sem que uma só gotta d'agua lhe entrasse dentro. A caixa correu á tona d'agua a uma distancia de duas milhas da cidade; ahi encontrou um obstaculo: as rodas de um moinho, onde encalhou. Um moço de moleiro, que por casualidade se encontrava a curtos passos d'alli, viu-a e rebocou-a com uma fateixa, crente de que encontraria uma riqueza. Abriu-a, pressuroso, mas a riqueza appareceu-lhe na figura de um menino esperto e risonho. Levou-o aos amos que, como não tinham filhos, bem contentes ficaram com o achado, e disseram em côro:

- É Deus que nol-o envia!

Por conseguinte, tomaram-n'o á sua conta e educaram na practica das boas acções o orphãosinho. Passados annos, o soberano, fugindo a um temporal, refugiou-se certa tarde em casa do moleiro, a quem perguntou se o rapaz que tinha alli era seu filho.

- Não - responderam o moleiro e a mulher. - É um menino abandonado, que ha quatorze annos veiu trazido pela corrente dentro d'uma caixa até á calha do moinho; o moço, que estava perto, puxou-a e trouxe-a para terra.

A estas declarações, o rei percebeu logo que o rapaz não podia ser outro senão o menino que nascêra n'um folle, e tanto que perguntou:

- Digam-me: este rapaz não podia ir fazer-me um recado, levar uma carta á rainha minha mulher? Dou-lhe duas moedas de ouro por este pequeno trabalho.

- Quando vossa magestade quizer! - redarguiram de prompto moleiro e moleira.

Em seguida mandaram pôr a postos o rapaz.

O rei, entretanto, dirigia esta carta á rainha:

"Apenas o rapaz, portador d'esta, ahi chegue, dá-te pressa em

mandal-o matar e enterral-o em seguida; o resto será resolvido no meu regresso."

O mocinho partiu com a carta e chegou pela noite a uma grande matta; por entre a escuridão avistou uma luzinha. Seguiu n'essa direcção e depressa parou perto de uma cabana. Entrou e viu sentada uma velha, sózinha, ao pé de uma lareira. Ao vêr o rapaz ficou tranzida de medo, e gritou:

- D'onde vens e para onde vaes?

- Venho do moinho - respondeu - e vou ao palacio levar uma carta á rainha; como, porêm, me perdi na matta, muito grato me seria passar aqui a noite.

- Infeliz creatura! - redarguiu a velha. - Vieste ter a uma caverna de salteadores, que, se aqui te encontram, são muito capazes de te darem cabo da pelle!

- Venha quem vier, de nada me arreceio; estou bastante fatigado para que possa continuar a jornada.

Dictas estas palavras, sentou-se n'um banco e adormeceu.

D'ahi a pouco appareceram os salteadores queperguntaram irritados quem era aquelle intruso.

- Ora - retorquiu a velha - é um pobre moço que se perdeu na matta e a quem recolhi por dó; foi encarregado de levar uma carta á rainha.

Os salteadores apoderaram-se da carta, partiram-lhe o sinete e leram, vendo pelo conteudo que, apenas chegasse, o portador seria executado. Esta circumstancia tão mal os impressionou que o capitão da quadrilha rasgou-a e escreveu outra em que dizia que apenas o portador chegasse lhe fizessem o casamento com a princeza.

Feito isto, deixaram-n'o dormir socegadamente no banco até o dia seguinte; quando acordou, restituiram-lhe a carta e indicaram-lhe a estrada real.

Entretanto, a rainha apenas leu a carta, que passára como escripta pelo rei, ordenou grandes festas para o casamento da filha com o rapaz nascido n'um folle. Como este era perfeito, amoravel e dotado de bom coração, a princeza vivia feliz e satisfeita.

Passado tempo, o soberano regressou ao palacio, e, com grande espanto seu, viu que a predicção se realizára do rapaz nascido n'um folle, casar com a princeza.

- Como foi isto arranjado? - perguntou á rainha. - Havia dado outra ordem na minha carta!

A rainha apressou-se a mostrar-lhe a carta afim de se certificar do que havia escripto. O rei leu-a, e viu que fôra trocada. Perguntou ao rapaz o que havia feito da carta que lhe confiára, e como é que havia trazido outra.

- Não sei! - respondeu o rapaz. Só se me foi roubada na noite que passei na matta; aproveitando-se do meu somno.

O rei tornou irritado:

- Não me serve essa desculpa, e tanto que minha filha não te pertence, emquanto me não trouxeres do inferno tres cabellos d'ouro da cabeça do diabo; satisfeita esta condição, restituo-te a princeza.

O soberano, falando assim, cuidava que ficaria livre d'elle de uma vez para sempre. Como resposta, o rapaz nascido n'um folle disse ao rei:

- De boa vontade acceito a sua proposta de trazer os tres cabellos d'ouro, tanto mais que não me arreceio do diabo!

Dictas que foram estas palavras, despediu-se e pôz-se a caminho.

Esta estrada ia ter a uma cidade, ás portas da qual estava uma sentinella que lhe perguntou em que elle poderia ser-lhe util e o que é que sabia.

- Sei tudo - respondeu o rapaz nascido n'um folle.

- N'esse caso, pódes-nos indicar com facilidade a razão porque a fonte do mercado d'onde corria vinho, hoje não deita nem uma gotta d'agua?

- Depois o direi - respondeu o nosso viandante. - Espere que eu volte.

Em seguida, continuou o seu caminho até chegar ásportas d'outra cidade. A sentinella, que estava no seu posto, perguntou-lhe egualmente em que é que elle podia tornar-se util e o que é que sabia.

- Sei tudo...

- Por conseguinte, só tu nos podes prestar um grande serviço em nos dizer qual o motivo porque a arvore da praça, que antigamente nos dava maçãs d'ouro, hoje nem sequer folhas apresenta.

- Quando voltar darei explicação - respondeu.

E lá foi andando, andando até que chegou a um largo rio que precisava atravessar. O barqueiro, que estava proximo, perguntou-lhe tambem em que é que elle lhe poderia ser prestavel e o que é que

sabia.

- Sei tudo! - retorquiu o viajeiro nosso conhecido.

- Pois tu é que estás nas melhores condições para me dizer qual a causa porque é que ando a remar n'este barquinho de um lado para o outro sem que possa livrar-me d'este encargo.

- Dir-t'o-hei á volta - respondeu.

Assim que se viu na margem opposta, reparou logo na bocca do inferno. Estava escuro, e chegava-lhe ao nariz o cheiro da fuligem. O diabo não estava em casa. Só lá estava a mãe, sentada n'uma larga poltrona que perguntou ao arrojado mocinho:

- Que queres tu d'aqui? - e olhava-o com certo ar de sympathia.

- Queria possuir tres cabellos d'ouro da cabeça do diabo, pois que se não os consigo, fico sem a minha noiva.

- É querer muito - retorquiu a velha - porque se o diabo entra e te vê aqui, não ganhas para o susto; mas tenho pena de ti e por isso te auxilío.

Quando acabou de falar, transformou-o n'uma formiga e aconselhou-o:

- Mette-te n'uma das prégas da saia, pois estás seguro do perigo.

- Está bem, mas eu desejava tres respostas a tres perguntas: qual a razão porque uma fonte que antigamente deitava vinho, agora nem uma gotta d'agua deita; porque é que uma arvore que d'antes dava maçãs d'ouro, agora nem folhas tem; e, finalmente, qual o motivo porque um pobre barqueiro tem de remar d'uma banda para a outra, sem que se substitua.

- São problemas com certa difficuldade de solução, mas ouve com attenção e não dês palavra; escuta com cuidado as respostas que hão de coincidir com o arranque dos tres cabellos de ouro.

Ao anoitecer, voltou o diabo. Ainda bem não tinha posto o seu pé-de-cabra dentro do inferno, e já notava um certo cheiro que lhe era estranho.

- Cheira-me a carne humana - dizia elle fungando. - Alguma cousa ha aqui que não é costume!

E poz-se a esquadrinharpor todos os cantos, mas nada encontrou. A mãe, então, ralhando-lhe, disse:

- Ainda agora arrumei a casa e andas tu a pôr tudo em polvorosa; não tens outro cheiro que não seja o de carne humana! Anda d'ahi, senta-te

e come, que o teu mal é fome!

Depois de ter comido e bebido bem, sentiu-se cançado, collocou a cabeça no regaço da mãe, a quem pediu para o embalar. Não tardou a adormecer, roncando que nem um porco e assobiando como uma locomotiva. A velha aproveitou esse ensejo para lhe arrancar um cabello d'ouro.

- Ai! - fez o diabo - que faz mãe?

- Ora, deixa-me cá: tive um sonho terrivel, e por isso é que te arrepellei.

- Com que sonhou então?

- Sonhei que uma fonte que antigamente dava vinho, agora nem agua deita. Porque será?

- Se soubesse! - respondeu o demo. - Debaixo d'uma pedra vive um sapo; assim que o matem, a fonte continuará a deitar vinho.

A velha tornou a embalál-o e d'ahi a pouco Satan resonava e assobiava em alto ruido, e com tal força que até as vidraças estremeciam. A velha, vendo-o assim, arrancou-lhe o segundo cabello.

- Ui! - gritou sobresaltado o rei dos infernos - que pezadello foi esse mãe?

- Não te apoquentes, filho, foi um outro sonho que tive.

- E de que constava elle? - interrogou Belzebuth.

- De uma arvore que antes produzia maçãs d'ouro e que actualmente está despida de folhas. Qual a rasão do caso?

- Ora, é bem simples! tornou o demonio. É um rato que roe a raiz.

Ilustração da página 109

Os salteadores... leram...

Matem-n'o que a arvore continuará a dar maçãs d'ouro; do contrario, o rato continuará na sua obra de destruição e a arvore definhará. Mas deixe-me socegado com sonhos; se me torna a acordar, não tenho outro remedio senão faltar-lhe ao respeito.

A velhota ameigou-o com boas palavras, e continuou acalentando-o, até que o viu de novo ferrado no somno; então, arrancou-lhe o terceiro cabello. O diabo deu um pulo, soltou um grito e ia-se zangando devéras com a mãe, mas esta cortou-lhe os impetos, dizendo:

- Oh, filho, quem é que é superior aos sonhos!

- Que sonho foi esse para assim me despertar! Decerto é muito curioso!

- Sonhei que um barqueiro se lastima bastante em andar de uma banda para outra sem que seja substituido.

- Porque é um asno chapado! - exclamou Satanaz - Ao primeiro passageiro que lhe peça para atravessar a margem, não tem mais doque entregar-lhe os remos e pirar-se!...

Agora a velha, que já tinha arrancado os tres cabellos d'ouro e que tinha na mão a chave dos tres enigmas propostos, deixou em paz o diabo, que dormiu a somno solto até madrugada.

Logo que o demonio saíu dos lares, a velha pegou na formiga, deu de novo figura de gente ao rapaz nascido n'um folle, e disse-lhe:

- Aqui tens os tres cabellos de ouro; quanto ás respostas dadas pelo diabo ás perguntas que formulaste, creio que as ouviste.

- Certamente que as ouvi e não me esquecem.

- E assim alcançaste o que querias - continuou a boa velha. - Agora pódes tornar para d'onde vieste.

O mocinho agradeceu muito o auxilio que a velha lhe havia prestado e saíu do inferno bem contente por haver conseguido os seus fins. Assim que chegou perto do barqueiro, este lembrou-lhe logo o cumprimento da promessa que lhe fizera.

Mas o rapazito, que era bastante sagaz, respondeu:

- Conduze-me á outra margem, que então te direi o que has de fazer para te vêres livre d'aqui.

Logo que pôz o pé na outra margem, o rapaz cumpriu a palavra:

- Apenas se apresente um novo passageiro para que o ponhas na outra margem, entrega-lhe os remos e sáfa-te.

Seguiu a sua róta, e depressa chegou ás portas da cidade, onde existia a arvore esteril; a sentinella aguardava o rapaz para que não se esquecesse do promettimento.

- Matem o rato que róe a raiz da arvore, se querem vêr a arvore carregadinha de maçãs de ouro - aconselhou o moço.

A sentinella, grata com a resposta, compensou-o com dois burros carregados d'ouro. Para encurtarmos razões, o rapaz nascido n'um folle depressa alcançou as portas da cidade, onde havia a fonte que estava sequinha. Aqui, repetiu tambem á sentinella as palavras do diabo:

- Debaixo de uma pedra está um sapo; assim que o matarem, continuará a fonte a dar vinho abundantemente.

A sentinella agradeceu muito e, em paga, deu-lhe tambem dois burros carregados d'ouro.

O rapaz nascido n'um folle estava, d'alli a pouco, em presença da noiva, a quem abraçou, e que ficou contente em tornar a vêl-o. Foi levar ao rei os tres cabellos d'ouro do diabo; e o soberano, ao vêr os quatro burros carregados de ouro, demonstrou claramente a sua alegria, dizendo:

- Agora que satisfizeste todas as condições, tens minha filha por tua mulher. Mas dize-me, meu caro genro, como é que arranjaste todo esse ouro?

- Atravessei um rio, cuja margem é de ouro, em vez de areia. Foi ahi que o apanhei.

- Émuito difficil fazer egual colheita? - perguntou o monarcha, cujos olhos scintillavam de cubiça.

- É facilimo tomar tanto quanto se deseje - continuou o rapaz nascido n'um folle. - Ha um barqueiro proximo; peça-lhe que o conduza á outra margem, e d'esta maneira póde trazer os saccos que quizer cheios de ouro.

O monarcha, mordido pela ambição, depressa se pôz em marcha. Chegado á margem do rio pediu ao barqueiro para o levar á outra margem. O barqueiro apressadamente disse ao rei para entrar no barco, e assim que chegaram ao outro lado do rio, o barqueiro entregou-lhe os remos e saltou lesto para terra.

- E ainda lá está o rei feito barqueiro? - perguntarão os meus amaveis e gentis leitorzinhos.

- Está e estará até que expie, por completo todas as suas culpas.

O sapateiro e os gnomos

Era uma vez um sapateiro que, por vicissitudes da vida, empobreceu tanto que só conseguira comprar material sufficiente para um par de sapatos. De noite talhou a pelle para no dia seguinte os concluir; como era bom, deitou-se tranquillamente, orou e adormeceu.

No dia immediato, ao erguer-se, ia pegar na tarefa, mas achou em cima da mesa o par já feito. Ficou altamente surprehendido, mas não comprehendia o que o facto queria dizer. Pegou nos sapatos e viu-os, examinou-os de todas as fórmas e feitios, mas defeito algum lhes encontrou, tão bem acabados estavam; eram o que se chama uma obra prima, um encanto.

Entrou-lhe em casa um freguez, a quem agradaram tanto os sapatos que os comprou mais caros do que costumava, e com este dinheiro o sapateiro arranjou material para outros dois pares. N'essa mesma noite os talhou para no dia seguinte os concluir, quando, ao despertar, os viu já promptos; d'esta vez, ainda, não faltaram compradores e, com o producto da venda, pôde conseguir material para quatro pares.

No dia seguinte os quatro pares estavam promptos; finalmente, tudo o que talhava de vespera lhe apparecia feito de manhã, ao acordar; de modo que, sem grande trabalho, se achou remediado.

Uma noite, porém, pelas proximidades do Natal, quando acabára de talhar os sapatos e se ia deitar, disse para a mulher:

- E se nós velassemos esta noite para vêr quem é que nos ajuda?

A mulher approvou a ideia, e, deixando a candeia accêsa, escondêram-se n'um armario onde havia roupa e na qual se occultaram á espera dos acontecimentos. Ao dar a meia noite, dois bonitos gnomos entraram no quarto, sentaram-se na tripeça do sapateiro e, pegando na pelle talhada, com as pequeninas mãos ajustaram, coseram e bateram sola, com tanta agilidadee presteza que era um gôsto vêl-os.

Trabalharam sem descanço até que deram fim á tarefa, e desapparecêram n'um ai!

Na manhã immediata alvitrou a mulher:

- Estes gnomosinhos enriquecêram-nos, e nós devemos mostrar-lhes a nossa gratidão; elles devem sentir frio, sem nada que os tape. Sabes do que me lembrei? Fazer-lhes três camisinhas, calças, collete e casaco para elles vestirem e umas meiasinhas para calçarem; e para completar o brinde, tu fazias-lhes uns sapatinhos.

O marido concordou com a mulher, e deram logo principio á obra, e, decorridas bem poucas horas sobre tão sympathica resolução, á tarde, estava tudo prompto; collocaram, pois, marido e mulher, as suas prendas em cima da mesa, justamente no sitio em que era costume pôrem nos outros dias a obra talhada, e escondêram-se para verificarem

o que os gnomos faziam. Meia noite a dar e elles a apparecerem para dar começo á tarefa; mas em vez dos sapatos cortados para elles fazerem, como tinha succedido nos dias antecedentes, encontraram essas vestimentas, o que lhes causou admiração, que d'ahi a pouco cedeu o logar a uma grande alegria. Vestiram os fatos com presteza, viram que lhes ajustavam como uma luva e começaram a dançar, a saltar por cima das cadeiras e dos bancos, e a cantar saíram.

Desde então, nunca mais os viram. O sapateiro, porém, continuou a ser feliz emquanto viveu, tendo tudo quanto ambicionava.

As tres pennas

Era uma vez um rei que tinha tres filhos; os dois mais velhos eram alegres e palradores, e o mais moço de poucas falas e muito acanhado, razão por que o tinham na conta de simples.

Quando o monarcha chegou a velho, quiz fazer testamento; mas viu-se bastante embaraçado por não saber a qual dos tres filhos legar a corôa. Certo dia, porêm, chamou-os e disse-lhes:

- Ponham-se a caminho, e aquelle que trouxer o tapete mais finamente tecido é que ficará sendo rei por minha morte.

Dizendo isto, para evitar qualquer má vontade dos irmãos, andou alguns passos além do palacio e, fazendo voar tres pennas, indicou-lhes:

- Cada um de vocês deve encaminhar-se na direcção que estas pennas levarem.

A primeira penna voou para o oriente, a segunda para o occidente e a ultima volitou uns segundos e foi caír a alguns passos de distancia.

Por, isso, o mais velho tomou o caminho da direita, o do meio voltou á esquerda e o mais novinho - troçado pelos mais velhos - encaminhou-se para o sitio onde caíra a terceira penna.

O pobre moço, apoquentado e triste, deitou-se no relvado. De repente notou uma porta subterranea no logar em que a penna caíra. Abriu-ae reparou n'uma escada, que se aventurou a descer. Uma vez em baixo, deu de rosto com outra porta, em que bateu. Então ouviu uma voz que - em phrase cabalistica - a mandou abrir.

Quando a porta girou nos gonzos viu-se um enorme sapo, de envolta

com uma porção de sapinhos. O sapão perguntou ao rapazito o que é que desejava, ao que o interpellado retorquiu:

- Não seria facil arranjar-se um tapete bonito e finamente tecido?

Palavras não eram dictas e já o sapão gritava a um dos sapinhos, que, n'um pulo, lhe trouxesse um cofre.

O sapinho assim fez; o sapão abriu-o e tirou de dentro um tapete tão ricamente tecido como nunca no mundo se havia visto egual, com o que presenteou o rapazinho, que agradeceu muito e se pôz em marcha.

Ora, os dois irmãos reflectiram de si para si que o irmão era tão palerma, que se escusavam de cançar muito para toparem com um tapete decerto superior ao que elle conseguisse.

Assim deitaram a mão ao primeiro panno de lã grosseira que uma guardadora de porcos trazia, e vieram entregál-o ao rei. Pouco depois, appareceu o irmão mais novo com o magnifico tapete.

O regio personagem, no auge da surpreza, exclamou:

- O reino pertence ao mais moço!

Os irmãos é que não estiveram pelo ajuste e observaram ao velho pae, que tal resolução era impracticavel, pois o irmão não passava de um pateta; taes rodeios arranjaram, taes razões, que o monarcha, já fatigado de tanta loquella, não teve remedio senão tentar segunda experiencia.

- Será rei por minha morte aquelle que me trouxer o mais valioso annel.

Conduziu novamente os tres filhos a alguns passos distantes, do palacio e fez voar tres pennas, cuja direcção deviam tomar. Como da primeira vez, os dois mais velhos partiram para o oriente e occidente; quanto á penna do mais moço volitou tambem por segundos e foi caír d'alli a poucos passos.

Ao contrario da vez passada, o rapaz não entristeceu, mas apressou-se a descer a escada pela porta subterranea, em direcção á casa do sapão que, de chofre, lhe perguntou o que queria, respondendo em seguida:

- Não será facil arranjar-se um bonito e valioso annel?

O disforme batrachio mandou buscar o cofre e tirou-lhe de dentro um annel riquissimo, e tão artisticamente cinzelado, que ourives algum do mundo seria capaz de apresentar outro do mesmo gôsto.

Ora os dois irmãos, rindo-se ao pensar que o simples mocinho havia

de conseguir um annel precioso, não se deram a grandes trabalhos, certos de que se sairiam melhor do encargo do que aquelle, eassim arrancaram a primeira argola que viram presa n'uma parede e que servia para segurar os animaes, e foram ter ao palacio dál-a ao rei. O velho monarcha nem sequer teve que comparar, exclamou:

- É ao terceiro que faço rei!

Entretanto, os dois mais velhos convenceram tão bem o velho rei da nullidade do irmão que o monarcha consentiu em fazer terceira tentativa, a ultima. Decidiu-se que herdava o throno o que trouxesse a mulher mais formosa. Como das vezes passadas, as tres pennas foram deitadas ao ar e tomaram as mesmas direcções.

O moço-simples desceu pela terceira vez a casa do sapão.

- Não seria desejar muito, pedir uma formosa mulher?

- Caspité! - exclamou o grande batrachio. - Uma formosa mulher?! E porque não has-de têl-a?!

Dictas que foram estas palavras, o sapão deu-lhe uma beterraba ôca puxada a seis ratos brancos.

Ao ver tão curiosa carruagem, o pobre rapaz perguntou com certa tristeza:

- Que faço a isto?

- Agarra um de meus filhos - respondeu o sapo - e mette-o dentro d'esse carro.

A esta indicação, pegou ao acaso n'um dos sapinhos e metteu-o na beterraba; mal ahi foi collocado, o bicharôco ficou transformado n'uma menina de formosura maravilhosa, a beterraba n'uma luxuosa equipagem e os seis ratos em tres parelhas de cavallos brancos de neve. Em seguida, o mocinho subiu para a boléa, abraçou a moça e depressa seguiu para o palacio. Os dois irmãos mais velhos chegaram d'ahi a pouco, mas faziam tão mau juizo da escolha que o mais moço faria, que ficaram satisfeitos com a primeira camponia que lhes appareceu e que levaram a palacio. D'esta vez ainda - o que não é para assombros - o monarcha disse:

- É ao mais moço de meus filhos que pertencem as rédeas do governo apoz minha morte!

O que é certo é que pela terceira vez ainda os dois irmãos tentaram murmurar contra a resolução do pae e pediram para que - em ultima

experiencia - fosse proclamado rei aquelle cuja mulher saltasse pelo meio de uma argola suspensa a meio da sala. E propondo isto accrescentaram:

- As camponezas facilmente saltarão, são bastante fortes para estes exercicios; quanto a essa arveloa, fraca e delicada, cae e parte a cabeça.

Muito instado, o rei cedeu a esse capricho que começou.

As duas camponezas foram as primeiras a saltar, mas, pezadas e gordas como eram, caíram, partindo braços e pernas. Ao contrario, a moça trazida pelo mais novo formou salto tão elegante, que atravessou graciosa e rapidamente a argola e caiu em pé.

Ante esta ultima experiencia ficou decididamente reconhecido como herdeiroao throno.

Effectivamente, assim que o velho monarcha fechou os olhos, foi acclamado rei e ainda agora se fala da sabedoria com que n'esse paiz governou.

O violinista

Em epochas muito longinquas, o povo de uma grande capital - cujo nome nos não occorre - erigiu um lindo templo dedicado á padroeira dos musicos - Sancta Cecilia, segundo a tradição.

Eram das côres mais vivas e vistosas as flôres escolhidas para cobrir o altar, a roupagem da sancta toda em prata filigranada e os sapatos executados em ouro, pelo mais habil ourives-cinzelador que vivia n'essa cidade. A egreja estava sempre replecta de devotos e peregrinos. Em romagem, entrou lá certo dia um infeliz violinista, macillento, esquálido e franzino. Como a caminhada fôra longa, o pobre estava fatigado e no seu alforge já não havia uma migalha de pão nem na sua algibeira um ceitil para o comprar.

Apenas entrou no templo, principiou a dar uns acordes de violino tão suaves, tão expressivos, tão melodiosos, que a sancta enterneceu-se tanto com a sua pobreza e com aquella musica maviosa, que - ao elle findar - se baixou, descalçou um dos sapatos de ouro e deu-o ao infeliz menestrel, que, doidamente alegre, bailando, cantando e chorando, ao mesmo tempo, se encaminhou para uma ourivesaria com o fim de o trocar por dinheiro.

O joalheiro, porêm, conhecendo o sapato como sendo o da sancta, prendeu o violinista, levando-o ao juiz. Formaram processo, foi julgado e condemnado á pena ultima.

Approximára-se o dia da execução; os sinos tocavam plangentemente, e o triste cortejo pôz-se em marcha, acompanhado a canticos dos frades que, apezar d'isso, não deixavam de ouvir-se os lindos acórdes que o infeliz condemnado tirava do seu maravilhoso violino; era uma ultima concessão que lhe havia sido dada, até soar o derradeiro instante. O cortejo parou mesmo defronte do templo da sancta e, assim que alli chegou, o pobre musico supplicou que o conduzissem ao altar da sancta, afim de tocar o seu ultimo acorde melodioso.

Os frades e os chefes dos soldados que o escoltavam, concederam-lhe essa graça, e o violinista entrou, ajoelhou-se aos pés da padroeira dos musicos e, com os olhos marejados de lagrimas, principiou a tirar deliciosos acórdes do seu violino.

O povo, então, attonito e admirado, notou que Sancta Cecilia se baixava, descalçava o outro sapato e o mettia nas mãos do pobre musico. A este maravilhoso espectaculo, todos os circumstantes levaram em triumpho o violinista, puzeram-lhe na cabeça uma corôa entrecida de flôres, e os magistrados dirigiram-lhe as mais solemnes e as mais honrosas homenagens.