Durante a guerra federal dos Estados Unidos fundou-se, na cidade de
Baltimore, mesmo no centro do Maryland, um novo club de grande
influencia.
É notoria a energia com que se desenvolveram os instinctos
militares por entre aquella população de armadores, de negociantes
e de machinistas. Insignificantes mercadores saltaram por cima do
balcão e acharam-se de improviso transformados em capitães, em
coroneis e até em generaes, sem terem passado pelas escolas de
applicação de West-Point; em curto espaço foram na arte da
guerra dignos rivaes dos collegas do velho continente, e, á
imitação d'estes, alcançaram, á força de prodigalisar balas,
milhões e homens, brilhantes victorias.
Mas em que os americanos excederam singularmente os europeus foi na
sciencia da balistica; e não porque as armas americanas attingissem
mais elevado grau de perfeição, senão porque apresentaram dimensões
desusadas, e tiveram por consequencia alcances correspondentes e
até então desconhecidos.
Pelo que diz respeito a tiros rasantes, immergentes ou em cheio, a
fogos de escarpa de enfiada ou de revez, já não têem, inglezes,
francezes nem prussianos cousa alguma que aprender; mas os canhões,
obuzes e morteiros europeus são apenas pistolas de algibeira,
comparados com os formidaveis machinismos bellicos da artilheria
americana.
Não deve causar espanto o que deixâmos dito. Os yankees, que são os
primeiros mechanicos do mundo, nascem engenheiroscomo qualquer italiano nasce musico, ou qualquer allemão,
philosopho transcendental; portanto nada mais natural do que ve-los
demonstrar na applicação á sciencia da balistica o audacioso
engenho de que são dotados.
Assim se explicam esses gigantescos canhões, que, muito menos uteis
que as machinas de coser, são pelo menos tão admiraveis e de certo
ainda mais admirados. Os maravilhosos inventos, n'este genero, de
Parrott, de Dahlgreen e de Rodman são bem conhecidos; os Armstrong,
os Palliser, os Treuille de Beaulieu não tiveram mais remedio do
que curvar-se vencidos perante os seus rivaes de alem mar.
Tudo isto deu causa a que, durante a terrivel lucta entre os
partidarios do norte e os do sul, occupassem os artilheiros em toda
a parte o primeiro logar; celebravam-lhes os jornaes da União os
inventos com enthusiasmo, e sem exceptuar o mais insignificante dos
logistas ou o mais ingenuo dos booby, todos quebravam a cabeça
dia e noite a calcular trajectorias impossiveis.
Ora quando a uma cabeça de americano acode uma idéa, busca logo o
seu possuidor segundo americano que a acceite: chegam a tres,
elegem logo presidente e dois secretarios; quatro, nomeiam
archivista e funcciona a mesa; cinco, convocam-se em assembléa
geral, e está constituido um club. Assim succedeu em Baltimore.
O primeiro que inventou um novo canhão associou-se com o primeiro
que o fundiu e com o primeiro que o perfurou. Tal foi o primitivo
nucleo do Gun-Club, que um mez depois da sua inauguração contava
mil oitocentos e trinta e tres socios effectivos, e trinta mil
quinhentos e setenta e cinco socios correspondentes.
A todos que queriam fazer parte da associação era imposta uma
condição sine qua non, a de ter inventado, ou pelo menos
aperfeiçoado, um canhão; na falta de canhão uma arma de fogo
qualquer. Mas, para dizer a verdade inteira, bem pouca consideração
gosavam os inventores de revolvers de quinze tiros, de carabinas
girantes ou de sabres-pistolas. Em tudo lhe levavam os artilheiros
primazia.
A estima de que é credor qualquer socio, disse um dia um dos mais
entendidos oradores do Gun-Club, é proporcional "ás massas" do
canhão que inventou, e está "na rasão directa do quadrado das
distancias a que alcançam os respectivos projectis!"
Com pequena differença, era a lei de Newton ácerca da gravitação
universal transportada ás cousas do mundo moral.
Fundado o Gun-Club, facil é imaginar o que produziria n'este genero
o engenho inventivo dos americanos. Os machinismos de guerra
assumiram proporções colossaes, e os projectis foram alem dos
limites permittidos partir em dois bocados inoffensivos
transeuntes. Todos estes inventos deixaram a perder de vista os
timidos instrumentosda artilheria europea. Forme-se juizo pelos seguintes
algarismos.
Outr'ora "bom tempo era esse" uma bala de trinta e seis, á
distancia de trezentos pés, varava trinta e seis cavallos apanhados
de flanco ou sessenta e oito homens. Era a infancia da arte. Desde
essa epocha progrediram muito os projectis. O canhão Rodman, que,
com uma bala de meia tonelada alcançava a sete milhas,
facilmente poria fóra de combate cento e cincoenta cavallos e
trezentos homens. Chegou-se até a discutir no Gun-Club a
conveniencia e possibilidade de submetter a uma experiencia solemne
as qualidades d'este canhão monstruoso. Porém se os cavallos
consentiram em tentar a experiencia, infelizmente a respeito de
homens nem um só se offereceu.
Em todo o caso, o que é fóra de duvida é que o effeito d'estas
armas era extremamente mortifero e que por cada tiro caíam os
combatentes como espigas sob a foice do ceifador. Que valiam,
comparados com taes projectis, aquella famosa bala que, em Contras,
em 1785, poz fóra de combate vinte e cinco homens, ou aquella outra
que, em Zorndoff em 1758, matou quarenta infantes, e o canhão
austriaco de Kesselsdorf, em 1742, que por cada tiro derrubava
setenta inimigos?
Que importancia tinham esses surprehendentes fogos de Iena ou de
Austerlitz, que decidiram da sorte de uma batalha? Durante a guerra
federal na America viram-se cousas muito mais de pasmar! No combate
de Gettysburg, um projectil conico lançado por um canhão raiado
feriu cento e setenta e tres confederados, e, na passagem do
Potomac, uma bala Rodman mandou para um mundo evidentemente melhor
duzentos
e quinze partidarios do Sul. Não é menos digno de menção
um formidavel morteiro inventado por J.-T. Maston, socio distincto
e secretario perpetuo do Gun-Club, cujos effeitos foram sem
comparação mais mortiferos, visto como, do primeiro tiro de
experiencia, matou trezentas e trinta e sete pessoas; verdade é que
o morteiro rebentou!
Que havemos de accrescentar a estes numeros já de per si tão
eloquentes? Nada. Assim, por certo, será admittido sem contradicção
o seguinte calculo apresentado pelo estatistico Pitcairn, que
dividindo o numero das victimas de tiro de bala pelo dos socios do
Gun-Club, demonstrou que cada um d'estes tinha morto em "media",
dois mil trezentos e setenta e cinco homens e uma fracção.
Para quem reflectir em tal algarismo, fica evidente que a unica
preoccupação d'aquella sociedade scientifica era a destruição da
humanidade, com um fim philanthropico, o aperfeiçoamento das armas
de guerra, consideradas como instrumentos de civilisação. Era uma
reunião de anjos exterminadores, e a fóra isto, as melhores pessoas
do mundo.
Cumpre-nos accrescentar que estes yankees corajosos a toda a prova,
não se ficavam em formulas e experimentavamcom o proprio corpo. Havia no Club officiaes de todas as
graduações, de tenente a general, militares de todas as idades, dos
que debutavam na carreira das armas, como dos que iam já
encanecendo sobre os reparos. Muitos tinham ficado nos campos de
batalha, cujos nomes estavam inscriptos no livro de honra do
Gun-Club, e dos que tinham voltado a maior parte trazia no proprio
corpo signaes indiscutiveis de intrepidez. Moletas, pernas de pau,
braços articulados, mãos de gancho, maxilas de caoutchouc, craneos
de prata, narizes de platina... a collecção era completa. O
supradito Pitcairn calculou tambem que no Gun-Club havia um pouco
menos de um braço por quatro pessoas e sómente duas pernas por cada
seis socios.
Mas os valentes artilheiros pouca importancia ligavam a similhantes
ninharias, e com legitimo fundamento se ufanavam, quando o boletim
da batalha contava o numero das victimas pelo decuplo dos tiros
disparados.
Porém um dia, triste e lamentavel dia, foi assignada a paz pelos
sobrevivos da guerra; cessaram pouco a pouco as detonações,
calaram-se os morteiros, os obuzes para largo tempo açaimados e os
canhões de cabeça pendida, recolheram aos arsenaes; as balas
empilharam-se nos parques, foram-se apagando as recordações
sanguinolentas, brotaram com magnificencia os algodoeiros dos
campos pinguemente adubados, foram-se fazendo velhos a par das
dores e das saudades os fatos de luto, e o Gun-Club ficou immerso
na mais profunda inacção.
Um ou outro trabalhador afferrado e incansavel se entregava ainda a
calculos balisticos e fazia seu pensamento dilecto de bombas
gigantescas e obuzes incomparaveis.
Mas sem pratica de que serviam theorias vãs?
Por isso as salas do Club viam-se desertas, dormiam os creados nas
antecamaras, os jornaes creavam bafio por cima das mesas, ouviam-se
tristes roncos, que partiam dos cantos escuros das salas, e os
membros do Gun-Club, outr'ora tão ruidosos, agora reduzidos ao
silencio por uma paz desastrosa, adormeciam engolfados em
meditações de artilheria platonica.
"Que desconsolação, dizia uma noite o valente Tom Hunter, e no
entretanto ia-lhe o lume do fogão carbonisando as pernas de pau:
Nada que fazer! nem uma esperança! Que fastidiosa existencia! Onde
vae o tempo em que as alegres detonações do canhão nos despertavam
todas as manhãs?
Esse tempo já lá vae, retorquiu o inquieto Bilsby, esperguiçando-se
com os braços que já não tinha. Era um feliz tempo esse. Inventava
qualquer o seu obuz, e apenas fundido, corria a experimenta-lo no
inimigo; quando regressava, ao acampamento sempre tinha ouvido
alguma palavra animadora a Sherman ou recebido um aperto de mão de
Mac-Clellan! Mas hoje, os generaes voltaram aos seus balcões, e em
vez de projectis, expedem inoffensivos fardos de algodão! Ai! por
santa Barbara! Está perdido ofuturo da artilheria na America!
--É verdade, Bilsby, exclamou o coronel Blomsberry, são bem crueis
estes desenganos! Deixa a gente um dia os seus habitos socegados,
exercita-se no manejo das armas, troca Baltimore pelos campos de
batalha, porta-se como um heroe, e dois ou tres annos depois, ha de
perder o fructo de tantas fadigas, adormecer em deploravel
ociosidade, e encaixar as mãos nas algibeiras."
Bem podia fallar o valente coronel, havia de ver-se em graves
difficuldades, se quizesse dar tal prova de inactividade, e não
eram as algibeiras que lhe faltavam.
"E nem uma só guerra em perspectiva! disse então o famoso J.-T.
Maston, coçando com o gancho de ferro o craneo de guttapercha. Não
ha uma nuvem no horisonte, e tanto que fazer na sciencia da
artilheria! Eu que lhes estou fallando, terminei esta manhã a
épure, com plano, perfil e elevação de um morteiro que havia de
fazer mudar as leis da guerra!
--Sim? replicou Tom Hunter, recordando-se involuntariamente da
ultima experiencia do honrado J.-T. Maston.
--É verdade, respondeu este. Mas para que hão de servir tantos
estudos levados a cabo, tantas difficuldades vencidas? Não será
tudo isto trabalho absolutamente inutil? Parece que os povos do
novo mundo se conluiaram para viver em paz, e até o nosso bellicoso
Tribune chegou a prognosticar imminentes catastrophes
exclusivamente causadas pelo escandaloso crescer das
populações.
--Comtudo, Maston, retorquiu o coronel Blomsberry, na Europa ainda
continua a guerra para sustentar o principio das
nacionalidades!
--E então?
--Então! Talvez se podesse tentar por lá alguma cousa, e se
acceitassem os nossos serviços...
--Pensaes seriamente no que dizeis? exclamou Bilsby. Fazer
balistica em proveito de estrangeiros!
--Sempre era melhor do que não fazer nada, retorquiu o coronel.
--De certo, sempre era um pouco melhor, disse J.-T. Maston, mas nem
vale a pena pensar em similhante expediente.
--E porque? perguntou o coronel.
--Porque no velho mundo tem lá umas idéas ácerca de accesso e
promoção, que estariam em opposição com todos os nossos habitos
americanos. Imagina aquella gente que se não póde ser general em
chefe sem ter servido como alferes, o que vale o mesmo que suppor
que ninguem póde fazer uma boa pontaria, sem ter tambem sido o
fundidor do canhão! Ora isto é nada mais nem menos do que...
--Absurdo! concluiu Tom Hunter, lascando com o "bowie-knife" os
braços da poltrona, e pois que assim é, não temos mais remedio do
que ir plantar tabaco ou distillar azeite de baleia!
--Como assim, prorompeu em altos gritos J.-T. Maston; pois não
havemos de empregar estes ultimos annos da nossa existencia no
aperfeiçoamento das armas de fogo! Não ha de offerecer-se nova
occasião de ensaiar o alcance dos nossos projectis! Nuncamais ha de illuminar-se a atmosphera com o relampago dos nossos
canhões! Nem uma só difficuldade internacional ha de surgir que nos
permitta declarar guerra a alguma das potencias transatlanticas!
Não ha de haver algum francez que metta a pique um dos nossos
steamers, ou algum inglez que enforque, em menoscabo do direito das
gentes, ao menos tres ou quatro conterraneos nossos!
--Não, Maston, respondeu o coronel Blomsberry, não é para nós tanta
ventura. Não! nem um d'esses casos succederá, e que succedesse, nem
ao menos haviamos de aproveita-lo! Vae-se de dia para dia a
susceptibilidade americana. Vamos-nos effeminando.
--É verdade que nos humilhâmos! replicou Bilsby.
--E que nos humilham! accrescentou Tom Hunter.
--Tudo quanto dizeis é mais que certo, replicou J.-T. Maston, ainda
com maior vehemencia. Pairam na atmosphera mil motivos de guerra e
não combatemos! Economisam-se braços e pernas, e em proveito de
quem?
de gente que não sabe o que lhes ha de dar que fazer! Não
busquemos mais longe motivos de guerra; pois não é verdade que a
America do Norte pertenceu outr'ora aos inglezes?
--Certamente, respondeu Tom Hunter, espertando furioso o lume com a
ponta da moleta.
--Pois bem! continuou J.-T. Maston, porque é que a Inglaterra não
ha de, por seu turno, pertencer aos americanos?
--Nada mais era do que justiça, retorquiu o coronel Blomsberry.
--Pois vão lá propor a idéa ao presidente dos Estados Unidos e
verão como são recebidos!
--Havia de receber-nos mal, murmurou Bilsby, por entre quatro
dentes que lhe tinham escapado das batalhas.
--Por minha fé, exclamou J.-T. Maston, nas proximas eleições escusa
de contar com o meu voto!
--Nem com os nossos, accrescentaram de commum accordo os bellicosos
invalidos.
--No entretanto, continuou J.-T. Maston, em conclusão, se me não
fornecerem occasião para ensaiar o meu novo morteiro n'um campo de
batalha, dou a minha demissão de socio do Gun-Club, e corro a
enterrar-me nos desertos do Arkansas!
--Iremos todos comvosco, responderam os interlocutores do ousado
J.-T. Maston.
Estavam as cousas n'estas alturas, exaltavam-se os espiritos cada
vez mais, e o club estava ameaçado de proxima dissolução, quando um
acontecimento inesperado veiu impedir a realisação de tão lastimosa
catastrophe.
Logo no dia seguinte áquelle em que se realisou a conversação que
relatámos, cada um dos membros do club recebia uma circular
concebida nos seguintes termos:
"Baltimore, 3 de outubro.--O presidente do Gun-Club tem a honra de
prevenir os seus collegas, que na sessão de 5 do corrente lhes fará
uma communicação, que muito ha de interessa-los. Em consequencia
lhes pede que, pondo de parte qualquer outro negocio, concorram á
sessão para que são convidados pela presente.
"De todos mui cordialmente.--Impey Barbicane. P. G. C."
No dia 5de outubro, ás oito horas da noite, havia apertão e multidão
compacta nas salas do Gun-Club(Union-square, 21). Todos os membros
d'aquelle club, que residiam em Baltimore, tinham acudido ao
convite do presidente. Os socios correspondentes apeavam-se aos
centos dos comboios expressos, nas ruas da cidade, e grande como
era a "hall"(salão) das sessões, ainda assim aquella multidão
immensa de sábios não pôde caber lá; assim a multidão refluia para
todas as salas proximas e ainda para os corredores, e até ao meio
dos pateos exteriores, onde se encontrava com o simples popular que
fazia apertão ás portas; cada um procurava alcançar melhor logar;
todos avidos de conhecer a importante communicação do presidente
Barbicane, apertavam-se, empurravam-se, esmagavam-se com aquella
liberdade de acção que é peculiar das massas educadas e creadas nas
idéas do self-government.
N'aquella noite o forasteiro que o acaso tivesse levado a
Baltimore, nem a peso de oiro teria conseguido penetrar no salão
grande. Fôra este exclusivamente reservado para os socios
residentes ou correspondentes; ninguem mais lá podia ser admittido,
e até os notaveis da cidade e os magistrados do conselho dos
selectmen tinham tido que misturar-se
com a turba dos seus
administrados para apanharem de relance alguma novidade lá de
dentro.
Apesar d'isto a immensa "hall" apresentava um espectaculo
verdadeiramente digno de excitar a curiosidade, e o vasto aposento
estava maravilhosamente apropriado ao seu destino. Sustentavam-lhe
os finos lavores da abobada, verdadeira renda esculpida a
saca-bocados no ferro fundido, elevadas columnas compostas de
canhões sobrepostos e apoiados em enormes morteiros. Nas paredes
agrupavam-se enlaçadas em pittorescos florões panoplias de
bacamartes, de arcabuzes, de carabinas de toda a especie, de armas
de fogo antigas e modernas. Rebentava a chamma viva do gaz de um
milheiro de revolvers agrupados em fórma de lustres, completando
aquella esplendida illuminação girandolas de pistolas, e
candelabros feitos de espingardas enfeixadas. Modelos de canhões,
amostras de bronze, alvos crivados de buracos, placas quebradas
pelo choque das balas do Gun-Club, collecções completas de
calcadouros e lanadas, rosarios de bombas, collares de projectis,
grinaldas de obuzes, n'uma palavra todas as ferramentas do
artilheiro se encontravam ali em tão surprehendente e admiravel
disposição, que levava a crer que o seu verdadeiro fim era mais
ornamental do que mortifero.
Contemplava-se no logar de honra resguardado por uma esplendida
vitrine um pedaço de culatra, quebrado e torcido pela força da
polvora. Era uma preciosa reliquia do morteiro de J.-T. Maston.
No fundo da sala, sobre uma espaçosa esplanada sentava-se o
presidente ladeado por quatro secretarios. A cadeira presidencial
levantada sobre um reparo esculpido, apparentava no conjuncto das
robustas fórmas a figura de um morteiro de trinta e duas
pollegadas, empontaria por um angulo de noventa graus e suspensa em munhões,
por fórma tal que o presidente podia dar-lhe, como a qualquer
rocking-chair, um balanço muito agradavel nas occasiões de
grande calor. Sobre a mesa, grande placa de ferro laminado,
aguentada por seis coronadas, estava um tinteiro de gosto delicado:
era feito de um biscainho deliciosamente cinzelado. Ao lado estava
uma campainha de detonação, que na occasião propria soava como um
revolver. E nas occasiões de discussão vehemente mal bastava esta
campainha de novo genero para superar as vozes d'aquella legião de
artilheiros enthusiasmados.
Em frente da mesa presidencial estavam dispostos em zig-zags, como
as circumvallações de uma trincheira, formando uma serie de
bastiões e de cortinas, os bancos onde tomavam assento os socios do
Gun-Club; e n'aquella noite podia afoitamente dizer-se "que estava
bastante gente nas muralhas". O presidente era por demais
conhecido, para que alguem acreditasse que havia de incommodar os
collegas sem motivo de maior gravidade.
Impey Barbicane era homem de quarenta annos, impassivel, frio,
austero, de espirito eminentemente serio e concentrado, de
temperamento a toda a prova e de caracter inabalavel; pouco
cavalheiresco, e todavia aventuroso, cingia-se ás idéas praticas,
ainda quando empenhado nos mais temerarios emprehendimentos; era o
homem por excellencia da Nova Inglaterra, o colonisador dos estados
do norte, o descendente d'aquelles Cabeças Redondas, que tão
funestos foram para os Stuarts, o inimigo implacavel dos gentlemen
dos estados do sul, legitimos representantes dos antigos
Cavalleiros da mãe patria. N'uma palavra, um yankee de antes
quebrar que torcer.
Barbicane fizera grande fortuna no commercio das madeiras; nomeado
durante a guerra director de artilheria, mostrou-se fertil em
invenções, e cheio de audacia em todas as suas idéas contribuiu
poderosamente para os progressos d'aquella arma, communicando ás
indagações experimentaes incomparavel actividade.
Era homem de corporatura media, e que tinha, rara excepção no
Gun-Club, todos os membros intactos. Parecia que as feições
accentuadas lhe tinham sido talhadas a esquadro e tira-linhas, e se
é verdade que, para adivinhar os instinctos de alguem, devemos
olha-lo de perfil, Barbicane, examinado assim, apresentava os mais
seguros indicios de energia, de audacia e de presença de
espirito.
N'aquelle instante, estava immovel na cadeira presidencial, mudo,
absorto, com o olhar vago e profundo, com o rosto semi-occulto pelo
chapéu de fórma alta, cylindro de seda preta que parece seguro a
tarraxa no craneo de qualquer americano.
Conversavam em torno d'elle e em voz alta os collegas, sem
conseguirem distrahi-lo; abalançavam-se ao campo das supposições,
olhavam o presidente, buscando em vão deduzir o X da sua
imperturbavel physionomia.
Quando deram oito horas no relogio fulminante dosalão, Barbicane levantou-se de subito, como que impellido por
uma mola; calou-se tudo, e o orador, em tom um pouco emphatico,
usou da palavra nos seguintes termos:
"Estimaveis consocios, de ha muito que a paz infecunda veiu
immergir os socios do Gun-Club em lastimosa inactividade. Depois de
um periodo de alguns annos, tão cheio de incidentes, fomos forçados
a abandonar os nossos trabalhos e a fazer alto de subito na senda
do progresso. Não me arreceio de proclama-lo em voz bem alta, uma
guerra qualquer que de novo nos pozesse as armas nas mãos, seria
bem recebida...
--Apoiado, á guerra! exclamou o impetuoso J.-T. Maston.
--Ouçam! ouçam! disseram de todos os lados.
--Porém a guerra, proseguiu Barbicane, a guerra é impossivel nas
circumstancias actuaes, e por maiores que sejam as esperanças do
meu honrado interruptor, penso que muitos annos hão de correr antes
que os canhões americanos troem de novo no campo de batalha. É
portanto necessario que a isso nos resignemos e que busquemos
n'outra ordem de idéas alimento para a actividade que nos
devora!"
A assembléa percebeu que o presidente chegava ao ponto delicado;
redobrou a attenção.
"Ha mezes, valentes collegas, continuou Barbicane, que perguntei eu
a mim proprio se, sem sair da nossa especialidade, poderiamos
emprehender alguma d'essas grandes experiencias dignas do seculo
XIX, e se nos permittiriam os progressos da balistica sair bem do
nosso empenho.
Em consequencia, inquiri, trabalhei, calculei, e dos meus estudos
resultou a convicção de que havemos de saír-nos bem de um
emprehendimento, que pareceria impraticavel em qualquer outro paiz.
É
este projecto, por longo tempo elaborado, que vae ser assumpto da
minha communicação: é digno de vós, digno do passado do Gun-Club, e
não póde deixar de fazer estrondo no mundo!
--Bastante estrondo? perguntou um artilheiro enthusiasta.
--Muito estrondo, no verdadeiro sentido da palavra, respondeu
Barbicane.
--Não interrompam! disseram muitas vozes.
--Peço-lhes, pois, caros collegas, accrescentou o presidente, que
me dêem completa attenção."
Um fremito percorreu a assembléa inteira. Barbicane, depois de, com
gesto rapido, ter carregado o chapéu na cabeça, proseguiu no seu
discurso com voz placida:
Não ha um só de vós, estimaveis collegas, que não tenha visto a
Lua, ou que, pelo menos, não ouvisse fallar n'ella. E não vos
admireis de que venha aqui fallar-vos do astro das noites. Talvez
esteja para nós reservado sermos os Colombos d'esse mundo ignoto.
Seja eu comprehendido, auxiliado com todo o poder de que os meus
socios dispõem, e conduzi-los-hei á conquista d'esse novo mundo,
cujo nome ha de vir juntar-se aos dos trinta e seis estados que
compõem este grande paiz da União!
--Hurrah pela Lua! gritou, como um só homem, o Gun-Club
inteiro.
--Muito setem estudado ácerca da Lua, continuou Barbicane, a massa, a
densidade, o peso, o volume, a constituição, os movimentos, a
distancia emfim d'este astro, e o papel que elle desempenha no
mundo solar estão perfeitamente determinados: ha mappas
selenographicos cuja perfeição é igual senão superior á dos
mappas terrestres: pela photographia têem-se obtido do nosso
satellite provas de belleza imcomparavel. Resumindo, sabemos ácerca
da Lua tudo quanto as mathematicas, a astronomia, a geologia e a
optica poderam ensinar-nos; mas até hoje ainda se não estabeleceu
meio algum directo de communicação com esse astro."
A ultima phrase do orador excitou tal interesse e surpreza na
assembléa, que chegou a produzir violenta agitação.
--Permittam-me, continuou este, que lhes traga á lembrança em
poucas palavras, como foi que alguns homens exaltados, tendo
embarcado em espirito para viagens imaginarias, pretenderam ter
penetrado os segredos do nosso satellite. No seculo XVII, um tal
David Fabricius, gabou-se de ter visto com os seus proprios olhos
alguns habitantes da Lua. Em 1649, um francez, João Baudoin,
publicou um livro intitulado a Viagem feita ao mundo Lunar por
Domingos Gonzalez, aventureiro hespanhol. Na mesma epocha, deu á
luz da publicidade Cyrano de Bergerac, aquella celebre expedição,
que tanto renome teve em França. Algum tempo depois, outro
francez(porque estes senhores entretem-se muito com a Lua) chamado
Fontenelle escreveu a Pluralidade dos mundos, que foi, no seu tempo
uma obra prima; verdade é que a sciencia em seu caminhar constante
até as obras primas esmaga. Em 1835 um opusculo traduzido do jornal
New York American contava que sir John Herschell, enviado ao Cabo
da Boa Esperança para ali fazer observações astronomicas, tinha
conseguido, por meio de um telescopio aperfeiçoado por illuminação
interior, trazer a Lua a uma distancia apparente de oitenta
jardas. Por esta fórma observára distinctamente na Lua
cavernas, nas quaes viviam hippopotamos, verdejantes montanhas
franjadas de renda de oiro, carneirinhos com armas de marfim,
brancos cabritos montezes e até habitantes com azas membranosas
como os morcegos. Este folheto, obra de um americano chamado
Loche, teve grande voga. Mas pouco depois conheceu-se que não
era senão uma mystificação scientifica, e os francezes foram as
primeiras a rir-se d'elle.
--Rir de um americano! exclamou J.-T. Maston; mas isso é um casus
belli!...
--Socegue o meu digno amigo, que antes de se rirem tinham sido os
francezes perfeitamente embaidos pelo nosso compatriota. Para
terminar esta breve resenha historica, accrescentarei que um tal
Hans Pfaal de Rotterdam, elevando-se n'um balão cheio de um gaz
tirado do azote e trinta e sete vezes mais leve que o hydrogeneo,
chegou á Lua, depois de dezenove dias de viagem, e tambem que esta
viagem nãopassou, como as anteriores, de uma tentativa da imaginação; era
porém obra de um escriptor popular na America, engenho singular e
contemplativo. É como se pronunciára o nome de Pöe.
--Hurrah por Edgard Pöe! exclamou a assembléa electrisada pelas
palavras do presidente.
--Conclui o que tinha a dizer-vos, proseguiu Barbicane, no que diz
respeito a tentativas que considerarei puramente litterarias e
absolutamente insufficientes para estabelecer serias relações com o
astro das noites. Devo todavia accrescentar, que alguns espiritos
praticos tentaram já por-se em seria communicação com elle. Foi
assim que ha alguns annos um geometra allemão propoz que se
mandasse aos aridos steppes da Siberia uma commissão de homens de
sciencia, para que n'aquellas vastas planicies fizessem desenhar
por meio de reflectores luminosos, immensas figuras geometricas,
entre outras a do quadrado da hypothenusa, vulgarmente chamada
pelos francezes "le Pont aux ânes".
"Todo o ser intelligente, dizia este geometra, deve comprehender
qual o destino scientifico de taes figuras; portanto os
selenitas, se é que existem, hão de responder por meio de
figuras similhantes, e uma vez estabelecida a communicação, facil
será inventar um alphabeto, que dê meio de conversar com os
habitantes da Lua."
Assim fallava o geometra allemão; mas tal alphabeto nunca teve
execução, e até hoje nenhuma ligação directa existiu entre a Terra
e o seu satellite. Estava reservado para o engenho pratico dos
americanos o porem-se em relação com o mundo sideral. E o meio de
consegui-lo é simples, facil, certo, infallivel, e vae ser o
assumpto da minha proposta."
Estas palavras tiveram por ecco uma immensa algazarra, uma
tempestade de exclamações e de applausos. Não havia um só dos
assistentes que não se tivesse deixado dominar, arrastar e
enthusiasmar pelas palavras do orador.
Ouçam! ouçam! silencio! era o que se ouvia de todos os lados.
Logoque socegou a agitação, Barbicane continuou em voz mais grave o
seu interrompido discurso:
"Sabeis todos, disse, que progressos se tem feito em balistica de
alguns annos a esta parte, e a que ponto de perfeição teriam
chegado as armas de fogo se a guerra tivesse continuado. Tambem não
ignoraes que póde affirmar-se, em geral, que a força de resistencia
do canhão e a potencia expansiva da polvora não tem limitação. Pois
bem! Partindo d'este principio, perguntei a mim proprio, se usando
de um instrumento adequado, collocado em condições determinadas de
resistencia, seria possivel enviar uma bala até a Lua!"
Ao ouvir a assembléa estas palavras, exhalou-se a um tempo, de mil
peitos arquejantes, uma exclamação de profundo pasmo; houve depois
uma pausa silenciosa, similhante á profunda calmaria que precede as
tempestades.
E effectivamente ribombou o trovão, mas um trovão de applausos, de
gritos, de clamores, que fez tremera sala das sessões. O presidente queria fallar, e não podia, só
passados dez minutos conseguiu fazer-se ouvir.
"Deixem-me concluir, disse elle friamente. Estudei a questão sob
todos os seus aspectos, ataquei resolutamente o problema, e dos
meus calculos indiscutiveis resulta, que um projectil animado de
uma velocidade inicial de doze mil jardas por segundo, e
dirigido para a Lua, ha de necessariamente lá chegar. Tenho pois a
honra, estimaveis collegas, de propor-vos que tentemos esta pequena
experiencia!"
É impossivel descrever o effeito produzido pelas ultimas palavras
do honrado presidente. Que gritos! que vociferações! que successão
de grunhidos, de hurrahs, de "hip! hip! hip!" de todos aquellas
onomatopeas que superabundam na linguagem dos americanos. Era uma
desordem, uma algazarra indescriptivel! Gritavam as bôcas, batiam
as mãos, e os pés abalavam o pavimento das salas. Nem que todas as
armas d'aquelle museu de artilheria se disparassem a um tempo
teriam agitado com maior violencia as ondas sonoras. Nem o caso é
para admirar. Artilheiros ha mais ruidosos que os proprios
canhões.
Barbicane permanecêra impassivel no meio de todos estes clamores
enthusiastas; desejava talvez dirigir ainda mais algumas palavras
aos consocios, porque pelos gestos reclamava silencio, e o timbre
fulminante disparou tão violenta como inutilmente. Porém nem sequer
o ouviam. Pouco depois arrancaram-n'o da cadeira presidencial e
levaram-n'o em triumpho, passando das mãos dos fieis camaradas para
os braços de uma multidão não menos exaltada.
Não ha cousa n'este mundo capaz de causar pasmo a um americano.
Muitas vezes se tem repetido que a palavra "impossivel" não é
franceza. Certamente ha n'esta asserção troca de diccionario. Na
America é que tudo é facil, tudo é simples, e pelo que diz respeito
a difficuldades mechanicas, essas estão mortas já antes de
nascerem. Nem um só yankee genuino teria permittido a si proprio
sonhar sequer uma sombra de difficuldade entre o projecto Barbicane
e a sua realisação. Dito e feito.
O passeio triumphal do presidente prolongou-se durante a noite. Foi
uma verdadeira marcha á luz dos archotes. Irlandezes, allemães,
francezes, toda a casta de individuos heterogeneos de que é formada
a população do Maryland, gritavam na sua lingua patria. Os vivas,
os hurrahs e os bravos confundiam-se n'um enthusiasmo
inesprimivel.
Por coincidencia a Lua, como se percebêra que d'ella se tratava,
brilhava n'aquella noite com uma serena magnificencia, e eclipsava
com a intensa irradiação todas as luzes terrestres.
Os yankees dirigiam todos os olhos para o disco scintillante do
astro: saudavam-n'o uns com a mão, outros chamavam-lhe os nomes
mais carinhosos; estes mediam-n'a com os olhos, aquelles
ameaçavam-n'a de murro fechado. Um fabricante de instrumentos de
optica de James-Fall-street fez fortuna a vender oculos desdeas oito horas até á meia noite. O
astro das noites era
contemplado atravez dos vidros das lunetas, como se fôra qualquer
lady da alta sociedade. Os americanos procediam já para com elle
com a sem-ceremonia de verdadeiros proprietarios. Quem os visse
diria, que a loura Phoeba era já dominio d'aquelles conquistadores
audazes, e parte integrante do territorio da União.
E todavia mal começára ainda a agitar-se o problema de mandar-lhe
um projectil, maneira um tanto aspera de encetar relações, mesmo
com um satellite, porém muito usada entre nações civilisadas.
Meia noite acabava de soar e o enthusiasmo não arrefecia;
mantinha-se em igual nivel em todas as classes da população;
magistrados, homens de sciencia, negociantes, logistas e carrejões,
tanto os homens de intelligencia elevada e culta, como os estupidos
e ignaros tinham sentido abalo profundo na mais delicada fibra de
seu ser; o caso de que se tratava era um emprehendimento nacional,
e por isso na cidade alta, na cidade baixa, nos caes banhados pelas
aguas do Patapsco, nos navios fundeados nas docas, apinhava-se a
multidão, ebria de alegria, de gin e de wisky; conversavam todos,
peroravam, discutiam, disputavam, approvavam ou applaudiam, desde o
gentleman, que negligentemente recostado no canapé de algum
botequim, defrontava com a sua chope e de sherry-cobler, até ao
aguadeiro, que se emborrachava com mataratos n'alguma sombria
taberna de Fells-Point.
Comtudo, pela volta das duas horas, acalmou-se a emoção, e o
presidente Barbicane conseguiu recolher a casa, moido, esfalfado e
derreado. Nem um Hercules teria resistido a tal enthusiasmo. A
turba foi pouco e pouco evacuando as praças e as ruas. Os quatro
caminhos de ferro do Ohio, de Susquehanna, de Philadelphia e de
Washington, que entroncam em Baltimore, foram lançar o publico
hexogeneo nos quatro extremos dos Estados Unidos, e a cidade
começou de repousar em relativa tranquillidade.
Enganar-se-ia quem suppozesse que durante aquella memoravel
noitada, só Baltimore fôra victima da agitação que descrevemos.
Todas as grandes cidades da União, Nova-York, Boston, Albany,
Washington, Richmond, a Cidade Crescente, Charleston, Mobile,
desde o Texas até ao Massachussets, e desde o Michigan até ás
Floridas, todas participaram d'aquelle delirio, porque os trinta
mil socios correspondentes do
Gun-Club, que já tinham conhecimento
da carta do seu presidente, esperavam com igual impaciencia a
famosa communicação de 5 de outubro, e portanto n'esta mesma noite,
á medida que as palavras saíam dos labios do orador, iam correndo
pelos fios telegraphicos, através dos Estados da União, com a
velocidade de duzentas e quarenta e oito mil quatrocentas e
quarenta e sete milhas por segundo. Por consequencia póde
dizer-se, com absoluta certeza, que os Estados Unidos, que têem dez
vezes o tamanho da França, soltaram n'ummesmo instante um hurrah, unico e unanime, e que vinte e cinco
mil corações, entumecidos de orgulho, bateram a mesma pulsação.
No dia seguinte lançaram mão do assumpto mil e quinhentos
periodicos diarios, hebdomadarios, mensaes ou bi-mensaes, e
estudaram-n'o sob os differentes pontos de vista da physica, da
meteorologia, da economia politica e da moral; pelo lado da
preponderancia politica, e pelo da civilisação. Discutiam se a Lua
era um mundo acabado, ou se estaria ainda em via de transformação.
Perguntavam se era similhante á terra na epocha em que esta não
tinha ainda atmosphera, qual era o aspecto da face lunar invisivel
do espheroide terrestre, e ainda que se não tratava na occasião de
mais do que enviar uma bala ao astro das noites, ninguem duvidava
que esse facto seria ponto de partida para uma serie de novas
experiencias, antes todos esperavam que um dia a America havia de
penetrar os mais occultos arcanos do mysterioso disco. Havia até já
quem parecesse arreceiar-se de que a conquista da Lua viesse a
transtornar o equilibrio europeu.
Discutiu-se é verdade o projecto, mas nem um unico jornal poz
duvidas á possibilidade da realisação d'elle; antes pelo contrario
até as revistas, folhetos, boletins e magasines publicados por
associações scientificas, litterarias ou religiosas se encarregaram
de demonstrar as vantagens de tal tentativa. A sociedade de
historia natural de Boston, a sociedade americana de sciencias e
artes de Albany, a sociedade geographica e estatistica de New-York,
a sociedade philosophica americana de Philadelphia, e o Instituto
Smithsoniano de Washington enviaram ao Gun-Club milhares de cartas
de felicitação, com offerecimentos promptos de coadjuvação e
dinheiro.
Póde portanto dizer-se que nunca proposta alguma alcançou tão
grande numero de adhesões; de hesitar, duvidar ou arreceiar-se pelo
bom exito
d'ella, é que ninguem se lembrou; e se a alguem
occorresse, como de certo teria succedido na Europa, e
particularmente em França, responder com mofas, caricaturas ou
cançonetas epigrammaticas á idéa de enviar um projectil á Lua, de
bem mau proveito lhe haviam de servir, que nem todos os
guarda-vidas do mundo lhe poderiam guardar as costas contra a
indignação geral.
Ha cousas de que não é permittido rir no novo mundo.
A partir d'aquelle dia foi pois Impey Barbicane considerado como um
dos mais notaveis e maiores cidadãos dos Estados Unidos, uma
especie de Washington da sciencia; um só facto entre muitos bastará
para evidenciar a que ponto chegára aquella infeudação subita de um
povo inteiro a um homem.
Passados alguns dias depois da famosa sessão do Gun-Club,
annunciou, no theatro de Baltimore, o director de uma companhia
ingleza a representação de Much ado about nothing. Oraa população da cidade, que viu no titulo da comedia uma allusão
offensiva aos projectos do presidente Barbicane, invadiu a sala,
escangalhou os bancos, e obrigou o desgraçado do director a alterar
o cartaz. O director, que era homem fino, soube curvar-se perante a
vontade publica, e substituiu a desventurada comedia por As you
like it. O resultado foi ter, durante muitas semanas
consecutivas, enchentes phenomenaes.
Barbicane, apesar de todas as ovações de que era alvo, não
desperdiçou um só instante. A primeira cousa de que tratou foi de
reunir os collegas da mesa nas salas de commissão do Gun-Club,
onde, com previa discussão, se accordou que fossem consultados os
astronomos ácerca da parte astronomica do projecto, e que depois de
conhecida a resposta d'estes, se discutissem então os meios
mechanicos, sem descurar cousa alguma para tornar seguro o exito da
grande experiencia.
Redigiu-se por consequencia uma nota extremamente precisa, contendo
perguntas especiaes, que foi dirigida ao observatorio de Cambridge,
no Massachussets. A cidade de Cambridge, onde foi fundada a
primeira universidade dos Estados Unidos, é justamente nomeada pelo
seu observatorio astronomico, onde se encontram reunidos homens de
sciencia do mais elevado merecimento. É ali que funcciona o potente
telescopio, com o qual Bond conseguiu resolver a nebulosa de
Andromedes, e Clarke descobrir o satellite de Sirius. Todos os
precedentes d'este estabelecimento celebre justificavam portanto a
confiança do Gun-Club.
E com effeito, dois dias depois, chegava ás mãos do presidente
Barbicane a resposta tão impacientemente esperada.
Era concebida nos seguintes termos:
"Do director do observatorio de Cambridge para o presidente do
Gun-Club, em Baltimore.
"Logoque se recebeu a vossa honrosa missiva de 6 do corrente,
endereçada ao observatorio de Cambridge em nome dos socios do
Gun-Club, de Baltimore, reuniu-se o pessoal scientifico d'este
estabelecimento, e houve por conveniente responder como se
segue:
"As perguntas que lhe foram feitas são as seguintes:
"1.º Será possivel enviar um projectil até á Lua?
"2.º Qual é a distancia exacta que ha entre a Terra e o seu
satellite?
"3.º Quanto tempo durará o trajecto do projectil ao qual tenha sido
imprimida a velocidade inicial sufficiente, e por consequencia, em
que momento deverá ser arremessado para que encontre a Lua n'um
ponto determinado?
"4.º Em que momento prefixo estará a Lua na posição mais favoravel
para ser alcançada pelo projectil?
"5.º A que ponto do céu deve fazer-se a pontaria com o canhão
destinado a lançar o projectil?
"6.º Que logar ha de occupar a Lua no céu, no momento da partida do
projectil?
"Em relação á primeira pergunta: Será possivel enviar um projectil
até á Lua?
"Sim, é possivel alcançar aLua com um projectil, comtanto que se consiga animar esse
projectil de uma velocidade inicial de 12:000 jardas por segundo.
Demonstra o calculo que tal velocidade é bastante.
"Á medida que nos afastâmos da terra, a acção da gravidade diminue
na rasão inversa do quadrado das distancias, isto é, por exemplo,
para uma distancia tres vezes maior, torna-se nove vezes menor. Por
consequencia o peso da bala ha de decrescer rapidamente, até chegar
a ser completamente nullo, o que ha de succeder no momento em que a
attracção da Lua fizer equilibrio á da Terra, isto é, quando tiver
percorrido 47⁄52 avos do seu trajecto. N'esse momento o projectil
não terá peso algum, e se passar alem d'esse ponto ha de caír para
a Lua só por effeito da attracção lunar. Fica portanto
irrecusavelmente demonstrada a possibilidade theorica da
experiencia; emquanto ao seu bom exito, esse depende unicamente da
potencia do machinismo que se empregar.
"Com respeito á segunda pergunta: Qual é a distancia exacta que ha
entre a Terra e o seu satellite?
"A Lua não descreve em torno da terra uma circumferencia de
circulo, mas sim uma ellipse, n'um dos focos da qual está situado o
nosso globo; d'ahi vem por consequencia que a Lua está, ora mais
proxima, ora mais afastada da terra, ou em termos astronomicos,
agora no apogeo, logo no perigeo; e a differença entre a maior e a
menor distancia é relativamente bastante consideravel para que não
devamos despreza-la. Com effeito, no apogeo está a Lua a 247:552
milhas(99:640 leguas de 4 kilometros) e no perigeo a 218:657 milhas
sómente(88:010 leguas) da Terra, o que dá uma differença de 28:895
milhas(11:630 leguas), que é mais da nona parte do percurso total.
Portanto a distancia perigea da
Lua é que deve servir de base aos
calculos.
"Ácerca da terceira pergunta: Qual será a duração do trajecto do
projectil ao qual tenha sido imprimida a velocidade inicial
bastante, e consequentemente em que momento deverá ser lançado para
que vá encontrar a Lua em um determinado ponto?
"Se a bala conservasse indefinidamente a velocidade inicial de 12
jardas por segundo, que lhe fosse imprimida no momento da partida,
gastaria apenas nove horas approximadamente para chegar ao seu
destino; mas como a velocidade inicial ha de ir continuamente
decrescendo, deduz-se, feitos os calculos, que o projectil ha de
empregar 300:000 segundos ou 83 horas e 20 minutos para chegar ao
ponto onde as attracções terrestre e lunar se equilibram, e a
partir d'este ponto ha de cair na superficie da Lua em 50:000
segundos ou 13 horas, 53 minutos e 20 segundos. Convem pois lançar
o projectil97 horas, 13 minutos e 20 segundos antes do momento em que a Lua
haja de chegar ao ponto de mira.
"Em relação á quarta pergunta: Em que instante prefixo estará a Lua
na posição mais favoravel para ser alcançada pelo projectil?
"Em consequencia do que deixâmos dito, deve, em primeiro logar,
escolher-se a epocha em que a Lua estiver no perigeo, e
simultaneamente o instante em que passar pelo zenith, circumstancia
que ha de diminuir ainda o percurso do projectil de uma distancia
igual ao raio da terra, isto é, de 3:919 milhas, vindo por esta
fórma a ser o trajecto definitivo de 214:976 milhas(86:410 leguas).
Porém a Lua, que passa todos os mezes pelo seu perigeo, nem sempre
se encontra no zenith no mesmo instante, e só a largos intervallos
satisfaz simultaneamente a estas duas condições. Necessario é
portanto esperar a coincidencia da passagem pelo perigeo com a
passagem pelo zenith.
"Por feliz acaso, no dia 4 de dezembro do anno proximo, a Lua ha de
preencher as duas condições indicadas: á meia noite estará no
perigeo, isto é, no ponto da sua orbita d'onde é mais curta a
distancia á Terra, e passará no mesmo instante pelo zenith.
"Em relação á quinta pergunta: A que ponto do céu deve fazer-se a
pontaria com o canhão destinado a lançar o projectil?
"Suppondo admittidas as considerações que precedem, o canhão deve
ser dirigido para o zenith do logar, por maneira que o tiro
venha a ser perpendicular ao plano do horisonte e o projectil fuja
assim mais rapidamente aos effeitos da attracção terrestre. Mas
para que a Lua passe pelo zenith de um logar terrestre, é
necessario que este logar não tenha latitude maior do que a
declinação do astro, por outra que o logar esteja comprehendido
entre o equador e os parallelos, que distam d'elle 28° para norte
ou sul. Em qualquer outro logar da terra o tiro havia
necessariamente de ser obliquo, o que seria prejudicial ao bom
exito da experiencia.
"A respeito da sexta pergunta: Que logar deve occupar a Lua no céu,
no instante da partida do projectil?
"No momento em que o projectil for lançado ao espaço, a Lua que
avança em cada dia 13°, 10' e 35", deve estar afastada do ponto
zenithal quatro vezes esta grandeza, isto é, 52°, 42' e 20", espaço
que corresponde ao caminho que ha de andar durante o percurso do
projectil. Mas como se deve tambem attender ao desvio que ha de vir
ao projectil do movimento de rotação da Terra, e como, quando a
bala chegar á Lua, este desvio deve ter attingido umagrandeza igual a dezeseis raios terrestres, que contados sobre a
superficie da Lua, dão proximamente 11°, devem juntar-se estes 11°
aos já mencionados, que exprimem o atrazo da Lua, o que dá 64° em
numeros redondos.
"Consequentemente o raio visual dirigido para a Lua deve, no
momento do tiro, fazer com a vertical do logar um angulo de
64°.
"Taes são as respostas ás perguntas feitas pelos socios do Gun-Club
ao observatorio de Cambridge.
"Em resumo:
"1.º O canhão deve ser collocado n'uma região situada entre o
equador e os parallelos de 28 graus de latitude norte ou sul.
"2.º Deve ser dirigido para o zenith do logar.
"3.º O projectil deve ir animado de uma velocidade inicial de doze
mil jardas por segundo.
"4.º Deve ser lançado no dia 1.º de dezembro do anno proximo, ás
onze horas menos treze minutos e vinte segundos.
"5.º O projectil ha de encontrar a Lua, quatro dias depois da
partida, no dia 4 de dezembro á meia noite exacta, no momento em
que o astro passa pelo zenith.
"Devem portanto os socios do Gun-Club dar começo sem demora aos
trabalhos necessarios para realisar um emprehendimento de tal
ordem, e prepararem-se para a execução no momento determinado,
porque se deixarem passar a data indicada de 4 de dezembro, só
dezoito annos e onze dias depois volverá a Lua a entrar nas mesmas
condições em relação ao zenith e ao perigeo.
"O pessoal scientifico do observatorio de Cambridge fica
inteiramente á disposição do Gun-Club para todos os assumptos de
astronomia theorica, e aproveita a occasião da presente para juntar
as suas felicitações ás da America inteira.
"Pelo pessoal scientifico do estabelecimento.--J. M. Belfast,
director do observatorio de Cambridge."
Um observador dotado de vista infinitamente penetrante e collocado
no centro, n'aquelle centro ignoto, em torno do qual gravita o
mundo, teria visto, na epocha cahotica do universo, o espaço cheio
de myriades de atomos. Mas pouco e pouco, com o volver dos seculos
produziu-se uma mudança; manifestou-se uma lei de attracção, á qual
obedeceram os atomos outr'ora errantes; combinaram-se estes atomos
chimicamente, segundo suas affinidades, fizeram-se moleculas e
formaram esses
aggregados nebulosos de que estão semeadas as
profundezas do céu.
Animaram-se então estes aggregados de um movimento de rotação em
volta do seu ponto central, e este centro formado de moleculas
vagas poz-se tambem a girar sobre si mesmo, ao passo que se ia
progressivamente condensando. Segundo as leis immutaveis da
mechanica, á medida que se lhe minguava o volume pela condensação,
ia-se-lhe accelerando o movimento de rotação e, persistindo estes
dois effeitos, de cada centro, resultou uma estrella principal,
novo centro do aggregado nebuloso.
Se o observadorolhasse então attentamente, teria visto succeder com as outras
moleculas do aggregado, o mesmo que succedêra com a estrella
central: condensaram-se adquirindo simultaneamente um movimento de
rotação progressivamente accelerado, e gravitaram em torno da
central, transformadas em outras tantas estrellas. E assim ficava
formada uma nebulosa. Não menos de cinco mil nebulosas
conhecem, na actualidade, os astronomos.
Ha uma, entre estas cinco mil nebulosas, a que os homens chamaram
via lactea, e que contém dezoito milhões de estrellas, cada uma
das quaes se transformou em centro de um mundo solar.
Se o observador, rodeado por estes dezoito milhões de astros,
volvesse especialmente a attenção para um dos mais modestos e menos
brilhantes, para uma estrella de quarta ordem, que
orgulhosamente appellidâmos o Sol, debaixo dos olhos lhe teriam
succedido todos os phenomenos a que é devida a formação do
universo.
Effectivamente havia de ver esse Sol, ainda no estado gazoso e
composto de moleculas moveis, a girar em torno do proprio eixo para
concluir o trabalho de concentração, e este movimento, subordinado
ás leis da mechanica, havia accelerar-se com a diminuição do
volume, e um instante havia de chegar em que a força centrifuga
venceria a força centripeta, que attrahe as moleculas para o
centro.
Outro phenomeno então havia de realisar-se diante dos olhos do
observador, as moleculas situadas no plano do equador, soltando-se
como a pedra da funda de que subito rebenta a corda, haviam de ir
formar, em volta do Sol, anneis concentricos como o de Saturno. A
estes anneis de materia cosmica, animados de movimento de rotação
em volta da massa central, chegaria depois a vez de partir-se e
decompor-se em nebulosidades secundarias, o que vale o mesmo que
dizer, em planetas.
Concentrada então toda a attenção do observador sobre os planetas
havia de ver realisarem-se n'elles os mesmos phenomenos que
observára no Sol. De cada um d'elles dimana um ou mais anneis
cosmicos, origens dos astros de ordem inferior a que chamâmos
satellites.
Subindo assim do atomo á molecula, da molecula ao aggregado
nebuloso, do aggregado nebuloso á nebulosa, da nebulosa á estrella
principal, da estrella principal ao Sol, do Sol ao planeta, do
planeta ao satellite, examinâmos a serie inteira de transformações
por que passaram os corpos celestes desde os primeiros dias do
mundo.
O Sol, que parece perdido na immensidade do mundo estellar, está
todavia ligado pelas ultimas theorias da sciencia á nebulosa
chamada via lactea. Ainda que no meio das regiões ethereas nos
pareça pequeno, é todavia o centro de um mundo, e é enorme, poisque
o seu volume é igual a mil e quatrocentas vezes o volume da Terra.
Em torno d'ella gravitam oito planetas,que nos primeiros tempos da creação lhe sairam das proprias
entranhas. São estes planetas, progredindo do mais proximo até ao
mais remoto, Mercurio, Venus, a Terra, Marte, Jupiter, Saturno,
Urano e Neptuno. Alem d'estes circulam, regularmente entre Marte e
Jupiter, outros corpos de volume menos consideravel, talvez restos
errantes de algum astro quebrado em milhares de pedaços; d'estes
conta o telescopio não menos de noventa e sete. Alguns d'estes
servidores que o Sol mantém nas respectivas orbitas ellipticas por
força da grande lei da gravitação, tambem têem seus satellites.
Urano tem oito, Saturno oito, Jupiter quatro, Neptuno talvez tres,
a Terra só um; este, que é um dos menos importantes do mundo solar,
chama-se Lua, e é o que o engenho audaz dos americanos pretendia
conquistar.
O astro das noites, já pela proximidade relativa a que está, já por
virtude do espectaculo rapidamente renovado das diversas phases que
apresenta, partilhou sempre com o Sol a attenção dos habitantes da
Terra; mas o olhar para o Sol cansa, e os esplendores da luz solar
forçam os contempladores d'este astro a baixar os olhos.
A loura Phoeba é mais humana, e cheia de modesta graça deixa-se ver
com complacencia; é suave para a vista, pouco ambiciosa, e comtudo
toma ás vezes a liberdade de eclipsar seu irmão, o radiante Apollo,
sem que nunca fosse eclipsada por este. Comprehenderam os
mahometanos a gratidão que era devida á fiel amiga da Terra; por
isso regularam pela revolução d'ella a contagem dos mezes.
Votaram os primeiros povos culto particular a esta casta deusa.
Chamaram-lhe os egypcios Isis, os phenicios Astartea, e os gregos
adoraram-n'a sob o nome de Ph[oe]ba, como filha de Jupiter e de
Latona, e explicavam os eclipses por visitas mysteriosas de Diana
ao bello Endymião.
Diz-nos a lenda mythologica, que o leão de Nemea, antes de
apparecer na Terra, percorrêra as campinas da Lua, e o poeta
Agesianax, citado por Plutarcho, celebrou em verso os dois olhos, o
encantador nariz e a bôca amavel, que figuram as partes luminosas
da adoravel Seléné.
Porém se os antigos comprehenderam perfeitamente o caracter, o
temperamento, emfim as qualidades moraes da Lua, sob o ponto de
vista mythologico, não é menos verdade, que os mais sabedores
d'elles eram extremamente ignorantes pelo que diz respeito a
selenographia.
Todavia, muitos dos astronomos d'essas epochas longiquas,
descobriram algumas particularidades confirmadas pela sciencia dos
nossos dias, e se os arcadios pretenderam ter habitado a Terra em
epocha em que ainda não existia a Lua, se Simplicius a julgou
immovel e ligada á abobada de crystal, se Tatius a considerou como
umfragmento destacado do disco solar, se Clearco, discipulo de
Aristoteles, fazia d'ella um espelho polido em que se reflectia a
imagem do Oceano, se outros finalmente a consideraram como um
aggregado de vapores exhalados pela Terra, ou um globo, metade de
fogo, metade de gêlo, que girava sobre si mesmo, alguns sabios por
meio de observações sagazes, e postoque desajudados de instrumentos
de optica, suspeitaram pelo menos a existencia da maior parte das
leis que regem o astro das noites.
Assim é que Thales de Mileto, 460 annos antes de Jesus Christo,
opinou que a Lua era illuminada pelo Sol. Aristarcho de Samos deu
verdadeira explicação das phases. Cleomene ensinou que o brilho do
disco lunar vinha de luz reflexa. Berosio o chaldaico descobriu que
a duração de uma rotação da Lua era igual á da sua revolução, e
explicou por esta fórma o facto da Lua ser vista da Terra sempre
pela mesma face. Finalmente Hipparco, duzentos annos antes da era
christã, reconheceu a existencia de desigualdades nos movimentos
apparentes do satellite da Terra.
Estas differentes observações foram confirmadas no decorrer dos
tempos e serviram de proveito aos astronomos mais modernos.
Ptolomeu no seculo XVI, e o arabe Abul-Wefa no seculo X completaram
as indicações feitas por Hipparco ácerca das desigualdades que
apparenta o movimento da Lua na linha ondulada, que tem por orbita,
sob a acção do Sol.
Mais proximos de nós, Copernico, no seculo XV, e Tycho Brahe no
seculo XVI explicaram completamente o systema do mundo e o papel
que desempenha a Lua no conjuncto dos corpos celestes.
N'esta epocha ficaram, com muita approximação, determinados todos
os movimentos lunares, mas da constituição physica do astro pouca
cousa era conhecida.
Foi por esse tempo que Galileu explicou os phenomenos luminosos que
succediam em algumas phases, pela existencia de montanhas lunares,
a que attribuiu uma altura media de 4:500 toezas.
Depois de Galileu, Hevelius, astronomo de Dantzig, avaliou mais
pelo baixo as mais elevadas d'estas alturas em 2:600 toezas;
verdade é que Riccioli, confrade d'este, tornou a corrigir esta
apreciação, elevando-as a 7:000 toezas.
Nos fins do seculo XVIII Herschell, ajudado por um telescopio de
poderoso alcance, reduziu mui notavelmente as medidas precedentes,
attribuindo ás montanhas mais altas a elevação de 1:900 toezas, e
abaixando a media das differentes alturas a 400 toezas, não
mais.
Mas tambem Herschell se enganava, e só pelas observações de
Shroeter, Louville, Halley, Nasmyth, Bianchini, Pastorf, Lohrman,
Gruithuysen, e principalmente pelos estudos pacientes de Beer e
Moedler se conseguiu resolver definitivamente o problema. Graças a
estes homens de sciencia é hoje perfeitamente conhecida a elevação
das montanhas da Lua.
Por virtude d'estes mesmos trabalhos completava-seo reconhecimento da Lua; apparecia o astro crivado de crateras,
e affirmava-se mais em cada observação a natureza vulcanica d'elle.
Concluiu-se da ausencia de refracção nos raios dos planetas
occultados pela Lua, a falta quasi absoluta de atmosphera n'este
astro.
Da falta de ar seguia-se concludentemente a falta de agua. Ficou
portanto bem claro, que se existiam selenitas, deviam, para existir
em taes condições, possuir organisação especial e notavelmente
differente da dos habitantes da Terra.
Finalmente, graças aos methodos novos, empregaram-se em constantes
inquirições ácerca da Lua instrumentos mais perfeitos; não deixaram
os astronomos por explorar nem um só ponto da sua face visivel,
devendo notar-se que o diametro lunar mede 2:150 milhas; a
superficie é 1⁄13 avos da superficie do nosso globo, o volume é
1⁄49 avos do volume do espheroide terrestre; mas nenhum dos
segredos da Lua podia occultar-se aos olhos dos astronomos, e estes
habeis homens de sciencia foram ainda mais longe nas prodigiosas
observações que relatâmos.
Por esta fórma notaram os observadores, que na epocha da lua cheia
apparecia o disco do astro, em algumas regiões, raiado por linhas
brancas, e nas epochas das outras phases, raiado por linhas negras.
Estudando com mais attenção o phenomeno, conseguiram perceber
exactamente a natureza d'aquellas linhas. Eram sulcos compridos e
estreitos, cavados entre margens parallelas e que em geral iam
terminar nos contornos de crateras.
O comprimento dos sulcos estava comprehendido entre 10 e 100
milhas, e a largura era proximamente de 800 toezas. Deram-lhes os
astronomos o nome de ranhuras; mas a dar-lhe este nome se limitou o
seu saber. O problema de saber se estas ranhuras eram ou não leitos
seccos de
antigos rios não poderam resolve-lo completamente. Os
americanos já concebiam a esperança de que, mais dia menos dia,
haviam de determinar com exactidão aquelle facto geologico.
Reservavam tambem para opportunidade propria fazer um
reconhecimento sobre a serie de trincheiras parallelas descobertas
na superficie da Lua por Gruithuysen, sabio professor de Munich,
que as reputa um systema de fortificações levantadas pelos
engenheiros selenitas. Estes dois pontos, ainda obscuros, e
certamente muitos outros, nunca poderão ser definitivamente
regulados, sem que se estabeleça primeiro communicação directa com
a Lua.
Em relação á luz lunar nada havia já que aprender: era sabido que
era trezentas mil vezes mais fraca que a do Sol, e que o calor que
a acompanha não tem acção apreciavel sobre os thermometros. O
phenomeno da luz cendrada esse explica-se naturalmente pelo effeito
dos raios do Sol reflectidos na Terra, e que depois da reflexão se
dirigem para a Lua.
Parece por este phenomeno completar-se o disco lunar, quando nas
epochas da sua primeira e ultima phase senos apresenta sob a fórma de um crescente.
O que deixâmos dito representava o peculio de conhecimentos
adquiridos, em relação ao satellite da Terra, peculio que o
Gun-Club tentava acrescentar sob todos os pontos de vista
cosmographicos, geologicos, politicos e moraes.
A proposta Barbicane tivera como resultado immediato trazer para a
tela da discussão todos os factos astronomicos, relativos ao astro
das noites. Todos se empenharam em estuda-lo com assiduidade.
Parecia que a Lua
apparecêra pela vez primeira acima do horisonte,
e que ninguem ainda a tinha visto nos céus. Tornou-se o astro da
moda; foi durante algum tempo a leôa do dia, sem que por isso
parecesse menos modesta, e tomou logar entre as estrellas, sem que
d'ahi lhe viesse maior altivez. Os jornaes resuscitaram as antigas
anecdotas, em que desempenhava papel o sol dos lobos: trouxeram á
memoria do publico as influencias que attribuiu á Lua a ignorancia
dos primeiros seculos; cantaram-n'a emfim em todos os tons, e pouco
faltou para que lhe attribuissem algum dito chistoso. A America
inteira foi atacada de selenomania.
As revistas scientificas tambem por sua parte estudaram o assumpto;
mas, tratando mais especialmente dos problemas que diziam respeito
ao projecto do Gun-Club, deram publicidade á carta do observatorio
de Cambridge, commentando-a e approvando-a sem restricções.
Por encurtar diremos que não foi desde então permittido, nem ao
mais illetrado de todos os yankees, ignorar um unico facto relativo
ao nosso satellite, nem á mais crendeira de todas as velhas
matronas americanas, continuar agarrada aos erros supersticiosos,
que lhe dizem respeito. Entrava-lhes a sciencia em casa sob todas
as fórmas; penetrava-lhes pelos olhos e pelos ouvidos; era
impossivel ser um asno... em assumptos astronomicos.
Até então muitas pessoas ignoravam como podéra calcular-se a
distancia que ha entre a Terra e Lua. Aproveitou-se a occasião para
lhes ensinar que esta distancia se avaliava pela medida da
parallaxe lunar. E a quem a palavra parallaxe causava estranheza
dizia-se, que significava o angulo formado por duas linhas rectas
tiradas de cada uma das extremidades do raio terrestre para a
Lua.
A quem punha em duvida a perfeição do methodo, provava-se, sem
detença, que não sómente a distancia da Terra á Lua era na
realidade de duzentas e trinta e quatro mil trezentas e quarenta e
sete milhas(94:330 leguas), mas tambem que os astronomos não
erravam n'esta avaliação nem setenta milhas(30 leguas).
Aos que estavam pouco ou nada familiarisados com os movimentos da
Lua, demonstravam os jornaes quotidianamente que este astro tem
dois movimentos distinctos, o primeiro chamado de rotação, em torno
de um
eixo; o segundochamado de revolução, em volta da Terra, que ambos se completam
em tempos iguaes, isto é, em vinte e sete dias e um terço.
O movimento de rotação é o que dá origem aos dias e ás noites na
superficie da Lua, devendo notar-se que não ha senão um dia e uma
noite por mez lunar, e que cada dia ou cada noite dura trezentas e
cincoenta e quatro horas e um terço. Mas, por felicidade da Lua, a
sua face, que está voltada para o globo terrestre, é illuminada por
este com a intensidade luminosa de quatorze luas. A outra face, que
é sempre invisivel, tem por isso mesmo trezentas e cincoenta e
quatro horas de noite absoluta, apenas temperada pela pallida
claridade que dimana das estrellas. Este phenomeno provém
unicamente da particularidade já citada, de que os movimentos de
rotação e de revolução se completam em tempos rigorosamente iguaes,
e realisa-se tambem, segundo Casini e Herschell, nos satellites de
Jupiter, e provavelmente em todos os demais.
Em certas cabeças bem dispostas, mas um tanto duras, custava a
entrar, á primeira, que a Lua voltava invariavelmente a mesma face
para a terra, durante a sua revolução, pela rasão de que no mesmo
lapso de tempo fazia um giro completo em torno do seu eixo. Mas a
estes dizia-se: "Entrae na vossa casa de jantar, e dae uma volta
completa á roda da mesa, olhando sempre para o centro d'ella;
quando tiverdes completado o vosso passeio circular, tereis feito
um giro perfeito sobre vós mesmos, visto como o vosso olhar ha de
ter percorrido successivamente todos os pontos da sala. Ora pois! a
sala é o céu, a mesa é a Terra, e a Lua sois vós!" E íam-se
satisfeitissimos com a comparação.
Como acabâmos de ver, a Lua mostra constantemente a mesma face á
Terra; todavia, para fallar com rigor, devemos acrescentar, que, em
virtude de um certo movimento de oscillação de norte para sul e de
oeste para leste, chamado libração, podemos ver um pouco mais de
metade da superficie do globo lunar, cincoenta e sete centesimos,
proximamente.
Quando os ignorantes chegaram a saber, com respeito ao movimento de
rotação da Lua, tanto como o director do observatorio de Cambridge,
começou a inquietar-lhes o espirito o movimento de revolução do
satellite em volta da Terra, mas em curto espaço acabaram de os
instruir vinte e tantas revistas scientificas.
Aprenderam então que o firmamento, com a sua infinidade de
estrellas, póde ser considerado como um immenso mostrador, por
sobre o qual passeia a Lua, indicando a hora verdadeira a todos os
habitantes da Terra, eque é n'este movimento que o astro das noites apresenta as suas
differentes phases. Mais, que é Lua cheia, quando está em opposição
com o Sol, isto é, quando estão os tres astros na mesma linha
recta, estando a Terra no meio; que a Lua é nova, quando está em
conjuncção com o Sol, isto é, quando está entre este e a Terra; e,
finalmente, que a Lua entra no quarto primeiro ou no ultimo, quando
está no vertice de um angulo recto, formado pelas duas rectas que
d'ella se dirigem para a Terra e para o Sol.
Alguns yankees mais perspicazes concluiam d'aqui, que não podia
haver eclipses senão nas epochas de conjuncção e de opposição, e
não deduziam mal. Na conjuncção a Lua póde eclipsar o Sol, e na
opposição é a Terra que póde eclipsar a Lua, e se em cada revolução
lunar não ha dois eclipses, é porque o plano, segundo o qual se
move a Lua, é inclinado sobre a ecliptica, por outra, sobre o plano
no qual se move a Terra.
Em relação á altura a que o astro das noites póde subir acima do
horisonte estava tudo dito na carta do observatorio de
Cambridge.
Todos ficaram sabendo que tal altura varia com a latitude do logar
de observação, e que as unicas zonas do globo nas quaes a Lua passa
pelo zenith, isto é, vem collocar-se directamente por cima da
cabeça dos que a contemplam, estão forçosamente comprehendidas
entre os parallelos de 28° e o equador. D'ahi vinha a importante
recommendação de tentar a experiencia n'um logar qualquer d'aquella
parte do globo, para que o projectil podesse ser lançado
verticalmente, e escapar-se por isso mais depressa á acção da
gravidade. Era esta condição essencial para o bom exito da empreza,
e não deixava de preoccupar vivamente a opinião.
Ácerca da linha seguida pela Lua na sua revolução em volta da
Terra, tinha o observatorio de Cambridge ministrado conhecimentos
bastantes,
para que os ignorantes de todos os paizes ficassem
sabendo que esta linha é uma curva reentrante, não um circulo, mas
uma ellipse, n'um dos focos da qual está situada a Terra.
Esta especie de orbitas ellipticas é commum a todos os planetas,
assim como a todos os satellites, e prova-se rigorosamente na
mechanica racional que não podia succeder por outra fórma. Bem
entendido estava que a Lua no apogeo está mais longe da Terra, e no
perigeo mais proxima.
Ora eis-aqui o que por vontade ou sem ella sabia qualquer
americano, e o que ninguem decentemente podia ignorar.
Porém, se os verdadeiros principios se vulgarisaram com rapidez,
muito mais difficil foi extirpargrande quantidade de erros e illusorios temores. Assim, por
exemplo, algumas pessoas muito de bem, sustentavam que a Lua era um
antigo cometa, que no percurso da sua orbita alongada em volta do
Sol, tinha vindo a passar proximo da Terra que o retivera no seu
circulo de attracção. Pretendiam taes astronomos de sala explicar
por esta maneira o aspecto requeimado da Lua, desgraça irreparavel
de que accusavam o astro radiante do dia. Verdade seja, que, quando
alguem lhes fazia notar que os cometas tem atmosphera, e que a Lua
pouca ou nenhuma tem, tinham grande difficuldade em responder.
Outros, que pertenciam á raça d'aquelles que por tudo tremem e se
arreceiam, manifestavam singulares temores a respeito da Lua;
tinham ouvido dizer que desde as observações feitas no tempo dos
Califas, o movimento de revolução do astro se ía accelerando em
certa proporção; d'aqui deduziam, é verdade que com rigorosa
logica, que á tal acceleração no movimento devia corresponder
diminuição na distancia dos dois astros, e que prolongando-se este
duplo effeito indefinidamente, a Lua havia de acabar um dia por
cair sobre a Terra. Socegaram todavia estes animos timoratos, e
deixaram de temer pela sorte das gerações futuras, quando lhes
ensinaram que, segundo os calculos do illustre mathematico francez
Laplace, esta acceleração do movimento lunar está comprehendida
entre estreitos limites, e que não ha de tardar que lhe succeda uma
proporcional diminuição na velocidade, e que por consequencia não
poderá, nos seculos futuros, ser alterado o equilibrio do mundo
solar.
Restava, por ultimo, a classe dos ignorantes supersticiosos, e
estes nunca se contentam em não saber; sabem até o que não existe,
e, a respeito da Lua, sabiam cousas por ahi alem. Consideravam
alguns o disco lunar como uma especie de espelho polido, por
intermedio do qual os homens se podiam ver uns aos outros e
communicarem-se reciprocamente os pensamentos, ainda que collocados
em differentes pontos da Terra; outros affirmavam que por cada
milheiro de Luas novas observadas, novecentas e cincoenta tinham
trazido comsigo notaveis acontecimentos, taes como cataclysmos,
revoluções, tremores de terra, diluvios, etc.
Acreditavam por isso na influencia mysteriosa do astro das noites
sobre os destinos do homem; consideravam-no como verdadeiro
contrapeso da existencia; pensavam que cada selenita está ligado a
um habitante da Terra por um vinculo sympathico; sustentavam, como
o dr. Mead, que o systema vital está inteiramente dependente das
influencias lunares, affirmando, sem admittir replica, que os
rapazes nascem quasi exclusivamente na Lua nova, e as raparigas no
quarto minguante, etc., etc. Mas por fim não houve mais remedio
senão renunciar ás crendices e erros vulgares, e contentar-se
sómente com a verdade, e sea Lua, despojada da sua influencia, perdeu a importancia para os
espiritos de alguns d'aquelles que são cortezãos de todos os
poderes, se alguns lhe voltaram as costas, nem por isso deixou de
ter por si a manifestação de uma immensa maioria. Consistiu desde
então a unica ambição de todos os yankees em tomar posse d'aquelle
novo continente aerio e em arvorar no mais alto vertice d'elle a
bandeira estrellada dos Estados Unidos da America.
O observatorio de Cambridge tinha estudado, na memoravel carta de 7
de outubro, o assumpto pelo lado astronomico, mas estava ainda sem
solução o problema mechanico. As difficuldades do caso pareceriam
insuperaveis em qualquer outro paiz do mundo, mas na America
resolveu-se o negocio como de brincadeira.
O presidente Barbicane, sem perda de tempo, tinha escolhido entre
os socios do Gun-Club uma commissão executiva. A commissão estava
obrigada a elucidar, em tres sessões, os tres grandes problemas do
canhão, do projectil e das polvoras; compunha-se de quatro membros
todos muito sabedores no assumpto, Barbicane, com voto de
desempate, o general Morgan, o major Elphiston, e finalmente o
inevitavel J.-T. Maston, ao qual foram confiadas as importantes
funcções de secretario relator.
No dia 8 de outubro reuniu-se a commissão em casa do presidente
Barbicane, rua da Republica n.º 3, e como fosse de grande
importancia que as exigencias do estomago não viessem a perturbar
tão grave discussão, sentaram-se os quatro socios do Gun-Club em
volta de uma mesa coberta de bandejas de sandwiches e de amplos
bules de chá. Em seguida atarraxou J.-T. Maston a pena no gancho de
ferro que lhe servia de mão direita e abriu-se a sessão.
Barbicane encetou a discussão pela seguinte fórma:
"Caros collegas, temos de resolver um dos problemas mais
importantes da balistica, a sciencia por antonomasia, a que trata
do movimento dos projectis, isto é, dos corpos arremessados ao
espaço, por uma força de impulsão qualquer e depois abandonados a
si proprios.
--Ai! balistica! balistica! exclamou J.-T. Maston em tom
commovido.
--Talvez parecesse mais logico, proseguiu Barbicane, dedicar esta
primeira sessão á discussão do machinismo...
--E na verdade, interrompeu o general Morgan.
--Todavia, continuou Barbicane, depois de reflectir maduramente,
pareceu-me que o assumpto projectil devia ter primazia sobre o
assumpto canhão, e que as dimensões d'este deveriam depender das
d'aquelle.
--Peço a palavra, gritou J.-T. Maston.
Foi-lhe concedida a palavra com a boa vontade de que se tornava
merecedor pelos seus magnificos antecedentes.
"Meus bons amigos, disse Maston, em tom de inspiração, o nosso
presidente tem rasão em dar a primazia ao assumpto projectil sobre
todos os outros! A bala queora vamos arremessar á Lua é um mensageiro, um embaixador, e
dêem-me licença que a considere pelo lado puramente moral."
Esta maneira nova de encarar um projectil excitou singularmente a
curiosidade dos membros da commissão; todos se prepararam para
prestar a mais solícita attenção ás palavras de J.-T. Maston.
"Caros collegas, proseguiu este; serei breve, porei de parte a bala
physica, a bala que mata, para considerar sómente a bala
mathematica, a bala moral. Para mim a bala é a mais esplendida
manifestação do poder do homem; na bala resume-se este poder todo
inteiro, e foi quando a inventou que o homem mais se approximou do
Creador!
--Muito bem! disse o major Elphiston.
--E na verdade, exclamou o orador, se Deus fez as estrellas e os
planetas, o homem fez a bala, que é o criterium das velocidades
terrestres e uma imitação, em menores proporções, dos astros que
erram no espaço, que não são mais do que outros tantos projectis!
Pertence a Deus a velocidade da electricidade, a Deus a velocidade
da luz, a velocidade das estrellas, a velocidade dos cometas, a
velocidade dos planetas, a velocidade dos satellites, a velocidade
do som, a velocidade do vento! Mas a nós os homens a velocidade da
bala, cem vezes superior á velocidade da locomotiva ou do mais
rapido corcel!"
J.-T. Maston estava exaltado; entoando á bala este hymno sagrado,
percebiam-se-lhe na voz inflexões lyricas.
"Querem algarismos? proseguiu elle; ei-los, e que fallam bem alto!
Olhem simplesmente a modesta bala de vinte e quatro, que corre
oitocentas mil vezes menos veloz que a electricidade, seiscentas e
quarenta mil vezes menos veloz que a luz, setenta e seis vezes
menos
veloz que a Terra, no movimento de translação em volta do
Sol, e que todavia, quando sáe do canhão, excede em rapidez o
som, anda 200 toezas em cada segundo, 2:000 toezas em 10
segundos, 14 milhas(6 leguas) em cada minuto, 840 milhas(360
leguas) por hora, 27:100 milhas(8:640 leguas) por dia, ou, o que
vale o mesmo, 7.336:500 milhas(3.155:760 leguas) por anno,
velocidade igual á dos pontos do equador no movimento de rotação do
globo. Gastaria portanto 11 dias para ir á Lua, 12 annos para
chegar ao Sol, 360 annos para alcançar Neptuno, situado no extremo
limite do mundo solar. Eis o que fazia tão modesta bala, producto
de mãos humanas! Que será quando vintuplicando-lhe a velocidade, a
arremessarmos com a velocidade de 7 milhas por segundo! Ah! soberba
bala! esplendido projectil! Exulto em acreditar que has de ser
recebida lá em cima com todas as honras devidas a um embaixador
terrestre!"
Com repetidos hurrahs applaudiram os auditores esta altisonante
peroração,e J.-T. Maston sentou-se extremamente commovido e recebendo
felicitações de todos os collegas.
"E agora, disse Barbicane, que já demos largas á poesia,
atiremo-nos directamente ao assumpto."
--Estamos promptos, responderam os membros da commissão, absorvendo
ao mesmo tempo meia duzia de sandwiches por cabeça.
--Já tendes conhecimento do problema que temos de resolver,
continuou o presidente; trata-se de imprimir a um projectil uma
velocidade de 12:000 jardas por segundo.
"Tenho rasões para acreditar que havemos de conseguir bom
resultado. Mas, por agora, limitemo-nos a examinar as velocidades
obtidas até hoje; o general Morgan póde instruir-nos cabalmente a
este respeito.
--E com tanta maior facilidade, respondeu o general, que, durante a
guerra, fui eu membro da commissão de experiencias. Dir-vos-hei,
pois, que os canhões de cem de Dahlgreen, cujo alcance era de 2:500
toezas, imprimiam ao projectil respectivo a velocidade inicial de
500 jardas por segundo.
--Bem. E a Columbiada Rodman, perguntou o presidente?
--A Columbiada Rodman, ensaiada no forte de Hamilton, proximo a New
York, arremessava uma bala, que tinha de peso meia tonelada, á
distancia de 6 milhas, com a velocidade de 800 jardas por segundo,
resultado este a que nunca chegaram, nem Armstrong, nem Palisser,
em Inglaterra.
--Oh! os inglezes! murmurou J.-T. Maston, apontando para o
horisonte leste com o temivel gancho.
São portanto essas 800 jardas o maximum de velocidade, proseguiu
Barbicane, que se tem podido obter até hoje?
--É verdade, respondeu Morgan.
--Todavia, replicou Maston, sempre devo dizer, que, se o meu
morteiro não tivera rebentado...
--Pois sim, mas rebentou, redarguiu Barbicane, acompanhando a
resposta com um gesto amigavel. Tomemos pois por ponto de partida a
velocidade de 800 jardas. Ha de ser necessario vintuplica-la, e
n'estes termos, guardando para outra sessão o estudo dos meios
proprios para produzir tal velocidade, chamarei a vossa attenção,
caros collegas, para as dimensões que convem dar á bala.
Bem deveis imaginar que no caso presente não tratâmos de projectis
que pesem quando muito meia tonelada.
--E porque? perguntou o major?
--Porque a bala que estamos discutindo, respondeu promptamente
J.-T. Maston, deve ser bastantemente volumosa para solicitar a
attenção dos habitantes da Lua, se é que lá os ha.
--É verdade, redarguiu Barbicane, e tambem por outra rasão ainda
mais importante.
--E qual é ella, Barbicane? perguntou o major.
--É que não me parece bastante mandar um projectil á Lua, e ficar
só n'isso; julgo necessario que o acompanhemos durante a viagem e
até ao momento de bater no alvo.
--O que! disseram a um tempo. O general e o major, um tanto
surprehendidos com a proposta.
--Certamente, continuou Barbicane, como quem está conscio do que
diz, de certo, e senão a nossa experiencia não produziria resultado
algum.
--Mas n'esse caso,replicou o major, haveis de dar ao projectil dimensões
enormes?
--Nada. Ora tende a bondade de ouvir-me. Sabeis todos que os
instrumentos de optica têem alcançado um elevado grau de perfeição;
com certos telescopios tem-se conseguido obter augmentos de seis
mil por um e trazer assim a Lua á distancia proximamente de 40
milhas(16 leguas). Ora a esta distancia são distinctamente visiveis
os objectos que têem 60 pés de lado. E se não se tem levado mais
longe o poder de augmento dos telescopios é que a amplificação
cresce na rasão inversa da clareza, e porque a Lua, que não é senão
um espelho de reflexão, não emitte luz bastante intensa para que
possa admittir amplificações que vão alem do limite que
indiquei.
--E então! que fazer? perguntou o general. Haveis de dar ao vosso
projectil 60 pés de diametro?
--Certamente que não!
--Tereis então de tornar a Lua mais luminosa?
--Justamente.
--Isso lá me parece muito! exclamou J.-T. Maston.
--É muito é verdade, mas muito simples, respondeu Barbicane. Com
effeito se eu conseguir que diminua a espessura da atmosphera que a
luz da Lua atravessa, acaso não terei tornado essa luz mais
intensa!
--Evidentemente.
--Pois bem! Para obter tal resultado bastar-me-ha estabelecer um
telescopio em alguma montanha elevada. E é o que havemos de
fazer.
--Basta, rendo-me, respondeu o major. Tendes uma tal maneira de
simplificar as cousas!
--E que amplificação esperaes obter por tal expediente?
--Uma amplificação de quarenta e oito mil por um, que ha de
trazer-nos a Lua a cinco milhas de distancia. N'esta hypothese
bastará que qualquer objecto tenha nove pés de lado para que seja
perfeitamente visivel.
--Perfeitamente! exclamou J.-T. Maston, o nosso projectil ha de
portanto ter nove pés de diametro?
--Nem mais nem menos.
--Todavia, permittam-me que lhes diga, redarguiu o major Elphiston,
que ainda assim o projectil ha de ter um peso tal que...
--Oh! major, respondeu Barbicane, antes que discutamos o peso do
projectil consenti que vos diga que nossos paes faziam n'este
genero cousas realmente maravilhosas. Longe de mim a idéa de
affirmar que a balistica não tem progredido, mas bom é que se saiba
que já na idade media se obtinham resultados surprehendentes;
ousarei até acrescentar, mais para surprehender que os que nós hoje
alcançâmos.
--Ora essa! replicou Morgan.
--Justificae o que affirmaes, exclamou com vehemencia J.-T.
Maston.
--Nada mais facil, respondeu Barbicane; sobram-me os exemplos para
apoiar o que asseverei. Assim, no assedio de Constantinopla por
Mahomet II, em 1543, lançaram-se balas de pedra que pesavam mil e
novecentas libras, e que deviam ser de bonito tamanho.
--Oh! oh! disse o major, mil e novecentas libras, é já um algarismo
elevado!
--Em Malta, no tempo dos cavalleiros, umcerto canhão do forte de Sant'Elmo arremessava projectis que
pesavam duas mil e quinhentas libras.
--Parece impossivel!
--Finalmente, segundo diz um historiador francez, no reinado de
Luiz XI, havia um morteiro que lançava bombas do peso sómente de
quinhentas libras; em compensação estas bombas, partindo da
Bastilha, logar onde os loucos encarceravam os de espirito são, iam
cahir em Charenton, logar onde os de espirito são encarceravam os
loucos.
--Muito bem! disse J.-T. Maston.
--E depois do que acabo de relatar, em summa, que temos visto? Os
canhões de Armstrong que arremessam balas de quinhentas libras, e
as Columbiadas Rodman projectis de meia tonelada! O que parece,
portanto, é que se os projectis ganharam em velocidade, perderam
pelo menos em peso. Se dirigirmos pois n'este sentido os nossos
esforços, havemos de conseguir, com o auxilio dos progressos da
sciencia decuplicar o peso das balas de Mahomet II e dos
cavalleiros de Malta.
--Evidente, respondeu o major, mas que metal pensaes em empregar
para compor o projectil.
--Ferro fundido, nada mais, disse o general Morgan.
--Ora! ferro fundido! exclamou J.-T. Maston com profundo desdem, é
cousa bem ordinaria para fabricar uma bala destinada a ir á
Lua.
--Nada de exagerações, honrado amigo, respondeu Morgan; ferro é
quanto basta.
--E então! replicou o major Elphiston; olhem que sendo o peso da
bala proporcional ao seu volume, uma bala de ferro fundido que
tenha nove
pés de diametro ha de ainda ter um tal peso que mette
medo!
--Assim será, se for massiça, mas não se for oca, disse
Barbicane.
--Oca! então é um obuz?
--Onde podem metter-se correspondencias, replicou J.-T. Maston, e
amostras das producções terrestres!
--Sim, um obuz, respondeu Barbicane, assim é absolutamente
necessario; uma bala massiça de cento e oito pollegadas pesaria
mais de duzentas mil libras, peso evidentemente excessivo; todavia
como julgo necessario guardar as condições de estabilidade na
construcção do projectil, proponho que se lhe dê o peso de cinco
mil libras.
--Qual ha de ser então a grossura das paredes? perguntou o
major.
--Se nos cingirmos á proporção indicada nos regulamentos, continuou
Morgan, ao diametro de cento e oito pollegadas correspondem paredes
de dois pés de espessura, pelo menos.
--Seriam grossas de mais, respondeu Barbicane; notem bem, que se
não trata aqui de uma bala fabricada para furar couraças; basta que
a bala tenha paredes sufficientemente fortes para resistir á
pressão dos gazes da polvora.
O problema portanto é este: qual é a espessura que deve ter um obuz
de ferro fundido para que não pese mais de vinte mil libras?
O nosso habil calculador e bom amigo Maston no-lo dirá sem
demora.
--Muito facilmente, replicou o honrado secretario da commissão.
E quandotal dizia ia já traçando no papel algumas formulas algebricas;
viram-se-lhe sair dos bicos da pena π e x elevados ao quadrado.
Pareceu até que, sem lhe pôr a mão, extrahia, uma certa raiz
cubica, e disse:
"As paredes hão de ter apenas duas pollegadas de grossura."
--E será bastante?perguntou o major, com ares de quem duvida.
--Não, respondeu o presidente Barbicane, é claro que não.
--E então! que se ha de fazer? continuou Elphiston com ares de
grande irresolução.
--Servir-se de outro metal e não do ferro fundido.
--Do cobre? disse Morgan.
--Nada, o cobre ainda é pesado demais, e tenho para vos propor
cousa melhor.
--Então que é? disse o major.
--O aluminium, respondeu Barbicane.
--Aluminium! exclamaram os tres collegas do presidente.
--Certamente amigos meus. Sabeis que um illustre chimico francez,
Henry-Sainte-Claire-Deville, conseguiu em 1854 obter o aluminium em
massa compacta. Ora este precioso metal tem a brancura da prata, a
inalterabilidade do oiro, a tenacidade do ferro, a fusibilidade do
cobre e é leve como vidro; modela-se com facilidade, está espalhado
com profusão na natureza, visto como a alumina é base da maior
parte das rochas, é tres vezes mais leve que o ferro, e parece ter
sido expressamente creado para fornecer-nos materia para o nosso
projectil.
--Hurrah pelo aluminium! exclamou o secretario da commissão, sempre
extremamente ruidoso nos momentos de enthusiasmo.
--Mas, caro presidente, disse o major, não será extremamente
elevado o preço do aluminium?
--Assim era, respondeu Barbicane; nos primeiros tempos depois que
foi descoberto, custava a libra do aluminium entre duzentos e
sessenta e duzentos e oitenta dollars(approximadamente 1.500
francos); depois desceu a vinte e sete dollars(150 francos), e
hoje finalmente, está a
nove dollars(48 francos e 75
centesimos).
--Mas a nove dollars por libra, replicou o major, que não cedia á
primeira, vem a dar ainda um preço enorme!
--Sem duvida, caro major, mas não inaccessivel.
--E, n'esse caso, qual ha de ser o peso do projectil? perguntou
Morgan.
--O resultado dos meus calculos é o seguinte, respondeu Barbicane:
uma bala de cento e oito pollegadas de diametro e de doze
pollegadas de espessura, pesaria, no caso de ser de ferro
fundido, sessenta e sete mil quatrocentas e quarenta libras; sendo
de aluminium fundido, o seu peso ficará reduzido a dezanove mil
duzentas e cincoenta libras.
--Muito bem! exclamou Maston, isso agora já cabe no nosso
programma.
--Muito bem! Muito bem! Mas acaso ignoraes, que a dezoito dollars
por libra, esse projectil havia de custar-nos...
--Cento e setenta e tres mil duzentos e cincoenta dollars(928:437
francos e 50 centesimos), sei-o muito bem; mas não se assustem
amigos, não ha de faltar dinheiro para a realisação do nosso
projecto; por isso respondo eu.
--Ha dechover dinheiro nos nossos cofres, replicou J.-T. Maston.
--Então! que me dizem ao aluminium! perguntou o presidente.
--Está adoptado, responderam os tres membros da commissão.
--Quanto á fórma da bala, proseguiu Barbicane, pouca importancia
tem, visto como, logo que o projectil passe para alem da
atmosphera, ha de achar-se no vacuo, proponho portanto, que seja
redonda, para que gire sobre si mesmo, se o julgar conveniente, ou
se porte como melhor lhe ditar a phantasia.
Foi este o fecho da primeira sessão da commissão; ficou
definitivamente resolvida a questão do projectil, e J.-T. Maston
exultou com a idéa de
mandar aos Selenitas uma Bala de aluminium
"que havia dar-lhes a entender que os habitantes cá da Terra eram
uns pimpões!"
As resoluções tomadas na primeira sessão produziram grandissimo
effeito no publico. Algum mais timorato lá se assustava com a idéa
da bala que havia de pesar vinte mil libras. Punha-se em duvida se
poderia construir-se canhão capaz de transmittir velocidade inicial
bastante a uma massa d'aquella ordem.
A acta da segunda sessão da commissão devia responder
triumphantemente a todas aquellas duvidas.
No dia seguinte ao cair da noite abancaram em volta da mesa os
quatro membros do Gun-Club defrontando com novas montanhas de
sandwiches que marginavam um verdadeiro oceano de chá. Atou-se o
fio á discussão, e d'esta vez sem preambulo.
"Caros collegas, disse Barbicane, vamos occupar-nos do machinismo
que ha a construir, estudando-lhe o comprimento, a fórma, a
composição e o peso. É provavel que havemos de concluir dando-lhe
dimensões gigantescas; mas, por maiores que sejam as difficuldades,
o engenho industrial dos americanos ha de vence-las com facilidade.
Queiram portanto ouvir-me, e não me poupem, venham objecções á
queima roupa, que as não temo!"
Estas palavras foram recebidas com um grunhido de approvação.
"Não esqueçamos, proseguiu Barbicane, a altura a que fomos levados
hontem pela discussão: apresenta-se-nos agora o problema nos
seguintes termos: imprimir a um obuz de cento e oito pollegadas de
diametro, e que pesa vinte mil libras a velocidade inicial de doze
mil jardas por segundo.
Com effeito, é exactamente esse o problema, respondeu o major
Elphiston.
Prosigamos, tornou Barbicane. Que factos se passam, quando um
projectil é arremessado ao espaço? Tres forças independentes o
solicitam, a resistencia do meio, a attracção da Terra, e a força
de impulsão que lhe imprimiram. Examinemos estas tres forças. A
resistencia do meio, que aqui é a resistencia do ar, ha de ser de
pouca importancia; porque a atmosphera terrestre não tem mais de
quarenta milhas(16 leguas proximamente) de altura. Ora, com a
rapidez de doze mil jardas, o projectil ha de atravessa-la em cinco
segundos, tempo bastantemente curto para que aresistencia do meio possa ser considerada insignificante.
Passemos á attracção da Terra, ou o que vale o mesmo á acção da
gravidade sobre o obuz.
Sabemos que o peso d'este ha de decrescer na rasão inversa do
quadrado das distancias. Effectivamente ensina-nos a physica o
seguinte: quando um corpo abandonado a si proprio cáe á superfície
da Terra, desce quinze pés, e se o mesmo corpo fosse
transportado para a distancia de duzentos e cincoenta e sete mil
quinhentas e quarenta e duas milhas, ou o que é mesmo, á distancia
a que está a Lua, o seu descenso ficaria reduzido a meia linha,
proximamente, no primeiro segundo. Quasi que é a immobilidade.
Trata-se portanto de vencer progressivamente a acção da gravidade.
E como havemos de consegui-lo? Pela força de impulsão.
--Ahi é que está a difficuldade, respondeu o major.
--Ahi está, na verdade, continuou o presidente, mas havemos de
supera-la, porque a força de impulsão de que havemos mister ha de
resultar do comprimento do machinismo e da quantidade de polvora
que empregarmos, e a verdade é que esta não tem mais limitação do
que a resistencia d'aquelle.
Tratemos pois hoje das dimensões que havemos de dar ao canhão. Bem
entendido está que podemos estabelece-lo em condições de
resistencia, por assim dizer, infinita, visto como com tal canhão
não ha a fazer manobras.
--Tudo isso é evidente, respondeu o general.
--Até agora, disse Barbicane, os canhões de maior comprimento, as
nossas enormes Columbiadas, nunca excederam o comprimento de vinte
e cinco pés, e portanto a muita gente hão de causar espanto as
dimensões que havemos de ser forçados a adoptar.
--Eh! indubitavelmente, exclamou J.-T. Maston; pela minha parte não
me contento com menos de meia milha de comprimento, para o
canhão!
--Meia milha! exclamaram o major e o general.
--Meia milha sim! e talvez devesse dizer o dobro.
--Ora vamos, Maston, isso é exageração.
--Certamente que não, replicou o effervescente secretario, nem
percebo, na realidade, por que me accusaes de exagero.
--Porque ides longe de mais!
--Sabei, senhor, respondeu J.-T. Maston, assumindo os seus mais
imponentes ademanes, sabei que o artilheiro é como a bala, que
nunca vae longe de mais!
Ía a discussão tomando caracter de personalidade, mas o presidente
interveiu.
--Soceguem, amigos, e raciocinemos; evidentemente ha de ser
necessario um canhão de grande tamanho, visto como o comprimento da
peça ha de augmentar a força expulsiva dos gazes accumulados sob o
projectil; mas é inutil ir alem de certos limites.
--Muito bem, disse o major.
--Quaes são as regras applicaveis ao caso? De ordinario o
comprimento do canhão é igual a vinte até vinte e cinco vezes o
diametro da bala, e pesao canhão duzentas e trinta e cinco a duzentos e quarenta vezes o
peso d'esta.
--Não é bastante, clamou impetuoso, J.-T. Maston.
--Convenho n'isso, meu digno amigo, e, na realidade, se nos
cingirmos á proporção apontada, para um projectil de 9 pés de
largura e de 30:000 libras de peso, não terá o machinismo mais do
que 225 pés de comprimento e de 7.200:000 libras de peso.
--É ridiculo, redarguiu J.-T. Maston. Tanto vale usar de uma
pistola!
--Tambem penso assim, respondeu Barbicane, e é por isso que tenho
tenção de quadruplicar esse comprimento, e de construir um canhão
de 900 pés de comprido.
O general e o major apresentaram algumas objecções, entretanto a
proposta sustentada com animação pelo secretario do Gun-Club foi a
final definitivamente adoptada.
"Decidido este ponto, disse Elphiston, que espessura havemos de dar
ás paredes?
--Seis pés, respondeu Barbicane.
--De certo que não imaginaes collocar uma massa d'essa ordem em
cima de um reparo? perguntou o major.
--Isso é que havia de ser soberbo! disse J.-T. Maston.
--Mas impraticavel, respondeu Barbicane. Nada, penso que o
machinismo deve ser moldado mesmo no solo, guarnecido de arcos de
ferro forjado, e apertado n'uma obra bem espessa e solida de pedra
e cal, por forma que adquira toda a resistencia do terreno
circumdante. Depois de fundida a peça ha de se lhe brocar, calibrar
e polir a alma com extremo cuidado, para evitar que exista o
vento da bala.
Por esta fórma não ha de haver perda alguma de gazes e a força
expansiva da polvora transformar-se-ha toda em impulsão.
--Hurrah! hurrah! clamou J.-T. Maston, já temos canhão.
--Ainda não! respondeu Barbicane, acalmando com o gesto a
impaciencia do amigo.
--E porque não?
--Porque ainda lhe não discutimos a fórma. Ha de ser canhão, obuz
ou morteiro?
--Canhão, replicou Morgan.
--Obuz, redarguiu o major.
--Morteiro, clamou J.-T. Maston.
Nova e vehemente discussão ia encetar-se; cada qual preconisava já
a sua arma favorita, quando o presidente a interrompeu de prompto,
dizendo:
"Meus amigos, vou pô-los a todos de accordo; a nossa columbiada ha
de ter alguma cousa de cada uma das tres bôcas de fogo indicadas.
Ha de ser canhão, por ter a camara da polvora de diametro igual ao
da alma. Obuz, porque ha de arremessar obuzes. Finalmente será
morteiro, visto como ha de ser apontada por um angulo de 90°, e
que, sem poder recuar, inabalavelmente ligada ao solo, communicará
ao projectil toda a potencia de impulsão que se lhe accumular no
ventre.
--Adoptado, adoptado, conclamaram os membros da commissão.
--Permittam-me uma simples reflexão, disse Elphiston, ha de ser
raiado esse canh-obuz-morteiro?
--Não, respondeu Barbicane, não;precisâmos de uma enorme velocidade inicial, e sabeis muito bem
que as balas sáem menos velozes dos canhões raiados do que dos
canhões de alma lisa.
--É exacto.
--Até que emfim d'esta vez é que já temos canhão! repetiu J.-T.
Maston.
--Ainda não é tanto assim, replicou o presidente.
--Então porque?
--Porque ainda não sabemos de que metal ha de ser feito.
--Decida-se isso sem demora.
--Era o que eu ia propor-vos".
Cada um dos membros da commissão foi engulindo a sua duzia de
sandwiches acompanhadas de um bule de chá, depois recomeçou a
discussão.
"Meus bons collegas, disse Barbicane, o nosso canhão deve ter
grande tenacidade e grande dureza, e ser infusivel pelo calor,
insoluvel e inoxydavel pela acção corrosiva dos acidos.
--Isso não tem duvida alguma, respondeu o major, e como ha de ser
necessario empregar uma quantidade consideravel de metal, não
havemos de hesitar muito na escolha.
N'esse caso, disse Morgan, proponho para a fabricação da columbiada
a melhor das ligas que é conhecida até hoje, isto é, cem partes de
cobre, doze de estanho e seis de latão.
--Meus amigos, respondeu o presidente, confesso que esta composição
tem dado excellentes resultados; mas para o nosso caso, custaria
excessivamente cara, e difficilmente poderiamos emprega-la.
Cuido portanto que devemos adoptar uma materia excellente, e de
baixo preço, tal como o ferro fundido.
Não será esta a vossa opinião, major?
--Exactamente, respondeu Elphiston.
--Com effeito, proseguiu Barbicane, o ferro fundido, custa dez
vezes mais
barato que o bronze, é de facil fusão, molda-se com
simplicidade em moldes de areia, manipula-se com rapidez; dá pois
simultaneamente economia de tempo e de dinheiro. Alem d'isto esta
materia é excellente, e bem me recordo de que, durante a guerra, no
cêrco de Atlanta, algumas peças de ferro fundido atiraram cada uma
mil tiros de vinte em vinte minutos, sem que por isso soffressem
alteração.
--Todavia, o ferro fundido é muito quebradiço, respondeu
Morgan.
--É verdade, mas tambem é muito resistente, e de mais asseguro-vos
que não havemos de rebentar, por isso respondo eu.
--Rebentar não é deshonra, replicou em ar de sentença J.-T.
Maston.
--Está claro, respondeu Barbicane. Pedirei portanto ao nosso digno
secretario que nos calcule o peso de um canhão de ferro fundido, de
novecentos pés de comprimento e com um diametro interior de nove
pés, e com as paredes de seis pés de espessura.
--N'um instante, respondeu J.-T. Maston.
E, assim como fizera na vespera, escrevinhou umas formulas, com
facilidade de pasmar, e disse passado um minuto.
"Esse canhão ha de pesar sessenta e oito mil e quarenta toneladas
(68.040:000 kilogrammas)."
--E a dois centesimos(10 centimos) por libra, ha de
custar?...
--Dois milhões quinhentos e dez mil setecentos e umdollars(13.608:000 francos)."
J.-T. Maston, o major e o general olharam para Barbicane com ar de
inquietação.
"E então! Repito-lhes, senhores, o que já lhes disse hontem,
estejam descansados, que os milhões não nos hão de faltar."
Seguros na palavra do seu presidente, separaram-se os membros da
commissão, depois de terem combinado para o dia seguinte a terceira
sessão.
Só faltava tratar da questão da polvora. Esperava o publico com
anciedade esta decisão final. Dados o volume do projectil e o
comprimento do canhão, qual seria a quantidade de polvora
necessaria para produzir a impulsão? Aquelle agente temivel, de que
o homem, todavia conseguiu dominar e dirigir os effeitos, ia ser
chamado a desempenhar o seu papel habitual, mas em proporções nunca
usadas.
É geralmente acreditado, e diz-se vulgarmente, que a polvora foi
inventada no seculo XIV, pelo monge Schwartz, que pagou com a vida
a grande descoberta que fizera. Mas na actualidade quasi que se
póde dar como provado que esta historia merece ser classificada a
par de muitas outras lendas da idade media. A polvora ninguem a
inventou, deriva directamente dos fogos gregos, como ella compostos
de enxofre e de salitre. A differença é que os mixtos que em tempos
remotos davam apenas polvora de foguete transformaram-se, com o
decorrer dos tempos, em mixtos detonantes ou polvoras de tiro.
Porém se os eruditos conhecem perfeitamente a imaginaria historia
da invenção da polvora, pouca gente ha que saiba devidamente
apreciar a sua potencia mechanica, que é exactamente o que é
necessario saber para comprehender a importancia do assumpto
sujeito á commissão.
Um litro de polvora pesa, proximamente, duas libras(900 grammas)
, e produz quando se inflamma quatrocentos litros de gazes;
estes gazes, em liberdade, e sob a acção de uma temperatura elevada
até dois mil e quatrocentos graus, occupam um espaço equivalente a
quatro mil litros.
Portanto o volume da polvora em grão está para o volume dos gazes
produzidos pela sua deflagração, assim como um está para quatro
mil. Avalie-se por isto a espantosa impulsão que hão de produzir
estes gazes, quando comprimidos n'um espaço quatro mil vezes mais
apertado do
que o que naturalmente haviam de occupar.
Isto tudo sabiam, e perfeitamente, os membros da commissão quando
no dia seguinte abriram a sessão. Barbicane concedeu a palavra ao
major Elphiston, que tinha sido director das fabricas de polvora no
tempo da guerra.
"Caros camaradas, disse aquelle notavel chimico, vou começar pela
citação de algarismos irrecusaveis que hão de ser a base dos nossos
calculos. A bala de vinte e quatro, de que em termos tão poeticos
nos fallou antes de hontem o honrado J.-T. Maston, é expellida da
bôcade fogo apenas por dezeseis libras de polvora.
--Estaes seguro d'esse algarismo? Perguntou Barbicane.
--Absolutamente seguro, respondeu o major. O canhão Armstrong
carrega-se só com setenta e cinco libras de polvora para um
projectil de oitocentas libras de peso, e a columbiada de Rodman
não gasta mais de sessenta libras de polvora para arremessar a seis
milhas de distancia a sua bala de meia tonelada. São factos que não
podem ter contestação, porque eu proprio tomei nota d'elles nas
actas da commissão de artilheria.
--Muito bem, respondeu o general.
--Ora pois! proseguiu o major, a consequencia que devemos tirar
d'estes dados é a seguinte: que a quantidade de polvora não
augmenta na proporção do peso da bala; e, na verdade, são
necessarias dezeseis libras de polvora para uma bala de vinte e
quatro; por outras palavras, gastam-se nos canhões ordinarios
quantidades de polvora que pesam um terço do peso da bala, mas a
proporcionalidade não é constante. Se fizessemos o calculo,
haviamos de reconhecer que para a bala de meia tonelada, o peso da
polvora necessaria, que se reduz a sessenta libras apenas, seria,
segundo a proporção, de trezentas e trinta e tres libras.
--E a que conclusão quereis por ahi chegar? Perguntou o
presidente.
Levando essa theoria até aos seus ultimos limites, meu caro major,
disse J.-T. Maston, haveis de chegar á seguinte conclusão final:
que, se póde
dispensar a polvora, toda a vez que a bala exceda um
certo peso.
--O nosso Maston é sempre faceto, mesmo quando se trata de cousas
serias, mas esteja descansado que lhe hei de propor quantidades de
polvora, capazes de lisonjear o seu amor proprio de artilheiro. O
que eu pretendo que fique claramente estabelecido, é que, no tempo
da guerra, o peso da polvora foi, por experiencia, reduzido para os
maiores canhões á decima parte do peso da bala.
--Nada ha mais verdadeiro, disse Morgan. Lembro entretanto, que
será conveniente que accordemos ácerca da natureza da polvora,
antes de decidir qual é a quantidade d'ella necessaria para a
impulsão calculada.
--Havemos de usar da polvora bombardeira, respondeu o major, porque
a combustão total d'esta é mais rapida que a da polvora miuda.
--É verdade, replicou Morgan, mas é muito quebradiça, e no fim de
tempos vem a deteriorar a alma das peças.
--Ora! isso poderia ser um inconveniente para qualquer canhão
destinado a fazer longos serviços, mas para a nossa columbiada não.
Perigo de explosão não temos nós que temer, o que é essencial é que
a polvora se inflamme instantaneamente, para que o seu effeito
mechanico seja completo.
--Talvez se podesse abrir na peça mais de um ouvido, disse J.-T.
Maston, e assim darfogo em muitos pontos simultaneamente.
--Pois sim, respondeu Elphiston, mas isso iria difficultar a
manobra. Insisto portanto na minha bombardeira, que evita essas
difficuldades.
--Vá, respondeu o general.
--Rodman, proseguiu o major, usava para carregar a sua columbiada
de uma polvora, cujos grãos eram do tamanho de uma castanha, e
fabricada com carvão de salgueiro mal torrado em caldeiras de ferro
fundido. Esta polvora era dura e luzidia, e incendiando-se na mão
não deixava vestigios; continha hydrogenio e oxygenio em grandes
proporções, ardia instantaneamente, e, apesar de ser muito
quebradiça,
não deteriorava sensivelmente as bôcas de fogo.
--Em vista d'isso, respondeu J.-T. Maston, parece-me que não ha que
hesitar, e que a escolha está de per si feita.
--A não ser que deis preferencia ao oiro pulverisado, replicou
rindo, o major, riso que o susceptivel secretario pagou com um
gesto ameaçador do seu gancho.
Barbicane conservára-se até aquelle momento estranho á discussão.
Deixava fallar e ouvia. Era evidente que tinha o juizo formado
ácerca do assumpto. Por isso limitou-se a dizer o seguinte:
"Em conclusão, meus amigos, que quantidade de polvora, reputaes
necessaria?"
Entre-olharam-se por um momento os tres socios do Gun-Club.
"Duzentas mil libras, disse por fim Morgan.
--Quinhentas mil, replicou o major.
--Oitocentas mil!" exclamou J.-T. Maston.
D'esta vez não se atreveu Elphiston a alcunhar o collega de
exagerado. E com rasão, que se tratava de arremessar á Lua um
projectil de vinte mil libras de peso, e de communicar a este uma
força inicial de doze mil jardas por segundo. Seguiu-se portanto um
momento de silencio á triplice proposta feita pelos tres
collegas.
Quebrou-o finalmente o presidente Barbicane.
"Estimaveis camaradas, disse este com voz placida, parto eu do
principio, que a resistencia do nosso canhão, construido nas
condições requeridas, é illimitada. Portanto vou causar surpreza ao
honrado J.-T. Maston, affirmando-lhe que ainda foi timido nos seus
calculos, e proponho que sejam duplicadas as oitocentas mil libras
de polvora em que fallou.
--Um milhão e seiscentas mil libras? disse J.-T. Maston, dando um
salto na cadeira.
--Nada menos.
--Mas, n'esse caso, voltâmos ao meu canhão de meia milha de
comprimento.
--É claro, disse o major.
--Um milhão e seiscentas mil libras de polvora, continuou o
secretario da commissão, hão de occupar um espaço igual a vinte e
dois mil pés cubicos approximadamente; e como o canhão em que
accordastes tem um volume interno apenas igual a cincoenta e quatro
mil pés cubicos, ha de ficar cheio até quasi ao meio, sendo por
esta forma a alma pequena, para que a força expulsiva dos gazes
imprima ao projectil impulsão bastante.
Isto não tinha replica. O que J.-T. Maston dizia era apura verdade. Voltaram-se todos para Barbicane.
"Apesar de tudo, tornou o presidente, insisto na quantidade de
polvora que indiquei. Reflecti que um milhão e seiscentas mil
libras de polvora hão de transformar-se em seis milhares de milhões
de litros de gazes. Ouviram bem? Seis milhares de milhões!
--Mas então o que se ha de fazer? perguntou o general.
--É muito facil; havemos de reduzir o volume d'esta enorme
quantidade de polvora, sem lhe diminuir por fórma alguma a potencia
mechanica.
--Bem! Mas por que meio?
--É o que vou dizer-vos, respondeu sem nenhum entono Barbicane.
Os interlocutores devoravam-n'o com o olhar.
"Com effeito, continuou elle, nada é mais facil do que reduzir essa
massa de polvora a um volume quatro vezes menor. Todos tendes
conhecimento d'essa curiosa substancia que constitue os tecidos
elementares dos vegetaes e que se chama cellulose.
--Ah! interrompeu o major. Começo a comprehender, meu caro
Barbicane.
--Essa substancia, disse o presidente, extrahe-se no estado de
perfeita pureza de diversos corpos, e principalmente do algodão,
que não é senão a penugem das sementes do algodoeiro. Ora o
algodão, combinado a frio com o acido azotico, transforma-se em uma
substancia eminentemente insoluvel, eminentemente combustivel e
eminentemente explosiva. Descobriu esta substancia ha já annos, em
1832, o chimico francez Braconnot, e poz-lhe o nome de xyloidina.
Em 1838 outro francez, Pelouze, estudou-lhe as differentes
propriedades; e finalmente em 1846, Shonbein, professor de chimica
em Bâle, propo-la para polvora de guerra. Esta polvora é o algodão
azotico.
--Ou pyroxylo, respondeu Elphiston.
--Ou algodão-polvora, respondeu Morgan.
--Pois não haverá um nome de americano que se possa escrever ao
lado d'essa descoberta? exclamou J.-T. Maston, movido por vivo
sentimento de amor proprio nacional.
--Infelizmente nem um só, respondeu o major.
--Apesar d'isso, continuou o presidente, por dar prazer a Maston,
sempre lhe direi que póde estabelecer-se proxima relação entre os
trabalhos de um nosso concidadão e o estudo da cellulose; porque o
collodion, que é um dos agentes principaes da photographia, não é
senão pyroxylo dissolvido em ether misturado com alcool, e o
collodion foi descoberto por Maynard, que era então estudante de
medicina em Boston.
--Pois então, hurrah! por Maynard e pelo algodão-polvora! exclamou
o ruidoso secretario do Gun-Club.
--Voltemos ao pyroxylo, proseguiu Barbicane. Conheceis-lhe já as
propriedades que no-lo vão tornar precioso: prepara-se com extrema
facilidade: é mergulhar algodão no acido azotico fumegante durante
quinze minutos, lava-lo depois em grande quantidade de agua,
secca-lo e nada mais.
--É na realidade extremamente simples, disse Morgan.
--Alem d'isto o pyroxylo é inalteravel pela humidade, qualidade que
devemos reputar preciosa, visto como hão de ser necessarios muitos
dias para carregar o nosso canhão; é inflammavel a cento e setenta
graus centigrados, em vez deduzentos e quarenta, e arde tão subitamente, que póde ser
queimado em cima de polvora vulgar, sem que esta tenha tempo de
inflammar-se.
--Perfeitamente, respondeu o major.
--Tem só um inconveniente: é caro.
--Isso que importa? interrompeu J.-T. Maston.
--Em conclusão; communica aos projectis velocidade quatro vezes
maior que a da polvora. Acrescentarei ainda que, misturado com oito
decimos do seu peso de nitrato de potassa, lhe augmenta a potencia
explosiva em proporção notavel.
--E será necessario faze-lo? perguntou o major.
--Creio que não, respondeu Barbicane. Em conclusão, em vez de um
milhão e seiscentas mil libras de polvora, teremos apenas
quatrocentas mil libras de algodão-polvora, e como se podem
comprimir sem perigo, em vinte e sete pés cubicos, quinhentas
libras de algodão azotico, esta substancia vem a encher a nossa
columbiada sómente até á altura de trinta toezas. Por esta maneira
terá a bala a percorrer mais de setecentos pés de alma do canhão,
sob a acção do esforço de seis milhares de milhões de litros de
gazes antes de voar em liberdade para o astro das noites."
Ao ouvir o final d'este periodo não pôde, de commovido, conter-se
J.-T. Maston; lançou-se nos braços do amigo com vehemencia de
projectil; mettia-lhe as costellas dentro, se a solida construcção
de Barbicane não
estivera á prova de bomba.
Terminou com este incidente a terceira sessão da commissão.
Barbicane e os seus audazes collegas, a quem nada parecia
impossivel, tinham acabado de resolver o problema tão complexo do
projectil, do canhão e das polvoras. Elaborado o plano, restava a
execução.
"Insignificantes pormenores, bagatella", lhe chamava J.-T.
Maston.
O publico americano encontrava poderosos incentivos de curiosidade
até nos mais insignificantes pormenores do emprehendimento do
Gun-Club, e seguia passo a passo as discussões da commissão.
Os preparativos mais simples para aquella grande experiencia, as
questões de algarismos que d'ella nasciam, as difficuldades
mechanicas que havia a resolver, n'uma palavra a sua mise en train
eram o que preoccupava em grau elevadissimo a opinião.
Mais de um anno havia de decorrer ainda entre o começo e o termo
final dos trabalhos preparatorios; mas este intervallo de tempo não
havia de ser esteril em emoções; a escolha de logares para a
perfuração, a construcção do molde, a fundição da columbiada e o
perigosissimo carregamento d'ella, tudo era mais que sufficiente
para excitar a curiosidade publica.
O projectil, apenas expellido, havia de escapar em poucos decimos
de segundo ao alcance da vista; depois para poucos privilegiados
era verem com os proprios olhos o que lhe havia de succeder, como
se haveria através do espaço, e por que fórma havia de alcançar a
Lua. Poreste motivo é que os preparativos para a experiencia e os
exactos pormenores da execução eram, para a maioria, a parte
verdadeiramente interessante d'ella.
E todavia o attractivo puramente scientifico do emprehendimento
recebeu de um subito incidente novo incitamento.
Já dissemos de quão numerosas legiões de admiradores e amigos tinha
o projecto Barbicane trazido a adhesão ao seu auctor, e comtudo por
mais honrosa e extraordinaria que fosse, aquella maioria não tinha
de ter unanimidade. Um só homem, um só em todos os Estados da
União, lavrou protesto contra a tentativa do Gun-Club, que atacou
com violencia sempre que se lhe proporcionou para isso occasião; e,
tal é a natureza humana, que para Barbicane valeu mais aquella
opposição de um só do que os applausos de todos os outros.
Apesar de que Barbicane bem conhecia quaes os motivos de tal
antipathia, e d'onde vinha aquella solitaria inimizade, que era
pessoal e de antiga data, e finalmente em que rivalidades de amor
proprio creára raizes.
Aquelle perseverante inimigo, nunca o presidente do Gun-Club o
tinha visto. E felizmente, porque o encontro d'aquelles dois homens
havia por certo de trazer consequencias funestas.
Aquelle rival era, como Barbicane, um homem de sciencia, natureza
altiva, audaz, convicta e violenta, um yankee puro. Chamavam-lhe o
capitão Nicholl, e habitava em Philadelphia.
Ninguem desconhece a curiosa luta que durante a guerra federal se
travou entre o projectil e a couraça dos navios blindados; aquelle
tinha por fito especial varar esta; esta obstinava-se decididamente
a não se deixar varar.
D'este facto proveio uma transformação de raiz na marinha dos
differentes estados dos dois continentes.
Bala e couraça lutaram com obstinação nunca vista; crescia o volume
de uma, augmentava logo a espessura da outra, e em constante
proporção.
Os navios marchavam para o fogo armados de peças formidaveis e
abrigados por invulneravel concha. Os Merrimac, os Monitor, os
Ram-Tenesse, os Weckausen arremessavam enormes projectis,
depois de encouraçados contra os projectis alheios. Faziam a outrem
o que não queriam que lhes fizessem, que é o principio immoral
sobre que assenta toda a arte da guerra.
Ora se Barbicane fôra notavel fundidor de projectis, Nicholl não
lhe ficára a dever nada como forjador de chapas para couraças.
Fundia um de noite e de dia em Baltimore, forjava o outro de dia e
de noite em Philadelphia. Cada um d'elles seguia ordem de idéas
diametralmente oppostas.
Barbicane a inventar nova bala, e Nicholl a inventar nova couraça.
Passava o presidente do Gun-Club a vida a abrir buracos, e o
capitão gastava os dias da existência a impedir-lh'o. D'aqui nasceu
uma rivalidade de todos os instantes, que dos factos foi passando
ás pessoas. Apparecia Nicholl a Barbicane em sonhossob fórma de impenetravel couraça de encontro á qual se ia fazer
pedaços, Barbicane apparecia nas visões nocturnas de Nicholl qual
projectil que o varava de lado a lado.
E comtudo, apesar de caminharem por linhas divergentes, estes
homens tinham de encontrar-se um dia, apesar de todos os axiomas da
sciencia geometrica; mas havia de ser no terreno do duello. Muito
felizmente para cidadãos tão uteis ao seu paiz, separavam-nos boas
cincoenta ou sessenta milhas, e os amigos de ambos semearam-lhe o
caminho de taes e tantos obstaculos, que nunca conseguiram
encontrar-se.
Lá qual dos dois inventores levava a palma ao outro, é que ninguem
sabia ao certo: os resultados obtidos tornavam difficil apreciar
com justiça. No fim de contas, o que mais plausivel parecia, é que
a couraça havia de ser a primeira a ceder á bala, e todavia para os
competentes ainda era caso de duvida. Por occasião das ultimas
experiencias feitas, os projectis cylindro-conicos de Barbicane
tinham ido espetar-se como alfinetes nas couraças de Nicholl;
n'esse dia reputou-se o forjador de chapas de couraça de
Philadelphia plenamente victorioso, e o mais profundo desprezo
pareceu-lhe ainda sentimento demasiadamente elevado para pagar os
merecimentos do seu rival; mas quando este, algum tempo depois,
substituiu por simples obuzes de seiscentas libras as balas
conicas, teve o capitão que descer do alto pedestal das suas
pretensões. E na realidade estes projectis, aindaque animados de
mediocre velocidade, esmigalharam, esburacaram, fizeram voar em
pedaços as chapas de melhor metal.
Tinham as cousas chegado a estes pontos, e a todos parecia que a
bala devia ficar com a palma da victoria, quando terminou a guerra
no mesmo dia em que Nicholl dava a ultima demão a uma nova couraça
de aço forjado! No seu genero, era esta verdadeira obra prima, e
capaz de desafiar todos os projectis imaginaveis. Fê-la o capitão
transportar para o polygono de Washington, e mandou cartel ao
presidente do Gun-Club, desafiando-o a vará-la.
Barbicane, como a paz já estava feita, não quiz tentar a
experiencia. Nicholl, então, furioso, offereceu expor a chapa que
inventara ao choque das balas mais inverosimeis, massiças, ôcas,
esphericas ou conicas. Recusa do presidente, que decididamente não
queria arriscar os louros da ultima victoria que alcançára.
Nicholl, ainda mais estimulado por aquella inqualificavel
obstinação, quiz tentar Barbicane dando-lhe de partido todas as
probabilidades favoraveis, e propoz-lhe collocar a chapa a duzentas
jardas de distancia do canhão. E Barbicane a teimar na recusa. A
cem jardas? Nem a setenta e cinco.
"Pois então a cincoenta, clamou o capitão pela voz dos jornaes, ou
a vinte e cinco jardas, e ponho-me eu por detrás da minha
couraça!"
Barbicane mandou responderque não atiraria, nem que o capitão Nicholl se pozesse diante em
vez de se pôr de trás.
Ao ler esta ultima replica não pôde Nicholl conter-se mais, e
arrastou a discussão para o campo das personalidades, insinuando
que a cobardia era cousa indivisivel, e que o homem que se recusa a
disparar um tiro de canhão não está muito longe de ter-lhe medo,
que em summa esses artilheiros que nos tempos de agora se batem a
seis milhas de distancia substituiam prudentemente a coragem
individual por formulas de mathematicas, e que no fim de contas
tanta coragem havia em esperar placidamente uma bala detrás de uma
couraça; como em arremessa-la com todas as regras da arte.
Nem palavra respondeu Barbicane a taes insinuações; talvez mesmo
nem d'ellas tivesse conhecimento, que lhe absorviam por então todas
as forças do espirito os calculos previos do seu grande
projecto.
Quando Barbicane realisou a famosa communicação ao Gun-Club, é que
a raiva do capitão Nicholl chegou ao paroxysmo. Referviam-lhe com
ella n'alma um ciume immenso e um sentimento de impotencia
absoluta! Que havia de inventar que fosse superior áquella
columbiada de novecentos pés! Qual havia de ser a couraça capaz de
resistir a um projectil de trinta mil libras!
Nos primeiros momentos ficou Nicholl aterrado, aniquilado,
esmigalhado por aquelle "tiro de canhão"; mas depois levantou-se, e
resolveu esmagar a proposta debaixo do peso da sua
argumentação.
Combateu por consequencia com grande violencia os trabalhos do
Gun-Club; publicou grande numero de cartas, de que os jornaes não
recusaram a reproducção. Tentou demolir scientificamente a obra de
Barbicane, e uma vez iniciada a guerra, serviu-se de toda a casta
de argumentos, que, força é dize-lo, foram as mais das vezes
especiosos e de baixo quilate.
O ataque a Barbicane começou, e com summa violencia, pelas questões
de algarismos; Nicholl tentou demonstrar por A+B que eram falsas as
formulas de que se servia o presidente, e accusou-o de ignorar os
principios rudimentares da balistica. Entre outros erros de que lhe
fazia cargo, apontava-lhe a impossibilidade, demonstrada, segundo
os calculos d'elle Nicholl, de imprimir a um corpo qualquer a
velocidade de doze mil jardas por segundo; sustentou com a algebra
em punho, que ainda mesmo animado d'essa velocidade, nunca
projectil de peso tal havia de ir alem dos limites da atmosphera
terrestre! Nem sequer oito leguas havia de percorrer! Ainda mais.
Dado, mas não concedido que se podesse conseguir tal velocidade, e
ainda reputada esta sufficiente, nem o obuz poderia resistir á
pressão dos gazes, que se haviam de desenvolver pela inflammação de
um milhão e seiscentas mil libras de polvora, nem que resistisse a
essa pressão poderia supportartemperatura de tal ordem. Havia sim de derreter-se ao sair da
columbiada, e cair em chuva de fogo por sobre os craneos dos
imprudentes espectadores. Barbicane nem deu mostras de perceber o
ataque, e proseguiu na obra encetada.
Nicholl então discutiu o assumpto por outra ordem de considerações;
não fallando já na provada inutilidade da experiencia sob todos os
respeitos, considerou-a como extremamente perigosa, quer para os
cidadãos que viessem auctorisar com a sua presença tão condemnavel
espectaculo, quer para as cidades que ficassem proximas do
deploravel canhão; fez tambem notar que se o projectil não
alcançasse o alvo, o contrario do que era aliás absolutamente
impossivel, evidentemente havia de cair na Terra, e que a quéda de
uma massa d'aquella ordem, multiplicada pelo quadrado da respectiva
velocidade, viria a pôr em grave risco um qualquer ponto do globo:
em conclusão que, em circumstancias taes, casos havia em que, sem
atacar nem de leve os direitos dos cidadãos livres, se tornava
necessaria a intervenção do governo, poisque se não devia pôr em
risco a segurança de todos por dar satisfação aos caprichos de um
só.
Do que deixâmos dito se deprehende qual o grau de exageração a que
se deixára arrastar o capitão Nicholl. Da opinião que professava
era o capitão sectario unico, e por conseguinte ninguem lhe ligou
importancia ás agourentas prophecias. Deixaram-no gritar á vontade,
e que seccasse os bofes, já que o levava em gosto.
Fizera-se o capitão defensor de uma causa de antemão perdida:
ouviam-no, mas ninguem o escutava, e nem um só admirador pôde
arrancar ao presidente do Gun-Club. Este nem se deu ao trabalho de
refutar os argumentos do adversario.
Nicholl, mettido n'este beco sem saída, e sem poder ao menos
arriscar o corpo em prol da causa que defendia, resolveu arriscar
ao menos o dinheiro. Em consequencia propoz publicamente no
Enquirer de Richmond uma serie de apostas em proporção ascendente,
cujo quadro é o seguinte:
Apostava o capitão:
1.º Que não chegariam a realisar-se fundos sufficientes para levar
a effeito o emprehendimento do Gun-Club 1:000 dollars 2.º Que a
operação de fundir um canhão de novecentos pés de comprimento era
impraticavel e não podia ter bom exito 2:000 dollars 3.º Que havia
de ser impossivel carregar a columbiada, e que o pyroxylo se havia
de inflammar por si proprio só pela pressão do projectil 3:000
dollars 4.º Que a columbiada havia de rebentar ao primeiro tiro
4:000 dollars 5.º Que a bala não havia de percorrer nem seis milhas
de trajectoria, e tornaria a cair na Terra alguns segundos depois
de disparado o tiro 5:000 dollars
Por aqui se vê que importante somma arriscava ocapitão, só por sustentar a sua invencivel teimosia. Eram nada
menos de quinze mil dollars.
Apesar da importancia da aposta, recebeu o capitão no dia 19 de
maio um bilhete lacrado, concebido nos termos de soberbo laconismo
que se seguem:
"Baltimore, 18 de outubro.--Acceito.--Barbicane."
Entretanto estava ainda uma questão por decidir; faltava escolher
logar propicio para fazer a experiencia. Segundo as recommendações
do observatorio de Cambridge, devia o tiro ser dirigido
perpendicularmente ao plano do horisonte, isto é, para o zenith; e
visto como a Lua não chega ao zenith senão dos logares terrestres
situados entre 0° e 28° de latitude, ou, por outras palavras, como
a declinação lunar maxima é apenas de 28°, estava o problema
reduzido a determinar exactamente o ponto do globo onde deveria ser
fundida a immensa columbiada.
No dia 20 de outubro estava reunido o Gun-Club em sessão magna, e
Barbicane levára comsigo um magnifico mappa dos Estados Unidos, de
Z. Belltropp. Porém J.-T. Maston, sem lhe dar tempo nem para o
desenrolar, pediu a palavra com a sua vehemencia habitual, e
encetou o debate nos seguintes termos:
"Honrados collegas, o assumpto que vae hoje aqui ser discutido tem
uma importancia verdadeiramente nacional, e vae offerecer-nos
occasião de praticarmos um grande acto de patriotismo."
Os socios do Gun-Club olharam uns para os outros, sem que ninguem
lograsse attingir o ponto de mira do orador.
"Nenhum de vós, proseguiu este, pensa sequer em transigir em cousa
que diga respeito á gloria do seu paiz, e se algum direito ha que a
União possa com justiça reivindicar, é por certo o de conter em
seus flancos o formidavel canhão do Gun-Club. Ora, nas
circumstancias actuaes...
--Caro Maston, interrompeu o presidente.
"Permitti-me que desenvolva o meu pensamento, proseguiu o orador.
Nas circumstancias actuaes somos forçados a escolher um logar
terrestre sufficientemente proximo do equador, para que a
experiencia seja feita em boas condições...
--Se me daes licença, tornou Barbicane.
--Peço livre discussão das idéas de cada um, replicou o
effervescente J.-T. Maston, e sustento que o territorio d'onde ha
de partir o nosso glorioso projectil deve ser parte integrante da
União americana.
--Isso não tem a menor duvida! responderam alguns socios.
--Pois bem! Já que nossas fronteiras não são bastantemente amplas,
já que pela parte do sul o Oceano nos oppõe insuperavel obstaculo,
já que nos é forçoso ir alem dos Estados Unidos e a um paiz
limitrophe buscar esse vigesimo oitavo parallelo, considero o facto
como um legitimo casus belli, e proponho que se declare guerra ao
Mexico!
--Nada! isso não! exclamaram de todos os lados.
--Não! replicou J.-T. Maston. É essa uma palavra que pasmo de ouvir
n'esterecinto!
--Mas attendei!...
--Nunca! Não tenho que attender! exclamou o fogoso orador. Mais
tarde ou mais cedo ha de vir a realisar-se essa guerra, e o que vos
proponho é que rebente hoje mesmo.
--Maston, disse Barbicane, forçando a attenção do orador pela
ruidosa detonação da campainha presidencial, retiro-vos a
palavra!
Maston ainda queria replicar, mas alguns dos collegas conseguiram
conte-lo.
"Concordo, disse Barbicane, em que a experiencia não póde nem deve
ser tentada senão em terras da União; mas se o meu impaciente amigo
me tivera deixado fallar, se tivera sequer volvido os olhos para um
mappa, saberia que é perfeitamente inutil declarar guerra aos
vizinhos, visto como algumas das fronteiras dos Estados Unidos se
estendem alem do parallelo vigesimo oitavo. Senão vejam: temos ao
nosso dispor toda a parte meridional do Texas e das Floridas."
Terminou por aqui o incidente; mas não foi sem custo que J.-T.
Maston se deixou convencer. Decidiu-se, em consequencia, que a
columbiada havia de ser fundida e moldada no solo do Texas ou no da
Florida. Porém esta resolução estava destinada para fazer nascer
uma rivalidade sem exemplo entre as cidades d'estes dois
estados.
O vigesimo oitavo parallelo corta a costa americana pela peninsula
da Florida, que divide em duas partes approximadamente iguaes,
lança-se depois no golpho do Mexico, e subtende o arco formado
pelas costas do Alabama, do Mississipi e da Luiziania. Passa d'ahi
ao Texas, do qual corta uma saliencia, e prolonga-se através do
Mexico, transpõe a Sonora, salta por cima da velha California e vae
perder-se nos mares do Pacifico. Não havia pois senão as porções da
Florida e do Texas, situadas ao sul d'esse parallelo, que
estivessem nas condições de latitude recommendadas pelo
observatorio de Cambridge.
Na parte meridional da Florida não se encontram cidades de
importancia, e só por ali pullulam fortalezas levantadas para
servir de defeza contra os indios nomadas. Só uma cidade,
Tampa-Town, podia reclamar em favor da sua situação na lide e
apresentar-se com alguns
direitos a ser attendida.
Pelo contrario, no Texas são mais numerosas e mais importantes as
cidades. Corpus-Christi no condado de Nucces, e todas as cidades
situadas no Rio Bravo, taes como Laredo, Comalites e Santo Ignacio;
no Web, taes como Roma e Rio Grande City; no Stow, taes como
Edimburgo; no Hidalgo, Santa Rita, El Panda e Brownsville e as do
Caméron formaram uma liga imponente contra as pretensões da
Florida.
Assim, logo que se tornou publica a resolução chegaram a Baltimore
pela via mais rapida os deputados floridenses e texianos, e a
partir d'esse momento o presidente Barbicane e os socios de
influencia do Gun-Club viram-se cercados dia e noite de reclamações
formidaveis.
Na Greciaforam sete as cidades que disputaram a honra de terem sido berço
de Homero; aqui dois Estados inteiros estiveram quasi a chegar ás
do cabo por causa de um canhão.
Viram-se então aquelles "ferozes irmãos" passeiar armados pelas
ruas da cidade. E sempre que se encontravam era de temer conflicto,
que poderia ter serias consequencias.
Mas emfim lá estavam a habilidade e a prudencia do presidente
Barbicane para conjurar o perigo. Ás demonstrações pessoaes serviu
de derivativo a publicidade dos jornaes dos differentes Estados.
Foram sustentaculos da causa do Texas o New York Herald e a
Tribuna, ao passo que o Times e a American Review tomaram
decididamente as partes pelos deputados floridenses.
Os socios do Gun-Club é que não sabiam a quem haviam de dar
ouvidos.
Apresentava-se altivo o Texas com seus vinte e seis condados,
dispostos a modo de bateria; respondia-lhe a Florida, que para
territorio seis vezes menor valem doze condados mais do que vinte e
seis.
O Texas impava com os seus trezentos e trinta mil indigenas; mas a
Florida, que tem menor superficie, jactava-se de poder reputar-se
mais povoada com os seus cincoenta e seis mil; e não ficava por
aqui: chegava a accusar o Texas de possuir certa especialidade de
febres
paludosas, que uns annos por outros lhe vinham a custar
alguns milhares de habitantes, e o caso é que não mentia.
O Texas, pela sua parte replicava: que a respeito de febres, nada
tinha a Florida que lhe invejar, e que era, pelo menos, imprudente
quem chamava aos outros paizes insalubres, tendo a honra de ter em
casa o vomito negro no estado chronico. E o caso é que o Texas
tambem fallava verdade.
"Demais a mais, accrescentavam os texianos pela via do New-York
Herald, de alguma consideração é credor o estado onde nasce o
melhor algodão de toda a America, o estado que produz a melhor
madeira de carvalho para construcção de navios, o estado que tem
nas entranhas dos seus terrenos soberba hulha, e minas taes, que o
seu producto em ferro é de cincoenta por cento do minerio
puro."
A isto replicava o American Review, que o solo da Florida, sem ter
aliás tantas riquezas, offerecia todavia melhores condições para
moldar e fundir a columbiada, visto como era composto de areias e
terras argillosas.
Porém, tornavam os do Texas, antes de fundir seja lá o que for n'um
paiz qualquer, é preciso lá ir; e as communicações com a Florida
são difficeis, entretanto que a costa do Texas tem a bahia de
Galveston, que mede quatorze leguas em seu contorno, e que era
capaz de alojar a um tempo todasas esquadras do mundo.
Pois muito bem! É essa então a via de communicação que apresentaes;
a bahia de Galveston, que está situada ao norte do vigesimo nono
parallelo?
E nós não temos a bahia do Espirito Santo, que se abre precisamente
no vigesimo oitavo grau de latitude, e pela qual os navios vão
directamente até Tampa-Town?
--Bonita bahia! respondia o Texas; meia entupida pelas areias!
--Entupidos estarão elles! exclamava a Florida. Cuidam que tratam
com algum paiz de selvagens?
--Verdade é, que os seminolas ainda fazem correrias nas planicies
da Florida!
--E então! e os apaches, e os comanches, é gente civilisada!"
Proseguia este dize tu direi eu havia já dias, quando os da Florida
tentaram arrastar os adversarios para outro terreno. Uma bella
manhã o Times insinuou surrateiramente, que como o emprehendimento
era "essencialmente americano", não podia ser tentado senão em
territorio "essencialmente americano!"
--Estas palavras fizeram ir aos ares os do Texas: "Americanos! e
não o seremos nós com tanto direito como vós outros? Pois o Texas e
a Florida não foram ambos encorporados na União em 1845?
--Ninguem o contesta, respondeu o Times, mas nós cá sempre
pertencemos ao numero dos americanos desde 1820.
--Bem sabemos, replicou a Tribuna; foram hespanhoes ou inglezes por
alguns duzentos annos, e depois foram vendidos aos Estados Unidos
por cinco milhões de dollars!
--E isso que importa! replicaram os da Florida, é acaso motivo que
nos faça córar? E a Luiziania não foi comprada a Napoleão em 1803,
por dezeseis milhões de dollars!?
É mesmo uma vergonha! clamaram os deputados de Texas. Atrever-se um
miseravel bocado de terra tal como a Florida a querer comparar-se
com o Texas, que em vez de se vender conquistou por seus proprios
esforços a independencia, que expulsou os mexicanos em 2 de março
de 1836, que se declarou republica federativa depois da victoria
alcançada por Samuel Houston nas margens do San-Jacinto sobre as
tropas de Sant'Anna! Finalmente, com um paiz que se uniu
voluntariamente aos Estados Unidos da America!
--É porque tinha medo dos mexicanos!" respondeu a Florida.
Medo! desde o dia em que escapou tal palavra, na realidade um tanto
violenta, a posição tornou-se intoleravel. Era crença geral que
haveria carnificina dos dois partidos nas ruas de Baltimore.
Julgou-se necessario mandar guardar os deputados com sentinellas á
vista.
O presidente Barbicane é que não sabia para onde se havia de virar.
Choviam-lhe em casa notas, documentos, cartas prenhes de ameaças.
Que solução havia de adoptar? Em relação ao apropriado do solo, á
facilidade de communicações, da rapidez dos transportes, não havia
differença nos direitos dos dois estados. Ás personalidades
politicas não havia que attender em assumpto tal.
Durava esta hesitação,esta perplexidade ha muito, quando Barbicane tomou a resolução
de cortar de vez o nó; fez por conseguinte reunir os collegas e
propoz-lhes uma solução profundamente sensata, como vae ver-se.
"Reflectindo seriamente, lhes disse, no que acaba de passar-se
entre a Florida e o Texas, é claro que hão de reproduzir-se as
mesmas difficuldades entre as cidades do estado que favorecermos. A
rivalidade ha de descer do genero á especie, do estado á cidade, e
nós ficaremos na mesma. Ora o Texas possue onze cidades nas
condições requeridas, que hão de disputar entre si a honra do
emprehendimento, e se escolhermos alguma d'ellas, vamos forjar por
nossas proprias mãos novos dissabores, entretanto que a Florida só
tem uma. Seja pois a Florida o estado, e Tampa-Town a cidade
escolhida!"
Esta decisão, logoque se deu a publico, foi o ultimo golpe nos
deputados do Texas, dos quaes se apossou indescriptivel furia,
chegando a dirigir provocações pessoaes aos socios do Gun-Club. Não
tiveram mais remedio os magistrados de Baltimore, e foi d'elle que
usaram, do que fazer apromptar um comboio especial, onde por
vontade ou por força obrigaram a embarcar os do Texas, que largaram
assim da cidade com a rapidez de trinta milhas por hora.
Porém, apesar da velocidade, com que íam levados, ainda lhes sobrou
tempo para arremessarem aos adversarios um ultimo e ameaçador
sarcasmo.
Alludindo á pequena largura da Florida, estreita peninsula apertada
entre dois mares, affirmaram que não havia de resistir ao abalo do
tiro, e que havia de despedaçar-se com a força d'elle.
"Pois deixa-la despedaçar!" responderam os da Florida com laconismo
digno dos tempos antigos.
Vencidas as difficuldades astronomicas, mechanicas e topographicas,
vinha naturalmente a pêllo a questão de dinheiro. A realisação do
projecto exigia uma despeza enorme. Não havia particular nem mesmo
estado que podesse dispor só por si de tantos milhões quantos eram
necessarios.
Tomou portanto o presidente Barbicane a resolução de fazer do
emprehendimento, ainda que americano, um negocio de interesse
universal, e de pedir a todos os povos a sua cooperação financeira.
Era a um tempo dever e direito de toda a terra intervir nos
negocios do seu satellite. A subscripção aberta em Baltimore n'este
sentido estendeu-se ao mundo inteiro, urbi et orbi.
Estava esta subscripção destinada a ter um exito superior a tudo
que era de esperar, apesar de se tratar de quantias dadas que não
emprestadas. A operação era puramente desinteressada, porque não
apresentava nem remota probabilidade de lucro.
Porém o effeito da proposta Barbicane, e que não tinha parado nas
fronteiras dos Estados Unidos; antes tinha saltado por cima do
Atlantico e do Pacifico, para invadir a um tempo a Asia ea Europa, a Africa e a Oceania. Os differentes observatorios da
União pozeram-se desde logo em communicação immediata com os
observatorios do estrangeiro; alguns, como o de Paris, de
Petersburgo, do Cabo, de Berlim, de Altona, de Stockholmo, de
Varsovia, de Hamburgo, de Buda, de Bolonha, de Malta, de Lisboa, de
Benarés, de Madrasta, de Pekin dirigiram cumprimentos de
felicitação ao Gun-Club; outros conservaram-se em
prudente
expectativa.
O observatorio de Greenwich, esse, com approvação dos outros vinte
e dois estabelecimentos similares da Gran-Bretanha, foi claro e
terminante; e negou com firmeza a possibilidade de bom exito,
seguindo sem hesitação as theorias do capitão Nicholl. E n'estes
termos, ao passo que muitas sociedades scientificas promettiam até
enviar delegados seus a Tampa-Town, o pessoal scientifico do
observatorio de Greenwich reunido em sessão, apresentada a proposta
Barbicane, passou brutalmente á ordem do dia.
Bello ciume de inglez para americano, nada mais.
Em geral, foi excellente o effeito produzido no mundo scientifico,
e d'ahi se communicou ás massas, que, pela maior parte, se tomaram
de paixão pelo assumpto. Facto este de magna importancia, poisque
estas mesmas massas iam ser convidadas a subscrever para a
realisação de um capital consideravel.
No dia 8 de outubro já o presidente Barbicane tinha publicado um
manifesto cheio de enthusiasmo, no qual appellava para "todos os
homens de boa vontade da Terra." Este documento, aliás traduzido em
todas as linguas, deu optimo resultado.
Abriram-se as subscripções parciaes nas principaes cidades da
União, para serem centralisadas no banco de Baltimore, rua de
Baltimore n.º 9, e depois nos differentes estados dos dois
continentes:
Em Vienna na casa S.-M. de Rothschild;
Em Petersburgo, casa Stieglitz e C.a;
Em Paris, no Credito mobiliario;
Em Stockholmo, casa Totie e Arfuredson;
Em Londres, casa de N.-M. de Rothschild e filhos;
Em Turim, casa Ardouin e C.a;
Em Berlim, casa Mendelsohn;
Em Genebra, casa Lombard, Odier e C.a;
Em Constantinopla, no Banco ottomano;
Em Bruxellas, casa S. Lambert;
Em Madrid, casa Daniel Weisweller;
Em Amsterdam, no Credito neerlandez;
Em Roma, casa Torlonia e C.a;
Em Lisboa, casa Lecesne;
Em Copenhague, no Banco privativo;
Em Buenos-Ayres, no banco Mauá;
No Rio de Janeiro, na mesma casa;
Em Montevideo, na mesma casa;
Em Valparaizo, casa Thomás La Chambre e C.a;
No Mexico, casa Martin Daran e C.a;
Em Lima, casa Thomaz La Chambre e C.a
Tres dias depois da publicação do manifesto do presidente Barbicane
estavam subscriptos nas differentes cidades da União, quatro
milhões de dollars. Com esta somma, por conta de maior quantia,
já o Gun-Club podia ir fazendo alguma cousa. Dias depois,
noticiavam os despachos telegraphicos á America que as subscripções
no estrangeiro eram cobertas com verdadeiro enthusiasmo. Algunspaizes faziam-se notaveis pela generosidade da sua offerta. A
outros lá custava mais a desapertar os cordões á bolsa. Questão de
temperamento.
Em summa, mais eloquentes são os algarismos que as palavras, e eis
a descripção official das sommas que foram escripturadas no activo
do Gun-Club, logoque se encerrou a subscripção.
A Russia deu como contingente a enorme quantia de trezentos
sessenta e oito mil setecentos e trinta e tres rublos, e só
poderá causar espanto a grandeza da quantia a quem desconhecer o
gosto dos russos pelas sciencias, e o progresso que imprimem aos
estudos astronomicos, devido aos numerosos observatorios que
possuem, dos quaes um, o de mais importancia, custou dois milhões
de rublos.
A França começou por se rir das pretensões dos americanos. Serviu
ali a Lua de pretexto a mil calembourgs já estafados, e a algumas
dezenas de vaudevilles em que o mau gosto e a ignorancia disputavam
primazias. Porém os francezes, que já de antiga data trazem o
habito de cantar e ainda em cima pagar, d'esta vez riram, mas
tambem depois pagaram, subscrevendo com a quantia de um milhão e
duzentos e cincoenta tres mil novecentos e trinta francos. Por
este preço realmente assistia-lhes o direito de se divertirem um
bocado.
A Austria, apesar dos seus apertos financeiros, mostrou
generosidade bastante. Elevou-se a parte d'esta potencia, na
contribuição geral, á quantia de duzentos e dezeseis mil
florins, que bem boa conta fizeram.
Cincoenta e dois mil rixdales foi o obolo da Suecia e da
Noruega. A cifra já era de consideração em proporção do paiz;
porém, maior ainda teria sido, se a subscripção se tivera aberto ao
mesmo tempo em Christiania e em Stockholmo. Seja lá por que rasão
for, o caso é que os norueguezes não gostam de mandar o seu
dinheiro para a Suecia.
A Prussia deu testemunho, mandando duzentos e cincoenta mil
thalers, de que prestava á tentativa a sua alta approvação. Os
differentes observatorios d'esta nação contribuiram de boa vontade
com uma quantia importante, e foram dos que com mais ardor animaram
o presidente Barbicane.
A Turquia portou-se com generosidade, e não admira porque estava
pessoalmente interessada n'aquelle assumpto, visto ser a Lua quem
lhe
fixa o curso dos mezes e a epocha dos jejuns do Ramadan. Nem
lhe ficava bem dar menos de um milhão trezentas e setenta e duas
mil seiscentas e quarenta piastras, que foi o que
effectivamente deu, e com ardor tal que parecia até dar a entender
que houvera certa pressão da parte do governo da Porta.
A Belgica distinguiu-se entre todos os estados de segunda ordem por
um donativo de quinhentos e treze mil francos,proximamente treze centimos por habitante.
A Hollanda e suas colonias tomaram parte na operação com cento e
dez mil florins, mas sempre foram pedindo cinco por cento de
desconto, visto pagarem de contado.
A Dinamarca, um tanto restricta em extensão territorial sempre
rendeu novecentos mil ducados de oiro fino, o que é prova do
amor que os dinamarquezes consagram ás expedições scientificas.
A Confederação germanica cooperou com trinta e quatro mil duzentos
e oitenta e cinco florins; não se lhe podia exigir mais, nem
que lh'o exigissem o daria.
Apesar dos seus grandes apuros a Italia sempre encontrou nas
algibeiras dos seus filhos duzentas mil liras, mas foi preciso
rebusca-las bem. Se a Italia já estivera de posse do Veneto melhor
iria o negocio, mas o caso é que ainda não possuia o Veneto.
Os Estados da Igreja entenderam não dever mandar menos de sete mil
e quarenta escudos romanos, e Portugal levou a sua dedicação
pela sciencia até trinta mil cruzados.
O Mexico, esse deu o obolo da viuva, oitenta e seis piastras
fortes; verdade é que os imperios, nos primeiros tempos da sua
fundação, sempre vivem pouco á larga de meios.
De duzentos e cincoenta e sete francos foi o auxilio modesto
prestado pela Suissa á obra americana. Força é dize-lo e
francamente, a Suissa não percebia o lado pratico da operação; não
se lhe afigurava que o acto de arremessar uma bala á Lua fosse
preliminar adequado para entabolar
relações commerciaes com o astro
das noites, e n'este presupposto pareceu-lhe pouco prudente
empenhar capitaes em tentativa tão aleatoria. E no fim de contas
talvez a Suissa tivesse rasão.
Em Hespanha é que foi impossivel juntar mais de cento e dez
reales, circumstancia a que serviu de pretexto ter a nação que
acabar os seus caminhos de ferro. Mas a verdade é que a sciencia
não é cousa lá muito bem vista em tal paiz, que ainda está um tanto
atrazado. E demais, havia certos hespanhoes, e não eram dos menos
illustrados, que não concebiam com exactidão que relação havia
entre a massa do projectil comparada com a da Lua, e que temiam que
o choque fosse alterar a orbita do astro, perturba-lo no seu papel
de satellite, provocando-lhe a quéda na superficie do globo
terrestre. Em casos taes o melhor era abster-se. E foi o que, com
differença de alguns poucos reales, fizeram os hespanhoes.
Falta a Inglaterra. Já dissemos com que desdenhosa antipathia fôra
ali recebida a proposta Barbicane. Os inglezes têem todos uma só e
mesma alma para todos os vinte e cinco milhões de habitantes que
povoam a Gran-Bretanha. Limitaram-se a dar a entenderque o emprehendimento do Gun-Club era contrario ao "principio de
não intervenção", e nem com um ceitil concorreram.
O Gun-Club, quando soube tal nova, deu-se por satisfeito em erguer
os hombros, e proseguiu na sua grande tarefa. Logoque a America do
Sul, isto é, Peru, Chili, Brazil, provincias do Plata, Columbia
entregaram a sua quota de trezentos mil dollars, ficou o
Gun-Club de posse do consideravel capital cujo computo detalhado
segue:
Dollars Subscripção dos Estados Unidos 4.000:000 Subscripções
estrangeiras 1.446:675 Somma 5.446:675
Eram portanto cinco milhões quatrocentos e quarenta e seis mil
seiscentos e setenta e cinco dollars, que o publico tinha
despejado nos cofres do Gun-Club.
A ninguem deve causar surpreza a importancia de tal somma. Os
trabalhos de fundição e brocagem, obra de pedra e cal, transporte
de operarios e installação d'estes n'uma região quasi deshabitada,
construcção de fornos e edificios diversos, acquisição de
ferramenta para officinas, polvora, projectil e despezas perdidas,
deviam, segundo os orçamentos feitos, absorve-la quasi por inteiro.
Houve tiro na guerra federal que ficou por mil dollars, não era
pois de admirar que o do presidente Barbicane, unico nos fastos da
artilheria, custasse cinco mil vezes mais.
No dia 20 de outubro assignou-se um contrato com a fabrica de
fundição de Goldspring, perto de New-York, que, durante a guerra,
fôra a que melhores canhões de ferro fundido fornecêra a
Parrott.
Estipulou-se entre os outorgantes, que a fabrica de fundição de
Goldspring se obrigava a transportar para Tampa-Town, cidade da
Florida meridional, todo o material necessario para a fundição da
Columbiada.
A operação da fundição devia concluir-se, o mais tardar, até ao dia
15 de outubro proximo, e até ao mesmo dia ser entregue o canhão e
em bom estado, sob pena de multa de cem dollars por dia até
aquelle em que a Lua se tornasse a apresentar nas mesmas condições,
isto é, por tantos dias quantos se contam em dezoito annos e onze
dias.
O engajamento de operarios, ferias e accommodações necessarias
ficavam por conta da companhia de Goldspring.
O contrato, feito em duplicado e bona fide, foi assignado por J.
Barbicane, na qualidade de presidente do Gun-Club, e por J.
Murphison, como director da fabrica de fundição de Goldspring, e
cada uma das partes deu plena approvação ás estipulações da
escriptura.
Desde que se tornára notoria a escolha feita pelos socios do
Gun-Club em prejuizo do Texas, toda a gente na America, onde tudo
sabe ler, se julgou obrigada a estudar a geographia da Florida.
Nunca os livreiros venderam tanto exemplar de Bartram's travel in
Florida, do Romans's
natural history of East and West Florida, do
William's territory of Florida, do Cleland on the culture of the
Sugar-Cane in East Florida, etc. Tornou-senecessaria a impressão de novas edições. Era um verdadeiro
delirio.
Barbicane não era homem que se contentasse com leituras, queria ver
as cousas com os proprios olhos e escolher em pessoa a collocação
da Columbiada. Por consequencia, sem perda de um momento, poz á
disposição do observatorio de Cambridge os fundos necessarios para
a construcção de um telescopio, contratou com a casa Broadwill &
C.a de Albany a feitura do projectil de aluminium, e partiu logo de
Baltimore acompanhado por J.-T. Maston, pelo major Elphiston e pelo
director da fabrica de Goldspring.
No dia seguinte chegavam os quatro companheiros de jornada á Nova
Orleans, onde embarcaram sem demora no Tampico, aviso da marinha
federal, que o governo puzera á disposição d'elles. Aquecidas as
fornalhas, em poucos momentos deixaram de enxergar as praias da
Luiziania.
Não foi comprida a viagem; dois dias depois da partida, e tendo
percorrido quatrocentas e oitenta milhas, chegou o Tampico á
vista da costa da Florida.
Ao passo que o navio se approximava da costa, ía apparecendo aos
olhos de Barbicane um territorio baixo, chato, com apparencias de
pouca fertilidade.
Depois de costear uma serie de enseadas abundantes em ostras e
lagostas, entrou finalmente o Tampico na bahia do Espirito
Santo.
Divide-se esta bahia em duas barras estreitas e compridas, a de
Tampa e a de Hillisboro, cuja apertada embocadura o steamer passou
em poucos momentos. Pouco tempo depois já se destacavam por cima
das ondas as baterias rasantes do forte Brooke, e apparecia a
cidade de Tampa negligentemente recostada no fundo do pequeno porto
natural formado pela foz do rio Hillisboro.
N'este logar fundeou o Tampico, a 22 de outubro, pelas sete horas
da
noite; os quatro passageiros desembarcaram immediatamente.
Barbicane sentiu que lhe palpitava com violencia o coração quando
pisou o solo da Florida. Parecia palpa-lo com os pés, como faz o
architecto que pretende experimentar a segurança de um edificio.
J.-T. Maston, esse excavava a terra com a ponta do gancho.
"Senhores, disse então Barbicane, não temos tempo a perder, já
ámanhã havemos de montar a cavallo para fazer um primeiro
reconhecimento no paiz."
No momento em que Barbicane desembarcava, os tres mil habitantes de
Tampa-Town, tinham avançado a saír-lhe ao encontro, honra bem
cabida no presidente do Gun-Club, que os favorecêra na escolha por
elle indicada. Receberam-no com formidaveis acclamações, mas
Barbicane escapou-se a todas aquellas ovações, e conseguiu
metter-se n'um quarto do hotel Franklin, onde não quiz receber
pessoa alguma. Decididamente não lhe quadrava o papel de homem
celebre.
No dia seguinte, 23 de outubro, já lhe curveteavam debaixo das
janellas uns pequenos cavallos de raça hespanhola, todos fogo e
vigor. Mas não eram quatro senão cincoenta, comoutros tantos cavalleiros.
Barbicane desceu acompanhado pelos tres companheiros, e admirou-se
a principio de se achar rodeado de tão numerosa cavalgata. Tambem
fez reparo em que cada cavalleiro trazia a sua carabina a tiracolo
e pistolas nos coldres. Mas foi logo informado por um moço
floridense dos motivos de similhante apparato de força.
"Senhor, é por causa dos seminólas.
--Quaes seminólas?
--Os selvagens que percorrem a planicie; foi por isso que julgámos
prudente escoltar-vos.
--Ora qual! interrompeu J.-T. Maston, conseguindo içar-se por
escalada ao dorso do animal que lhe fôra destinado.
--Emfim, volveu o floridense, sempre é mais seguro.
--Meus senhores, respondeu Barbicane, agradeço-vos as vossas
attenções, e agora a caminho!
E o pequeno rancho abalou logo, desapparecendo no meio de nuvens de
poeira. Eram cinco da manhã, o sol já estava resplandecente e o
thermometro marcava 84°; entretanto as frescas virações do mar
moderavam a ardencia excessiva da temperatura.
Barbicane logoque saíu de Tampa-Town inclinou para o sul, seguindo
a costa com o fim de alcançar o creek de Alifia, que é um
arroio que vae desaguar na bahia de Hillisboro, doze milhas abaixo
de Tampa-Town. Continuaram Barbicane e companheiros seguindo a
margem direita, subindo para leste.
Dentro em pouco foram-se escondendo por detrás de um accidente do
terreno as aguas da bahia, e não viram os viajantes senão campinas
da Florida.
A Florida póde dividir-se em duas partes: uma ao norte, mais
abundante em população, menos abandonada, tem por capital
Tallashassêa e possue Pensacola, um dos mais importantes arsenaes
maritimos dos Estados Unidos; a outra, encerrada entre a America e
o golpho do Mexico, que a estreitam entre suas aguas, é apenas uma
delgada peninsula corroida pela corrente do Gulf-Stream, lingua de
terra como que perdida por entre as ilhas de um pequeno
archipelago, e que incessantemente dobram os numerosos navios que
buscam o canal de Bahama. É como que um posto avançado do golpho
das grandes tempestades.
A superficie da Florida é de trinta e oito milhões e trinta e tres
mil duzentos e sessenta e sete acres, dentro dos quaes se devia
escolher um situado para áquem do vigesimo oitavo parallelo, e em
condições convenientes para a tentativa; por isso Barbicane, ao
passo que cavalgava, ía examinando com attenção a configuração e a
particular distribuição do solo.
A Florida, descoberta por Juan Ponce de Leon em 1512, no domingo de
Ramos, deveu a esta circumstancia seu primeiro nome de
Paschoa-Florida, encantadora denominação bem mal cabida n'aquellas
costas aridas e abrazadas.
Mas a algumas milhas da praia, ía pouco e pouco mudando a natureza
do terreno, e o paiz mostrando-se dignodo nome primitivo; o solo era cortado por uma rede de creeks, de
rios, de ribeiros, de lagoas e de pequenos lagos; mas logo a
campina começou a elevar-se sensivelmente, e dentro em pouco deixou
ver plainos onde se davam admiravelmente todas as producções
vegetaes do norte e do meio dia, campos immensos, onde todas as
despezas e trabalhos da cultura são feitos pelo sol dos tropicos e
pelas aguas retidas no subsolo de argilla, e finalmente prados de
ananazes, de inhames, de tabaco, de arroz, de algodão, de canna de
assucar, que se estendiam a perder de vista, ostentando com
descuidosa prodigalidade immensas riquezas.
Barbicane mostrou-se muito satisfeito quando verificou que o
terreno se ía elevando progressivamente, e como J.-T. Maston o
interrogasse a tal respeito:
--Meu digno amigo, respondeu, temos interesse de primeira ordem em
fundir a Columbiada em terreno alto.
--Para estar mais perto da Lua? exclamou o secretario do
Gun-Club.
--Não, respondeu Barbicane sorrindo-se; que valem algumas poucas
toezas de mais ou de menos? Não é por isso, mas porque no centro de
terrenos elevados hão de proseguir com maior facilidade os nossos
trabalhos: não teremos de lutar com as aguas, circumstancia que nos
ha de poupar tubagens compridas e caras, o que é objecto de vulto
quando se trata de abrir um fosso de novecentos pés de
profundidade.
--Tendes rasão, disse então o engenheiro Murchison, devemos
afastar-nos quanto possivel dos lençoes de agua na direcção da
brocagem; entretanto se encontrarmos nascentes, não é mal sem
remedio, ou havemos de esgota-las com machinas, ou desvia-las. É
caso diverso dos poços artesianos, estreitos e escuros, onde
verruma, cubo e sonda, toda a ferramenta do perfurador, em summa,
trabalha ás escuras. Aqui não. Havemos de trabalhar com o céu á
vista, á luz do dia, com o alvião e
picareta em punho; e com o
auxilio de algumas minas, a tarefa ha de ir andando com
rapidez.
--Todavia, replicou Barbicane, se pela elevação do solo ou pela
natureza do terreno podérmos evitar a luta com as aguas
subterraneas, mais rapido e perfeito ha de ser o trabalho: tratemos
pois de abrir fosso em terreno situado a algumas centenas de toezas
acima do nivel do mar.
--Tem rasão, senhor Barbicane, e se me não engano, dentro em pouco
havemos de achar sitio adequado.
--Ai! o que eu queria era ouvir já a primeira enxadada, disse o
presidente.
--E eu a ultima! exclamou J.-T. Maston.
--Lá havemos de chegar, senhores, e acreditem que a companhia da
fabrica Goldspring não ha de ter que pagar-lhe a multa por
mora.
--Por Santa Barbara! que deveis ter rasão! replicou J.-T. Maston;
cem dollars por diaaté que a Lua volte a estar nas mesmas condições, isto é,
durante dezoito annos e onze dias, vem a dar, como bem deveis
saber, seiscentos e cincoenta e oito mil e cem dollars?
--Não, senhor, nem o sabemos, respondeu o engenheiro, nem havemos
de ter necessidade de que no-lo façam saber."
Por volta das dez horas da manhã; já o pequeno rancho tinha andado
a sua duzia de milhas: ás campinas ferteis succedêra a região das
florestas. Desenvolviam-se ali com profusão tropical as mais
variadas essencias. Eram formadas aquellas quasi impenetraveis
florestas de romeiras, laranjeiras, limoeiros, figueiras,
oliveiras, damasqueiros, bananeiras, e grandes cepas de vinha,
cujos fructos e flores rivalisavam em colorido e perfume. Á
fragrante sombra d'aquellas magnificas arvores cantavam e
esvoaçavam numerosissimas aves pintadas de brilhantes côres, entre
as quaes se distinguiam mais particularmente as garças americanas,
cujo ninho deveria ser um guarda-joias para ser digno d'aquellas
preciosidades empennadas.
J.-T. Maston e o major não podiam ter diante de si tão opulenta
natureza sem lhe admirar as esplendidas bellezas.
Mas o presidente Barbicane é que era pouco sensivel a tantas
maravilhas, e estava com pressa de proseguir, porque região tão
fertil por sua mesma fertilidade lhe desagradava. Não era
hydroscopo, mas apesar d'isso presentia a agua debaixo dos pés,
porque debalde procurava signaes de aridez incontestavel.
Entretanto íam avançando; tiveram de passar a vau alguns rios, e
não sem perigo, que os caïmans de quinze a dezoito pés de
comprimento abundam por aquelles logares. J.-T. Maston ameaçava-os
atrevidamente com a temivel ganchorra, mas não conseguia atemorisar
senão pelicanos, narsejas e phaetontes, selvagens habitantes
d'aquellas margens. Té os grandes flamingos côr de rosa o olhavam
com ar de estupidez.
Por fim aquelles habitantes das regiões humidas tambem foram
desapparecendo; já as arvores, menos grossas, appareciam rareadas
em matas menos espessas; alguns grupos isolados se destacavam nas
infinitas planuras onde perpassavam em manadas os gamos
assustados.
"Até que emfim! exclamou Barbicane, levantando-se nos estribos,
chegámos á região dos pinheiros.
--Que é tambem a dos selvagens," respondeu o major.
E viam-se na verdade no horisonte alguns seminólas; agitavam-se,
corriam de uns para os outros nos rapidos corseis, brandindo
compridas lanças ou descarregando as espingardas de detonação surda
de que costumam usar. Tambem ficaram-se n'estas demonstrações de
hostilidade, sem mais inquietar Barbicane e companheiros.
Estes estavam collocados no meio de um plaino pedregoso, local
vasto e descoberto, de grande numero de acres de extensão, que o
sol inundava com raios abrazadores. Era este plaino formado por uma
grande entumescencia de terreno, que parecia offerecer aos socios
do Gun-Club todas as condições requeridas para a collocação da
Columbiada.
"Alto! disse Barbicane, parando. Este sitio tem nome cáno paiz?
--Chama-se Stone's Hill," respondeu um dos da Florida.
Barbicane, sem dizer mais palavra, apeou-se, pegou dos instrumentos
e começou a determinar a posição com grande precisão; o pequeno
rancho reunido em volta d'elle olhava-o em profundo silencio.
N'aquelle momento passava o sol pelo meridiano. Barbicane, passados
instantes, escreveu rapidamente o resultado da observação que
fizera e disse:
"Este logar está situado a trezentas toezas acima do nivel do mar,
a 27° 7' de latitude e a 5° 7' de longitude oeste;
afigura-se-me que a sua natureza arida e penhascosa apresenta todas
as condições favoraveis para a experiencia; será portanto n'esta
planura que havemos de construir armazens, officinas, fornos,
cabanas para operarios, e será d'aqui, d'aqui mesmo, repetiu
batendo com o pé no vertice de Stone's-Hill, que o nosso projectil
ha de alar-se para os espaços do mundo solar!"
N'aquella mesma noite voltava Barbicane e companheiros a
Tampa-Town, e o engenheiro Murchison tornava a embarcar no Tampico
para Nova Orleans. Tinha de engajar ali um exercito de operarios, e
de trazer comsigo, no regresso, a maior parte do material. Os
socios do Gun-Club ficaram em Tampa-Town, para organisarem os
primeiros trabalhos com o auxilio da gente do paiz.
Oito dias depois do da partida, voltava o Tampico á bahia do
Espirito Santo acompanhado de uma esquadrilha de barcos de vapor.
Murchison tinha conseguido angariar mil e quinhentos trabalhadores.
Nas tristes epochas da escravidão todo o tempo e trabalho que se
empregasse em tal empenho teria sido perdido. Porém, desde que a
America, terra da liberdade, não conta em seu seio senão homens
livres, correm estes
onde quer que os chama trabalho bem
retribuido. Ora dinheiro é que não faltava ao Gun-Club, que
offerecia aos seus salariados, alem de uma feria elevada,
gratificações consideraveis e em proporção.
O operario engajado para a Florida podia contar, concluida a obra,
com um capital depositado em seu nome no banco de Baltimore.
Murchison pôde portanto, sem mais incommodos, escolher á vontade e
levantar a bitola no que dizia respeito á intelligencia e
habilidade dos operarios.
É de crer que alistasse n'aquella legião do trabalho a flor dos
machinistas, fogueiros, fundidores, caleiros, mineiros, tijoleiros
e trabalhadores de todos os generos, pretos ou brancos, sem
distincção de cores.
No dia 31 de outubro, pelas dez horas da manhã, desembarcou toda
aquella multidão nos caes de Tampa-Town; imagine-se que movimento e
que actividade haviam de reinar na pequena cidade, cuja população
se elevou ao dobro no espaço de um só dia. Tampa-Town havia de
lucrar enormemente com a iniciativa do Gun-Club, não tanto com os
operarios, que immediatamente foram mandados para Stone's-Hill,
como com a affluencia decuriosos que a pouco e pouco foram convergindo de todos os
pontos do globo para a peninsula floridense.
Nos primeiros dias trabalhou-se na descarga da ferramenta que viera
na esquadrilha, assim como machinas, viveres e grande numero de
casas de ferro, em peças separadas enumeradas, para se poderem
armar.
Pela mesma epocha ia Barbicane cravando as primeiras bandeirolas de
alinhamento de um caminho de ferro de quinze milhas, destinado a
ligar Stone's-Hill com Tampa-Town.
São bem conhecidas as condições em que são construidos os caminhos
de ferro na America: rodeios a capricho, declives arrojados, obras
de arte e parapeitos põem-se de parte, collinas sobem-se de
escalada, valles saltam-se, e está feito um caminho de ferro que
corre ás cegas, sem se importar com linhas rectas; nem custa
grandes quantias nem grandes trabalhos; tem só um inconveniente,
completa liberdade de descarrilamentos e de saltos. O de Tampa-Town
a Stone's-Hill foi uma perfeita bagatella, que nem grande dinheiro
nem grande trabalho exigiu
para ficar prompto.
Quanto ao mais, Barbicane era a alma d'aquelle mundo que surgira á
sua voz. Era elle quem tudo animava, e a todos communicava a
propria vida, enthusiasmo e convicção; em toda a parte estava, como
se possuíra condão de ubiquidade, e sempre acompanhado de J.-T.
Maston, que desempenhava junto d'elle o papel de mosca zumbideira.
Com Barbicane, nem havia obstaculos, nem difficuldades, nem
hesitações; era tão mestre nos officios de mineiro, de pedreiro ou
de machinista como no de artilheiro; tinha sempre resposta prompta
para qualquer pergunta, e resolução para qualquer problema.
Sustentava correspondencia activa com o Gun-Club ou com a fabrica
de Goldspring, aguardando-lhe as ordens, no molhe de Hillisboro, o
Tampico, sempre com as fornalhas accesas e o vapor sob pressão, a
toda a hora do dia e da noite.
Saiu Barbicane no 1.º de novembro de Tampa-Town com um destacamento
de trabalhadores, e já no dia seguinte se erguia em volta de
Stone's-Hill uma cidade de casas mechanicas, que cercaram de
palissadas, e em poucos dias, em relação a movimento e actividade,
parecia uma das grandes cidades da União. A vida foi ali regulada
disciplinarmente, e deu-se começo aos trabalhos em perfeita
ordem.
A natureza do terreno fôra já reconhecida por via de sondagens
cuidadosamente praticadas, e pôde-se dar começo á excavação a 4 de
novembro.
N'aquelle dia convocou Barbicane para uma reunião todos os chefes
de officina, e disse-lhes:
"Meus amigos, é conhecido de vós todos o motivo por que vos reuni
n'esta região selvatica da Florida. Trata-se de fundir um canhão de
nove pés de diametro interior, com seis pés de espessura de parede,
e dezenove pés e meio no revestimento exterior de pedra;em summa, o que é necessario excavar, é, por consequencia, um
poço de diametro de sessenta pés e de novecentos pés de
profundidade. Mais. Esta obra momentosa ha de estar concluida
dentro de oito mezes; tendes portanto dois milhões quinhentos e
quarenta e tres mil e quatrocentos pés cubicos de terreno a
extrahir, em duzentos e cincoenta e cinco dias, isto
é, em numeros
redondos, dez mil pés cubicos de desaterro por dia. Esta obra que
nem difficuldade poderia dizer-se para mil operarios que
trabalhassem á sua vontade e com os movimentos perfeitamente
desembaraçados, ha de ser muito mais ardua no espaço relativamente
apertado em que tendes de trabalhar. Entretanto, já que tal
trabalho tem de fazer-se, feito ha de ser, e conto tanto com a
vossa habilidade, como com a vossa coragem."
Ás oito horas da manhã deu-se a primeira enxadada no terreno da
Florida, e desde aquelle instante nem um só momento esteve ocioso o
valente ferro nas mãos dos mineiros. Os operarios revezavam-se de
seis em seis horas.
A operação, aindaque collossal, não ia alem do limite das forças
humanas. Bem longe d'isso. Quantos trabalhos ha de mais real
difficuldade, e nos quaes é necessario combater frente a frente os
elementos, em que se tem obtido bom resultado! Restringindo-se a
obras analogas, bastará citar o Poço do padre Joseph, construido
perto do Cairo pelo sultão Saladin, e em tempos em que ainda não
havia machinas que centuplicassem a força humana, poço que alcança
até ao nivel do Nilo, a trezentos pés de profundeza! E aquell'outro
poço aberto em Coblentz pelo margrave João de Bade, que entra
seiscentos pés pela terra dentro! Pois bem! em summa, aqui o que
havia a fazer? Triplicar essa profundidade, mas em largura decupla,
circumstancia que aliás tornava mais facil a perfuração! Por estas
rasões não havia contramestre nem mesmo simples operario que
tivesse duvidas ácerca do bom exito da operação.
Houve uma importante decisão tomada pelo engenheiro Murchison, de
accordo com o presidente Barbicane, que permittiu ainda maior
rapidez no andamento dos trabalhos. Fôra estipulado n'um dos
artigos do contrato que a Columbiada havia de ser apertada por
arcos de ferro forjado e batido quente. Era luxo de precauções
inuteis, porque o colossal machinismo podia evidentemente dispensar
os taes anneis compressores. Desistiu-se portanto de tal clausula,
e d'ahi veiu grande economia de tempo, porque se tornou então
possivel empregar o novo systema de excavação, já agora adoptado na
construcção de todos os póços, e por meio do qual se vae fazendo a
obra de pedra e cal simultaneamente com a brocagem.
Graças a este processo extremamente simples, já não é necessario
aguentar asterras com estroncas; é a parede construida que as aguenta com
resistencia inabalavel, e que ao mesmo tempo vae descendo pelo
proprio peso.
Esta manobra não devia começar senão quando o alvião tivesse
chegado á parte solida do terreno.
A 4 de novembro, cincoenta operarios excavaram mesmo no centro do
recinto da estacada, isto é, na parte mais alta de Stone's-Hill,
uma abertura circular de sessenta pés de diametro.
A primeira camada que encontrou o alvião era uma especie de terra
vegetal preta, e tinha seis pollegadas de espessura. Seguiram-se
uns dois pés de areia fina, que se guardou com cuidado, porque
tinha de servir para a feitura do molde interno.
Depois da areia appareceu argilla branca, bastante compacta,
similhante aos marnes de Inglaterra, acamada na espessura de quatro
pés.
Faiscou por fim o ferro das picaretas de encontro á camada dura do
terreno, especie de rocha composta de conchas petrificadas, muito
secca, muito solida e ultima que até a final o ferro encontrou.
N'estas alturas tinha a abertura seis pés e meio de fundo, e deu-se
começo á obra de pedra e cal.
Construiu-se no fundo da excavação uma roda de madeira de carvalho,
especie de disco bem cavilhado e de solidez a toda a prova; era
furada no centro, e a abertura tinha diametro igual ao diametro
exterior da Columbiada. Em cima d'esta roda é que vieram assentar
as primeiras bases da obra de pedra e cal, cujas pedras estavam
ligadas com inflexivel tenacidade por cimento hydraulico.
Feito o revestimento interno, da circumferencia para o centro,
ficaram os operarios encerrados n'um poço de vinte e um pés de
largura.
Acabada esta parte da obra, volveram os mineiros á picareta e
alvião.
Começaram a atacar a rocha mesmo por baixo da roda, com o
cuidado de a ir sempre aguentando em tins extremamente
resistentes.
Sempre que o buraco alcançava mais dois pés, tiravam-se
successivamente os tins; descia a roda a pouco e pouco e em cima
d'ella o massiço annular de pedra e cal, na camada superior do qual
trabalhavam sem descanso os pedreiros, deixando regularmente
distribuidos respiradouros por onde haviam de saír os gazes durante
a operação da fundição.
Aquelle genero de trabalho exigia da parte dos operarios extrema
habilidade e constante attenção; mais de um foi gravemente e até
mortalmente ferido pelos estilhaços de pedra, mas nem por isso
affrouxou a actividade um só instante, quer de dia quer de noite:
de dia, á luz do sol que, mezes depois, irradiava noventa e nove
graus de calor por sobre aquellas calcinadas planuras; de
noite, ao clarão de jactos de luz electrica.
Oruido da picareta batendo na rocha viva, as detonações das
minas, o estridor das machinas, os turbilhões de fumo espalhados no
ar, envolviam então Stone's-Hill n'um circulo tal de terror, que
nem manadas de bufalos, nem destacamentos de seminolas se atreveram
a transpo-lo.
Entretanto iam proseguindo os trabalhos com toda a regularidade, e
os guindastes a vapor tornavam rapida a safa do aterro e entulho;
obstaculos inesperados poucos, e das difficuldades previstas todos
se foram saíndo com habilidade.
Decorrido o primeiro mez tinha o poço chegado á profundidade de
antemão calculada em proporção do praso, isto é, a cento e doze
pés.
Em dezembro era duplicada e em janeiro triplicada a altura. No
decurso do mez de fevereiro tiveram os trabalhadores que lutar com
um lençol de agua que surdiu através da crusta de terra. Foi
necessario recorrer a poderosas bombas e a apparelhos de ar
comprimido para estancar as aguas e poder assim betumar o orificio
das nascentes, como quem veda a abertura por onde um navio faz
agua. Por fim sempre conseguiram vencer-se as malditas
correntes.
No entretanto, em virtude da pouca consistencia do terreno, a roda
cedeu em parte e houve um desabamento parcial. Imagine-se qual
seria a espantosa impulsão d'aquelle disco de pedra e cal de
setenta e cinco toezas de altura! O accidente custou a vida de
alguns operarios.
Tiveram de se perder tres semanas a escorar e concertar o
revestimento de pedra e a tornar a pôr a roda nas condições de
solidez primitiva. Mas, graças á habilidade do engenheiro e á
potencia das machinas empregadas, volveu ao prumo a edificação, por
momentos em risco, e os trabalhos de perfuração continuaram.
Nenhum outro incidente interrompeu o andamento regular da obra, e a
10 de junho, vinte dias antes de expirarem os prasos fixados por
Barbicane, tinha o poço, completamente revestido do seu paramento
de pedras, attingido a altura de novecentos pés. No fundo assentava
a obra de pedra e cal n'um cubo massiço de trinta pés de espessura;
no limite superior vinha nivelar com o terreno.
Barbicane e os socios do Gun-Club felicitaram cordialmente o
engenheiro Murchison; aquelle trabalho de cyclopes fôra realmente
concluido em extraordinarias condições de brevidade.
No decurso dos oito mezes que levou a obra não deixára Barbicane um
só instante Stone's-Hill; seguindo sempre de perto as obras de
perfuração, não lhe dava menos constante cuidado o bem-estar e a
saude dos operarios. Tão feliz que conseguiu evitar as epidemias
que são vulgares nas grandes agglomerações de homens e tão fataes
em regiões, como aquella, expostas a todos os influxos do
tropico.
Verdade é que muito operario pagou com a vida asimprudencias inherentes a tão arriscados trabalhos; mas
desgraças d'essa ordem, aliás lamentaveis, não é possivel
evita-las, são pormenores com que pouco se preoccupam os
americanos. Mais cuidado lhes dá a humanidade em geral do que cada
individuo em particular. Barbicane, todavia, professava, por
excepção, doutrinas contrarias, a que em todas as occasiões dava
applicação. E por esta rasão, graças aos cuidados d'elle, á
intelligencia que demonstrou e á intervenção que tinha em todos os
casos difficeis, á prodigiosa e caritativa sagacidade que soube
desenvolver, a media das catastrophes não excedeu o que costuma
succeder nos paizes d'aquem mar, ainda nos que são citados pelo
luxo de precauções, em França, por exemplo, em que se conta, termo
medio, com um accidente por cada duzentos mil francos de obras.
No decurso dos oito mezes que levou a operação da perfuração,
tinham-se simultaneamente, e com grande rapidez, realisado os
trabalhos preparatorios da fundição; bem surprehendido ficaria
qualquer forasteiro, que por aquella occasião viesse a
Stone's-Hill, com o espectaculo que se lhe havia de apresentar
diante dos olhos.
Em disposição circular, em torno do poço como centro, e a
seiscentas jardas d'elle, erguiam-se mil e duzentos fornos de
reverberação, cada um de seis pés de largura, e separados uns dos
outros por um intervallo de meia toeza. A linha, que contornava os
mil e duzentos fornos, tinha duas milhas de comprimento. Eram
todos construidos pelo mesmo modelo, de chaminé alta e
quadrangular, e produziam effeito extremamente singular. J.-T.
Maston achava soberba aquella disposição architectonica, que lhe
trazia á lembrança os monumentos de Washington. Para esse é que não
havia nada mais bello, nem mesmo na Grecia, "onde aliás, segundo
elle proprio confessava, nunca tinha posto os pés".
Deve o leitor estar lembrado que, na terceira sessão da commissão,
se decidira que a Columbiada havia de ser de ferro fundido, e em
especial de ferro fundido gris.
E com rasão, porque o ferro em taes circumstancias tem maior
tenacidade e ductilidade e é mais macio, mais facil de polir e
apropriado para todas as operações de molde, e ainda porque,
tratado pelo carvão mineral, é de qualidade superior para todas as
obras de grande resistencia, taes como canhões, cylindros de
machinas a vapor, prensas hydraulicas, etc.
Mas raras vezes com uma só fusão se consegue obter ferro fundido
bastante homogeneo; na segunda fusão é que elle se refina e
purifica, abandonando os ultimos depositos terrosos.
Por este motivo, já o minerio de ferro, antes de ser expedido para
Tampa-Town, fôra transformado em carbonato, submettendo-o nos altos
fornos de Goldspring ao contacto com carvão e silicium levados a
uma elevada temperatura. Depois d'esta primeira operação éque o metal foi mandado para Stone's-Hill. Mas como se tratava
de cento e trinta e seis milhões de libras de ferro fundido, massa
cuja expedição pelos caminhos de ferro havia de ficar
excessivamente cara, só o preço do transporte vinha a dobrar o
preço do material. Pareceu portanto preferivel fretar navios em New
York e carrega-los de ferro fundido em barra; foram necessarias
nada menos de sessenta e oito embarcações de mil toneladas,
verdadeira esquadrilha, que a 3 de maio largou das paragens de New
York, tomou a via do oceano, prolongou-se com as costas da America,
embocou pelo canal de Bahama, dobrou a ponta da Florida e, entrando
a 10 do mesmo mez na bahia do Espirito Santo, veiu largar ferro,
sem avaria, no porto de Tampa-Town. Ahi se fez a descarga dos
navios para os wagons da via ferrea de Stone's-Hill, e pelo meado
de janeiro estava toda aquella enorme massa de metal no logar para
que fôra destinada.
Facilmente se concebe que não eram de mais mil e duzentos fornos
para liquefazer simultaneamente sessenta mil toneladas de ferro
fundido. Cada forno podia conter proximamente quatorze mil libras
de metal, e todos tinham sido construidos pelo modelo dos que
tinham servido para fundir o canhão Rodman, que eram de fórma
trapesoidal e muito baixos de tecto. A fornalha e a chaminé eram
nos extremos oppostos do forno, por fórma que em toda a extensão
d'elle havia a mesma temperatura. As paredes dos fornos eram
construidas de tijolo refractario, e encerravam apenas uma grelha
para fazer arder o carvão mineral e um crysol chato para collocar
as barras de ferro, inclinado por um angulo de vinte e cinco graus
para deixar escorrer o metal em fusão para as caldeiras destinadas
a recebe-lo; d'estas caldeiras conduziam-no mil e duzentas caleiras
convergentes para o poço central.
No dia seguinte áquelle em que finalisaram as obras de pedra e as
de
perfuração, fez Barbicane dar começo á construcção do molde
interno. O caso estava em erguer no centro do poço e na direcção do
eixo d'elle, um cylindro de novecentos pés de altura e nove de
largura, que enchesse exactamente o espaço reservado para a alma da
Columbiada. Foi este cylindro feito de areia e barro argilloso de
mistura com palha e feno. O intervallo que ficava entre o molde
interno e o revestimento de pedra e cal havia de preenche-lo o
metal fundido, que vinha assim a formar em torno do molde uma
parede de seis pés de espessura.
Para manter em equilibrio o cylindro, foi necessario reforça-lo com
gatos de ferro e aguenta-lo de distancia adistancia com espeques chumbados no revestimento interno de
pedra, o que não apresentava inconveniente algum, porque, depois da
fundição, haviam de ficar os espeques como que perdidos no grosso
da massa de metal.
Concluiu-se esta operação a 8 de julho, e fixou-se o dia seguinte
para a fundição.
"Que bella ceremonia ha de ser a da festa da fundição, disse J.-T.
Maston ao amigo Barbicane.
--De certo, respondeu Barbicane, mas festa publica é que não!
--Como assim! pois não haveis de mandar abrir as portas d'este
recinto a quem quer que venha?
--D'essa me livrarei eu, Maston; a fundição da Columbiada é
operação delicada, por não dizer perigosa, e prefiro realisa-la á
porta fechada. Quando o projectil largar, quantas festas quizerem,
até lá nada."
E o presidente tinha rasão; a operação podia apresentar perigos
imprevistos, a que uma grande affluencia de espectadores estorvaria
de occorrer. Era mister conservar inteira liberdade de movimentos.
Por consequencia a ninguem se deu entrada no recinto, excepto a uma
delegação dos socios do Gun-Club que, expressamente para assistir á
festa, fizera jornada até Tampa-Town. Figuravam n'ella, entre
outros, o fogoso Bilsby, Tom Hunter, coronel Blomsberry, major
Elphiston, general Morgan e tutti quanti, tomavam a fundição da
Columbiada como negocio seu pessoal. J.-T. Maston tinha-se feito
cicerone d'estes, e não lhes
perdoou nem o mais insignificante dos
pormenores; levou-os a toda a parte: aos armazens, ás officinas,
por entre as machinas, e até os obrigou a fazer visita aos mil e
duzentos fornos um por um. Quando chegaram a mil e duzentos já não
tinham alma para mais.
A fundição estava fixada para o meio dia em ponto, e já de vespera
ficára cada forno carregado com cento e quatorze mil libras de
metal em barras dispostas em pilhas encruzadas, para que o ar
quente podesse circular em liberdade por entre ellas. Desde pela
manhã que as mil e duzentas chaminés arrojavam para a atmosphera
torrentes de chammas, e que o solo era agitado por surdas
trepidações. Havia a queimar tantas libras de hulha, quantas eram
as libras de metal que se íam derreter. Eram portanto sessenta e
oito mil toneladas de carvão que arremessavam por diante do disco
solar um espesso véu de fumo negro.
Dentro em pouco tornou-se o calor intoleravel dentro do circulo dos
fornos, cujos roncos pareciam trovões; a tudo isto vinha juntar-se
o soprar continuo de potentes ventiladores que saturavam de
oxygenio todos aquelles focos incandescentes.
Dependia essencialmente o bom exito da operação da rapidez. A um
signal dado por um tiro de peça deviam todos os fornos
simultaneamente dar saída ao metal em fusão e vasarem-se
completamente.
Tomadas estas disposições, esperavam, tantoos chefes como os operarios, com impaciencia misturada de boa
dóse de emoção, o instante prefixado. Já não estava mais ninguem no
recinto, e todos os contra-mestres fundidores estavam a postos,
cada um junto a uma das aberturas por onde o ferro em fusão havia
de entrar no molde.
Barbicane e os collegas assistiam á operação situados n'uma
eminencia proxima. Diante d'elles estava uma peça de artilheria
prompta a dar fogo ao primeiro signal dado pelo engenheiro.
Alguns minutos antes do meio dia começaram a correr as primeiras
gotas de metal, encheram-se pouco e pouco as caldeiras, e quando o
metal chegou a completa liquefacção, deixaram-no assentar por
alguns instantes para facilitar a separação das substancias
estranhas.
Soou meio dia, e no mesmo instante ribombou o canhão arremessando
pelos ares o fulvo relampago. Abriram-se a um tempo as mil e
duzentas aberturas, e alastraram-se na direcção do poço central mil
e duzentas serpes de fogo, desenrolando-se em anneis
incandescentes. Ali foram precipitar-se com temeroso estrepito, na
profundidade de novecentos pés. O espectaculo era magnifico e para
impressionar. Tremia a terra, e aquelle mar de metal em fusão
arrojando ao céu turbilhões de fumo, ao mesmo tempo volatilisava a
humidade do molde e a expellia pelos respiradouros do revestimento
de pedra, sob a fórma de impenetraveis vapores. Desenrolavam-se
aquellas nuvens artificiaes em espiraes espessas e erguiam-se para
o zenith até quinhentas toezas de altura. Algum selvagem errante
para alem dos limites do horisonte podia crer que se estava
formando alguma nova cratéra nos seios da terra floridense, e
comtudo nem era aquillo erupção, nem tromba, nem tempestade, nem
luta de elementos, nem nenhum dos phenomenos terriveis que só a
natureza é capaz de produzir! Não! O homem é que tinha dado o ser
áquelles avermelhados vapores, áquellas chammas gigantescas e
dignas de qualquer vulcão, áquellas oscillações estrondosas
similhantes ao sacudir dos tremores de terra, áquelles mugidos
rivaes dos furacões e das tempestades, e a mão do homem é que
precipitára um Niagara inteiro de metal em fusão n'um abysmo tambem
por mãos humanas cavado.
E teria tido feliz resultado a operação da fundição? O caso só
podia apreciar-se por conjecturas. Entretanto tudo levava a crer
que o resultado fôra bom, visto como o molde absorvêra a massa
inteira do metal fundido nos fornos. Fosse lá como fosse, por muito
tempo havia de ser impossivel verificar a cousa directamente.
Effectivamente, quando o major Rodman fundiu o seu canhão de cento
e sessenta mil libras de peso, nada menos de quinze dias levou o
metal a arrefecer. Quanto tempo então haveria de furtar-se ás
vistas de seus
admiradores, coroada de turbilhões defumo e defendida pelo seu intenso calor, a Columbiada monstro?
Era cousa difficil calcula-lo.
Durante esse lapso de tempo passou por uma prova real a paciencia
dos socios do Gun-Club. Mas não havia outro remedio. J.-T. Maston
ia ficando assado por excesso de dedicação. Quinze dias depois da
fundição ainda se erguia para o céu immenso pennacho de fumo, e
ainda o chão queimava os pés n'um raio de duzentos passos em volta
do cume de Stone's-Hill.
Passaram-se dias e dias, decorreram semanas e semanas. Não havia
meio de arrefecer o immenso cylindro; era até impossivel
approximar-se d'elle. Era força esperar, e os socios do Gun-Club
mordiam-se de impacientes.
"Estamos já a 10 de agosto, disse uma bella manhã J.-T. Maston.
Temos apenas quatro mezes d'aqui até 1 de dezembro! Sacar o molde
interno, calibrar a alma da peça, carregar a Columbiada, tudo está
por fazer! Nada, já não temos tempo para nos apromptar! Nem ainda a
gente se póde approximar do canhão! Pois elle nunca ha de acabar de
arrefecer. Isso é que era uma caçoada cruel!
Tentavam todos, mas debalde, moderar o impaciente secretario; só
Barbicane não dizia palavra, mas o silencio d'este occultava surda
irritação. Ver-se absolutamente detido por um obstaculo que só o
tempo podia vencer, e então o tempo, que é implacavel inimigo em
taes circumstancias, e estar á discrição do inimigo, que era tão
duro para aquella gente bellicosa.
Entretanto as observações quotidianas denunciavam certa mudança no
estado do solo.
Por volta de 15 de agosto tinham diminuido notavelmente em
intensidade e espessura os vapores projectados para o céu. Dias
depois já o terreno exhalava apenas ligeira fumaça, ultimo alento
do monstro encerrado no seu tumulo de pedra.
Pouco e pouco vieram a diminuir as oscillações do solo, e o circulo
de calorico estreitou-se; approximaram-se os espectadores mais
impacientes; n'um dia conseguiram avançar duas toezas, no seguinte
quatro, e, a 23 de agosto Barbicane, os collegas e o engenheiro,
poderam finalmente tomar logar mesmo em cima do jacto solidificado
de ferro fundido que nivelava com o vertice de Stone's-Hill, logar
seguramente muito hygienico, porque não era possivel ter lá os pés
frios.
"Até que emfim!" exclamou o presidente do Gun-Club, soltando
immenso suspiro de satisfação.
Recomeçaram os trabalhos no mesmo dia.
Tratou-se immediatamente de extrahir o molde interno para
desembaraçar a alma da peça; alvião, picareta e ferramenta de
brocar, tudo trabalhou sem descanso; o barro argilloso e a areia
tinham adquirido extrema consistencia sob a acção do calor; mas com
auxilio de machinas, conseguiu-se vencer aquelle mixto ainda
inflammado pelo contacto das paredes de ferro fundido; o material
extrahido safaram-n'o com rapidez carros movidos a vapor, etanto fizeram, tanto ardor houve no trabalho, Barbicane apertou
tanto com os trabalhadores, e tão fortes argumentos empregou, sob
fórma de dollars, que, a 3 de setembro, tinha desapparecido o
ultimo vestigio de molde.
Começou desde logo a operação da calibragem; installaram-se sem
demora os machinismos adequados que faziam mover com rapidez
potentes brocas de polir, cujo gume cortante mordia nas rugosidades
do ferro fundido. Poucas semanas depois estava exactamente
cylindrica a superficie interna do tubo, e a alma da peça
perfeitamente polida.
Finalmente, no dia 22 de setembro, menos de um anno depois da
communicação Barbicane, o enorme machinismo, rigorosamente
calibrado, n'uma exactissima posição vertical verificada por via de
instrumentos delicados, ficou prompto para funccionar. Faltava só
esperar pela Lua, mas essa certo era que não havia de falhar ao
ajustado encontro.
A alegria de J.-T. Maston não tinha limites; esteve até por pouco a
dar uma horrorosa quéda, quando intentava penetrar com a vista a
profundidade do tubo de novecentos pés. Se não lhe acudíra
Blomsberry
com o braço direito, que o digno coronel por fortuna
conservára, o secretario do Gun-Club teria, qual novo Erostrato,
encontrado a morte nas profundezas da Columbiada.
Estava pois terminado o canhão; nem já era permittido ter duvidas
ácerca de sua perfeita execução; n'estes termos, a 6 de outubro, o
capitão Nicholl, com vontade ou sem ella, desempenhou-se para com o
presidente Barbicane, e este inscreveu no seu livro de contas e na
columna das receitas, a quantia de dois mil dollars.
Devemos suppor que a furia do capitão chegou ao ultimo extremo. No
entretanto havia ainda ajustadas mais tres apostas de tres, quatro
e cinco mil dollars, e comtantoque o capitão ganhasse duas fazia
negocio, que sem ser já excellente, ainda não era de todo mau.
Porém o dinheiro nem sequer lhe entrava nos calculos; o bom exito
obtido pelo rival que conseguira fundir um canhão, a que nem chapas
de dez toezas de espessura poderiam resistir, é que fôra para
Nicholl terrivel golpe.
Desde 23 de setembro que se tornára francamente accessivel ao
publico o recinto de Stone's-Hill. Qual foi a affluencia de
vizitantes facilmente se comprehenderá. E na realidade, convergia
de todos os pontos dos Estados Unidos para a Florida uma quantidade
de curiosos sem conta. A cidade de Tampa tinha augmentado
prodigiosamente no decurso d'aquelle anno inteiramente consagrado
ás obras do Gun-Club, e contava então cento e cincoenta mil almas.
A cidade que começára por entrelaçar o forte Brooke n'uma rede de
ruas, estendia-se agora por sobre a lingueta de terra que separa os
dois molhes da bahia doEspirito Santo; bairros novos, novas praças, uma floresta
inteira de casas tinham como que brotado d'aquellas praias ainda ha
pouco desertas, pela intensidade do calor do sol americano.
Organisaram-se companhias para construir igrejas, escolas e
habitações particulares, e em menos de um anno estava a cidade dez
vezes maior.
É bem sabido que o yankee nasce commerciante; para onde quer que o
arremesse o destino, da zona gelida á zona torrida, hão de
exercer-se-lhe com utilidade os instinctos de negocio. Por esta
rasão os simples curiosos, a gente que viera á Florida com o unico
fito de seguir as operações do Gun-Club, deixou-se arrastar para
operações commerciaes logoque se achou installada em Tampa. Os
navios fretados para
transportar o material e os operarios tambem
tinham trazido ao porto um grau de actividade sem igual, e dentro
em pouco muitos outros navios de todas as fórmas e tonelagens
sulcaram a bahia e os dois molhes; estabeleceram-se vastos
estabelecimentos de armador e escriptorios de corretor de navios, e
a Shipping-Gazete registava todos os dias novas embarcações
entradas no porto de Tampa.
Ao passo que se iam multiplicando as estradas em torno da cidade,
mereceu esta a final ser ligada por via ferrea aos Estados
meridionaes da União, em consideração ao prodigioso augmento que se
realisára na sua população e commercio. Assentou-se um railway
entre a Mabile e Pensacola, o maior arsenal maritimo do sul; e em
seguida d'este ponto importante para Tallahassee.
D'ali já estava construido um pequeno ramal de via ferrea de vinte
e uma milhas de comprimento, que punha em communicação Tallahassee
com Saint-Marks, localidade do littoral. Foi este ramal que se
prolongou até Tampa-Town, e que na passagem veiu despertar ou dar
vida ás regiões adormecidas ou mortas da Florida. Tampa, graças
áquelles milagres da industria, devidos á idéa que um bello dia
despontára n'um cerebro humano, póde assumir com legitimo
fundamento ares de grande cidade. Cognominaram-na Moon-City. A
capital das Floridas é que soffreu ecclypse total e visivel de
todos os logares do globo.
Toda a gente comprehenderá agora por que fôra tão grande a
rivalidade entre Texas e Florida, e a irritação dos texianos quando
viram indeferidas as pretenções que tinham á preferencia do
Gun-Club.
Com previdente sagacidade tinham os do Texas comprehendido quanto
qualquer paiz haveria de ganhar com a experiencia tentada por
Barbicane, e de que somma de beneficios havia de vir acompanhado um
tal tiro de canhão. Perdia o Texas com a decisão que o
desfavorecêra um importante centro de commercio, varios caminhos de
ferro e um augmento consideravel de população. Estas vantagens
todas iam parar áquella miseravel peninsula floridense, arremessada
qual outro marachão entreas ondas do golpho e as vagas do oceano atlantico. Por isso
Barbicane partilhava com o general Sant'Anna todas as antipathias
dos texianos. Entretanto, apesar de entregue ao furor do commercio
e ao ardor da industria, a população nova de Tampa-Town não
esqueceu
por fórma alguma as interessantes operações do Gun-Club.
Pelo contrario. Tomavam todos calor e paixão pelos pormenores mais
infimos da obra, pela mais insignificante enxadada. Era um
constante vae-vem entre a cidade e Stone's-Hill, uma procissão, ou
para melhor dizer, uma romaria.
Já podia prever-se que, no dia da experiencia, a agglomeração de
espectadores havia de contar-se por milhões, porque já elles de
todos os pontos da Terra iam chegando e accumulando-se na estreita
peninsula.
Emigrava a Europa para a America. Mas, até áquelle ponto, força é
dize-lo, pouca e mediocre satisfação tivera a curiosidade dos que,
em grande numero, íam chegando. Muita gente esperava assistir ao
espectaculo da fundição e só lhe viu o fumo. Era pouco para olhos
tão avidos, mas Barbicane não quiz admittir pessoa alguma a
presenciar a operação. Em consequencia não faltou quem praguejasse,
murmurasse ou por qualquer outra fórma mostrasse descontentamento;
censuravam o presidente; accusavam-n'o de absolutismo; declaravam
finalmente que o procedimento d'elle era "pouco americano".
Ía havendo sedição em volta das palissadas de Stone's-Hill.
Barbicane, já se sabe, conservou-se inabalavel na resolução que
tomára.
Mas desde o momento em que se deu por inteiramente acabada a
Columbiada, é que não foi possivel conservar por mais tempo porta
fechada; e tambem fechar as portas em tal caso, seria prova de má
vontade, ou o que é ainda cousa peior, imprudencia que iria tornar
hostil á empreza o sentimento publico.
Barbicane mandou portanto abrir as portas do recinto a toda a
gente; entretanto inspirado pelo seu espirito pratico, resolveu
fazer dinheiro com a curiosidade publica.
Já não era pouco contemplar a immensa Columbiada, porém descer-lhe
ás profundezas, isso é que se afigurava aos Americanos ser o non
plus ultra das felicidades d'este mundo. Nem um só curioso por
consequencia deixou de querer experimentar o goso de visitar o
interior d'aquelle abysmo de metal. Os espectadores podiam
satisfazer a sua curiosidade
por meio de apparelhos suspensos de um
sarilho a vapor. A cousa fez furor. Mulheres, creanças, velhos,
todos tomaram como obrigação penetrar até ao fundo da alma nos
mysterios do colossal canhão. Fixou-se o preço da descida em cinco
dollars por cabeça. E apesar de ser preço alto, tal foi a
affluencia de visitantes, que metteu nas burras do Gun-Club, no
decurso dos dois mezes que antecederam a experiencia, perto de dois
milhões e quinhentos mil dollars.
Escusado é dizer que os primeiros visitantes da Columbiadaforam os socios do Gun-Club, vantagem esta justamente reservada
para aquella illustre assembléa. Realisou-se esta visita solemne no
dia 25 de setembro. Desceu então uma caixa de honra com o
presidente Barbicane, J.-T. Maston, major Elphiston, general
Morgan, coronel Blomsberry, engenheiro Murchison e outros socios de
distincção do celebre Club. Ao todo seriam uns dez. Fazia ainda um
calor menos mau no fundo do comprido tubo de metal!
Mal se podia respirar! Mas que alegria! que contentamento! Estava
mesa posta para dez convivas em cima do massiço que aguentava a
Columbiada, e o interior d'esta illuminado a giorno, por um jacto
de luz electrica. Numerosas e delicadas iguarias, que pareciam
descer do céu, vieram successivamente collocar-se em frente dos
convivas, e correram com profusão os mais finos vinhos de França
durante o esplendido banquete servido a novecentos pés debaixo da
terra.
O festim correu extremamente animado e até extremamente ruidoso;
cruzavam-se numerosos os toasts; bebeu-se em honra do globo
terrestre, do seu satellite, do Gun-Club, da União, da Lua, de
Phoebea, de Diana, de Seléne, do astro das noites, e finalmente "do
pacifico correio feminino do firmamento!"
Tantos foram os hurrahs, repercutidos em ondas sonoras dentro
d'aquelle immenso tubo acustico que chegaram á extremidade d'elle
qual trovão, e a multidão acampada em torno de Stone's Hill,
unia-se pelo coração e pelos gritos aos dez convivas soterrados no
fundo da gigantesca Columbiada.
J.-T. Maston nem já podia ter mão em si; e é ponto difficil de
averiguar o que é que elle fez em maior escala, se gritar e
gesticular, se beber e
comer. Em todo o caso, o que elle não
largava era o logar, nem a troco de um imperio. "Não, aindaque o
canhão estivera carregado, escorvado, prompto a dar fogo por
instantes, e a arremessa-lo feito em estilhas aos espaços
planetarios".
Estavam, póde assim dizer-se, concluidas as grandes obras
emprehendidas pelo Gun-Club, e no entretanto ainda tinham de
decorrer dois mezes antes de chegar o dia em que o projectil havia
de largar vôo para a Lua. Dois mezes, que á impaciencia universal
haviam de parecer dois annos! Até então tinham tido reproducção na
imprensa diaria até os mais infimos pormenores da operação, e os
jornaes eram devorados com olhos avidos e ardentes; mas era de
temer que d'ora ávante aquelle "dividendo de noticias
interessantes", distribuido até então ao publico, diminuisse
notavelmente; e todos se assustavam com a idéa de não terem já de
receber a respectiva quota de emoções quotidianas. Pois nada d'isto
succedeu; um incidente, o mais extraordinario, o mais incrivel, o
mais inverosimil dos incidentes, veiu de subito fanatisar os
espiritos anhelantes, e lançar novamenteo mundo inteiro sob a influencia de uma sobrexcitação
pungente.
Certo dia, 30 de setembro, ás tres horas e quarenta e sete minutos
da tarde, chegou com direcção ao presidente Barbicane um telegramma
transmittido pelo cabo submarino immerso entre Valentia(na
Irlanda), Terra Nova e a costa americana.
O presidente Barbicane rasgou o sobrescripto, leu o despacho, e,
apesar da faculdade que tinha em alto grau de dominar-se,
empallideceram-lhe os labios, e turvou-se-lhe a vista com a leitura
das vinte palavras do telegramma.
Eis o texto do tal despacho, que na actualidade figura entre os
documentos do archivo do Gun-Club:
"França, Paris, 30 de setembro, ás quatro horas da
manhã--Barbicane, Tampa, Florida, Estados Unidos.--Substituir obuz
espherico por projectil cylindro-conico. Partirei dentro. Chego
pelo vapor Atlanta.--Miguel Ardan."
Se aquella nova fulminante, em vez de ter voado pelo fio electrico,
tivera chegado simplesmente pelo correio, fechada e lacrada; se os
empregados telegraphicos da França, da Irlanda, da Terra Nova e da
America não estivessem, por necessidade de officio, no segredo do
telegrapho, certamente Barbicane nem por um instante teria
hesitado. Calava-se não só por prudencia, mas para não desacreditar
a propria obra.
Era bem possivel que sob a fórma de telegramma ali se, encobrisse
uma caçoada, demais a mais vindo o telegramma de um francez. Por
ventura era de crer que houvesse homem bastantemente ousado para
conceber sequer o pensamento de uma viagem tal? E, ainda no caso de
existir tal homem, não seria porventura um louco, mais no caso de
se encerrar n'uma gaiola do que n'uma bala?
Porém o texto do telegramma era de certo já conhecido, porque os
apparelhos de transmissão electrica são por sua propria natureza
pouco discretos, e a proposta de Miguel Ardan corria já seguramente
pelos differentes estados da União. Consequentemente Barbicane não
tinha motivo algum para se calar; portanto reuniu os collegas que
estavam em Tampa-Town, e sem dar mostra do que lhe ía no
pensamento, sem discutir o maior ou menor credito de que o
telegramma era merecedor, leu-lhes friamente o laconico texto.
"É impossivel! Inverosimil! Pura chalaça! Mangaram comnosco!
Ridiculo! Absurdo!" Em poucos minutos ouviu-se ali uma collecção
completa de
todas as expressões que servem para exprimir duvida,
incredulidade ou qualificar a tolice e a loucura, e com
acompanhamento de gestos usuaes em taes casos. Todos sorriam, riam,
encolhiam os hombros ou desatavam ás gargalhadas, cada um segundo a
respectiva disposição e genio. J.-T. Maston foi o unico que teve
uma saída soberba:
"E não é má idéa, não!"
--É verdade, respondeu o major; mas se é permittido ter de vez em
quando idéas d'essas, é só com a condição de nem por sonhos pensar
em leva-las áexecução.
--E porque não? replicou com vivacidade o secretario do Gun-Glub,
já prompto para discutir. Mas não quizeram pica-lo mais.
Entretanto já o nome de Miguel Ardan corria de bôca em bôca pela
cidade de Tampa. Forasteiros e indigenas olhavam-se,
interrogavam-se e mofavam, não do europeu, especie de mytho ou
individualidade chimerica, mas de J.-T Maston, que tinha chegado a
acreditar na existencia de tal personagem lendario. Quando
Barbicane propozera arremessar um projectil á Lua todos acharam o
emprehendimento natural, praticavel, pura questão de balistica! Mas
offerecer-se um ente racional para tomar passagem dentro do
projectil e tentar aquella viagem inverosimil, isso lá era proposta
de phantasia, zombaria, caçoada, ou, querendo usar de um termo que
tem traducção exacta e precisa na linguagem familiar franceza,
humbug!
Até á noite sem interrupção durou a risota, podendo até affirmar-se
que a União inteira desatou a um tempo n'uma casquinada de riso
inextinguivel, o que aliás não está lá muito nos habitos de um paiz
em que até as emprezas mais claramente impossiveis encontram com
facilidade panegyristas, adeptos e partidarios. Todavia a proposta
de Miguel Ardan, como succede a toda a idéa nova, não deixou de dar
que fazer a certos espiritos. A cousa sempre vinha alterar o curso
das emoções habituaes. "Ninguem pensára em tal!" E o incidente por
sua mesma estranheza em breve se tornou como que em pesadelo geral.
Caso é que já n'elle pensavam. Quantas cousas se negam na vespera,
e que o dia seguinte vem transformar em realidades! E porque é que
tal viagem se não havia de vir a fazer mais tarde ou mais cedo? Em
todo o
caso, o homem que assim queria arriscar a pelle era
forçosamente doido, e decididamente já que o projecto que sonhára
não podia ser tomado a serio, melhor era ter-se calado, do que vir
inquietar um povo inteiro com tão ridiculos devaneios.
Mas, e antes de tudo; acaso tal personagem existia realmente? Magna
questão! Aquelle nome de "Miguel Ardan" já não era inteiramente
desconhecido na America! Senão que pertencia a um europeu muito
citado por seus ousados emprehendimentos. De mais a mais aquelle
telegramma enviado atravez das profundezas do Atlantico, aquella
indicação positiva do navio em que o francez dizia ter já tomado
passagem, e a da data proxima em que havia de chegar, tudo eram
circumstancias que davam á proposta certo caracter de
verosimilhança. O que todos desejavam era uma solução clara e
positiva que lhes socegasse o espirito. Pouco a pouco reuniram-se
em grupos os individuos isolados; os grupos foram-se condensando
por influencia da curiosidade, como os atomos se aggregam em
virtude da attracção mollecular, e afinal vieram a transformar-se em multidão compacta, que tomou em
direitura á morada do presidente Barbicane.
Este, desde que chegára o telegramma, não dera por fórma alguma a
conhecer o que d'elle pensava; deixára correr a opinião de J.-T.
Maston, sem manifestar approvação nem censura; estava mettido ao
canto, e na idéa de esperar pelos acontecimentos, mas com que elle
não contava era com a impaciencia publica; por isso viu com olhos
de pouca satisfação accumular-se-lhe debaixo das janellas a
população de Tampa. Em breve o forçaram a mostrar-se ao publico,
mil murmurios e vociferações. É de ver que o presidente tinha todos
os deveres e portanto todos os incommodos attributos da
celebridade.
Logo que Barbicane appareceu reinou silencio na multidão e um
cidadão que tomou a palavra dirigiu-lhe, sem mais rodeios, a
seguinte pergunta: "O personagem designado no telegramma pelo nome
de Miguel Ardan, seguiu ou não viagem para a America?
--Meus senhores, respondeu Barbicane, tanto o sei eu como vós
outros.
--Pois é necessario sabe-lo, exclamaram algumas vozes
impacientes.
--O tempo é que nos ha de desenganar, respondeu friamente o
presidente.
--Ao tempo não assiste direito para conservar um paiz inteiro em
suspensão, replicou o orador. E os planos do projectil já se
mandaram modificar, como se pede no telegramma?
--Ainda não, meus senhores; mas, todos têem muita rasão, é
necessario desenganarmo-n'os; o telegrapho foi que causoutodas
estas emoções, pois seja o telegrapho quem complete as noticias que
trouxe.
--"Ao telegrapho! ao telegrapho!" bradou a multidão.
Barbicane desceu de casa, e tomando á frente d'aquelle immenso
ajuntamento dirigiu-se para a repartição da administração dos
telegraphos.
Poucos minutos depois enviava-se um telegramma ao syndico dos
corretores de navios de Liverpool em que se lhe pedia resposta ás
seguintes perguntas:
"Que especie de navio é o Atlanta?
"Quando é que largou esse navio da Europa?
"Estaria a bordo um francez chamado Miguel Ardan?"
Duas horas depois recebia Barbicane esclarecimentos por tal fórma
precisos, que nem deixavam logar á menor duvida.
"O paquete o Atlanta, de Liverpool, fez-se ao mar no dia 2 de
outubro, fazendo-se de véla para Tampa-Town; a bordo ia um francez,
inscripto no livro dos passageiros com o nome de Miguel Ardan."
Quando o presidente viu assim confirmado o conteúdo do primeiro
telegramma, brilharam-lhe os olhos em subita chamma,
cerraram-se-lhe violentamente os punhos, e houve até quem o ouvisse
murmurar:
Então, sempre é verdade! sempre é possivel! existe esse francez! e
dentro em quinze dias ha de estar aqui! Mas é, por certo, um louco!
um cerebro escandecido!... Nunca consentirei..."
E apesar d'isso, n'aquella mesma noite já escrevia á casa Breadwill
e C.a, para lhe pedir que suspendesse até nova ordem afundição do projectil.
Relatar a emoção que se apossou da America inteira; como o effeito
da communicação Barbicane foi excedido no decuplo; o que disseram
os jornaes da União, por que modo acceitaram a nova e em que rythmo
contaram a chegada do heroe do velho continente; pintar a febril
agitação, em que todos viviam contando as horas, os minutos e os
segundos; dar idéa mesmo longiqua, da pesada obsessão que se
apoderou de todos os cerebros dominados por um pensamento unico;
mostrar como todas as occupações cederam a uma unica preoccupação;
os trabalhos parados, o commercio suspenso, navios que estavam
promptos a levantar ferro a ficarem ancorados no porto para não
faltarem á chegada do Atlanta, os comboios a chegarem cheios e a
saírem vasios, a bahia do Espirito Santo sulcada sem cessar por
steamers, packets-boats, hiates de recreio e fly-boats de todas as
dimensões; enumerar os milhares de curiosos que no espaço de quinze
dias quadruplicaram a população de Tampa-Town, a ponto de terem de
acampar em barracas como um exercito em campanha, é tarefa que
excede as forças humanas, e que sem temeridade ninguem poderia
emprehender.
No dia 20 de outubro, pelas nove horas da manhã, dava o telegrapho
semaphorico do canal de Bahama noticia de fumo espesso no
horisonte. Duas horas depois um grande steamer trocava com o
telegrapho signaes de reconhecimento. Immediatamente foi expedido
para Tampa-Town o nome do Atlanta. Ás quatro horas dava o navio
inglez entrada na bahia do Espirito Santo. Ás cinco passava a barra
de Hillisboro a todo o vapor. Ás seis largava ferro no porto de
Tampa.
Ainda a ancora não tinha mordido no fundo de areia, já quinhentas
embarcações estavam em volta do Atlanta, e tomavam o steamer de
assalto. Barbicane foi o primeiro que saltou ao convez, e que em
voz de que debalde tentára occultar a commoção exclamou:
"Miguel Ardan!--Presente!" respondeu um individuo que estava no
castello de popa.
Barbicane, cruzados os braços, com o olhar interrogador e a bôca
silenciosa, olhou fito para o passageiro do Atlanta.
Era este homem de quarenta e dois annos, alto, mas já um tanto
curvado, como os cariatides que aguentam nos hombros as sacadas dos
balcões. A cabeça volumosa, verdadeira cabeça de leão, sacudia a
cada instante a cabelleira ardente que a adornava como verdadeira
juba. A cara curta, larga nas fontes, enfeitada por um bigode
hirsuto como as barbas de um gato, e com pincelinhos de pellos
amarellados que irrompiam mesmo do meio das faces, os olhos
redondos e um tanto desvairados, o olhar de myope, completavam-lhe
a physionomia eminentemente felina. Mas o nariz era ousadamente
modelado, a bôca particularmente humana,a fronte alta, intelligente e sulcada qual campo que nunca
esteve de pousio. Finalmente o tronco robustamente desenvolvido e
assente a prumo em cima de compridas pernas, os braços musculosos
como possantes e bem articuladas alavancas, faziam do europeu um
maganão de solida construcção, "feito na forja, que não no
cadinho", como diria quem quizesse ir buscar á arte metallurgica
termos de comparação.
Qualquer discipulo de Lavater ou de Gratiolet encontraria sem
difficuldade no craneo e na physionomia do personagem os indicios
mais indiscutiveis da combatividade, isto é, da coragem na occasião
do perigo, e da tendencia para despedaçar todos os obstaculos; como
tambem os da benevolencia e da maravilhosidade, instincto que
incita certos temperamentos a tomarem-se de paixão pelas cousas
sobrehumanas; em compensação era absoluta a carencia das bossas que
indicam os instinctos de posse e acquisição, que os phrenologos
designam pela palavra adquisividade.
Para dar o ultimo toque na descripção do typo physico do passageiro
do Atlanta, convem notar que o fato que usava era largo de fórmas e
folgado de cavas. A calça e o paletot eram feitos com tal
abundancia de fazenda, que o proprio Miguel Ardan chamava a si
mesmo o mata-panno; a gravata desapertada, o colleirinho aberto com
largueza, deixavam ver o pescoço robusto; dos punhos
invariavelmente
desabotoados saiam-lhe as mãos febris. Bem se via
que era homem que, nem na maior força do inverno, nem na maior
força do perigo, havia de ter frio, nem mesmo na raiz do
cabello.
Nunca estava quieto, no tombadilho do steamer, no meio da multidão,
de cá para lá, sem nunca parar "navegando sobre as amarras", como
dizia a maruja; sempre a gesticular, tratando todos por tu e roendo
as unhas com nervosa avidez. Era um d'aquelles typos originaes que
o Creador inventa n'um momento de phantasia, quebrando-lhe desde
logo o molde.
E na realidade, a personalidade de Miguel Ardan dava campo largo ás
observações do analysta. Aquelle homem espantoso vivia em perpetua
disposição para a hyperbole, não passára ainda alem da idade dos
superlativos; desenhavam-se-lhe os objectos na retina com dimensões
desmarcadas, e d'ahi lhe vinha uma associação de idéas gigantescas;
via tudo em ponto grande, excepto os homens e as difficuldades. E
comtudo isto era de uma natureza luxuriante, artista por instincto,
moço de espirito, que sem dar descargas de ditos chistosos, sabia
entretanto na conversação esgrimir como o mais habil atirador. Nas
discussões, pouca importancia lhe merecia a logica. Rebelde ao
syllogismo, que por certo nunca teria inventado, tinha um modo de
argumentar só proprio d'elle.
Passando por cima de tudo e de todos, atirava em cheio ao
adversario uns argumentos ad hominem de effeito certeiroe seguro, e fazia gosto em defender com unhas e dentes as causas
perdidas.
Entre outras manias tinha a de se proclamar "um ignorante sublime",
como Shakspeare, e fazia profissão do desprezo pelos sabios:
"Elles, dizia, entretem-se a marcar os pontos, e nós cá é que
jogâmos a partida".
Em summa, era um bohemio do paiz dos montes e das maravilhas,
aventuroso, mas não aventureiro, uma cabeça ôca, um Phaetonte que
guiava a toda a brida o carro do Sol, um Icaro com azas de
sobresallente. E era homem que sabia arriscar e arriscar a serio a
propria pessoa, que se arrojava de cabeça levantada ás mais loucas
emprezas, cortando a si proprio a retirada com mais enthusiasmo
ainda
do que Agathócles quando incendiou a esquadra que commandava.
Prompto a toda a hora a arriscar a pelle, tinha por sorte
invariavel, por maior que fosse a cambalhota, caír sempre de pé
como os bonequitos de sabugo com que brincam as creanças.
Em duas palavras, tinha por divisa: dê por onde der! e por ruling
passion, segundo a bella expressão de Pope, o amor pelo
impossivel.
Mas tambem era para ver-se como aquelle maganão emprehendedor
possuia os defeitos inherentes ás suas boas qualidades. Diz o
vulgo, que quem se não aventurou não perdeu nem ganhou.
Miguel Ardan bastas vezes se tinha aventurado, e nem por isso tinha
ganho!
Para dar cabo de dinheiro era um verdugo, um tonel das Danaïdes.
Homem aliás perfeitamente desinteressado, tantas eram as asneiras
que lhe dictava o grande coração, como as que lhe insinuava a
estouvada cabeça; esmoler, cavalheiroso, incapaz de assignar o
"enforque-se" do seu mais cruel inimigo, mas muito capaz de se
vender para resgatar um negro.
Em França, na Europa, toda a gente conhecia este personagem
brilhante e estrepitoso. Nem era para admirar que assim succedesse
a quem trazia já enrouquecidos de servi-lo e apregoar-lhe o nome as
cem vozes da fama, a quem vivia como que dentro de uma casa de
vidro, e tomava por confidente dos seus mais intimos segredos o
universo inteiro. Por estas mesmas rasões tambem Ardan possuia uma
admiravel collecção de inimigos, de entre aquelles que elle,
acotovelando para abrir caminho por entre a multidão, mais ou menos
maguára, ferira ou derrubára sem dó nem piedade.
E no entretanto era geralmente bemquisto e até tratado com
excessivo mimo. Era d'aquelles homens a quem póde applicar-se a
expressão popular "é pegar ou largar", e o caso é que todos lhe
pegavam, todos tomavam interesse nos arrojados commettimentos
d'elle, e lhe seguiam com inquietação as peripecias porque já era
de todos conhecida a imprudente audacia que o caracterisava. A
algum amigo,que no intuito de lhe suspender os designios, vinha
prophetisar-lhe catastrophe
imminente, respondia sempre Ardan com
amavel sorriso: "Da lenha das proprias arvores nasce e lavra o
incendio da floresta". Quem lhe diria a elle que citava então o
mais bonito de todos os proverbios arabes!
Tal era o passageiro do Atlanta, sempre em agitação, sempre a
ferver, sempre debaixo da acção de um fogo interior, sempre
commovido, não pelo que vinha fazer á America, que nem em tal
cogitava, mas por virtude da ardente organisação de que era
dotado.
Nunca houve duas personalidades que apresentassem contraste mais
saliente que o francez Miguel Ardan e o yankee Barbicane; todavia
ambos, cada um lá a seu modo, eram emprehendedores, atrevidos e
audaciosos.
Em breve foi interrompida pelos hurrahs e vivas da multidão a
contemplação a que se entregára o presidente do Gun-Club em
presença do rival que viera desterra-lo da posição principal para o
segundo logar. E tão phrenetica se tornou a gritaria, tornaram-se
por tal fórma pessoaes as manifestações do enthusiasmo, que Miguel
Ardan, depois de ter apertado um milheiro de mãos, em que ia
deixando os dez dedos das d'elle, teve que se refugiar no
camarim.
Barbicane seguiu-o sem lhe ter dito nem palavra.
"Sois Barbicane? perguntou Miguel Ardan logoque se acharam a sós, e
com a intonação de quem fallava a um amigo de vinte annos.
--Sou, respondeu o presidente do Gun-Club.
--Pois então muito bons dias, Barbicane. Como vae isso?
Excellentemente? Ora vamos; bom é que assim seja: tanto melhor!
--Com que, disse Barbicane, sem buscar melhor entrada em materia,
sempre estaes decidido a partir?
--Absolutamente decidido.
--E nada poderá impedir-vo-lo?
--Cousa alguma. E os planos do projectil mandaste-los modificar em
harmonia com as indicações do meu telegramma?
--Estava á espera da vossa chegada. Mas, perguntou Barbicane,
insistindo novamente, reflectistes bem?...
--Reflectir! E que tempo tenho eu para o estar a perder!? Apanho
occasião de ir dar um passeio até á Lua, e aproveito-a, nada mais.
Nem me parece que seja cousa que mereça maiores reflexões."
Barbicane devorava com o olhar aquelle homem que fallava de tal
projecto de viagem com tanta leviandade, tão completo socego e tão
perfeita ausencia de cuidados.
--"Mas pelo menos, disse, haveis de ter plano formado, meios de
execução.
--Excellentes, meu caro Barbicane. Mas dae-me licença que faça uma
só observação: o que eu gostava era de contar a minha historia toda
de uma vez só e a toda a gente, e não tratar mais do assumpto.
Evitam-se assim as repetições. Consequentemente, salvo melhor
conselho, convocae os vossos amigos, vossos collegas, toda a
cidade, a Florida inteira, a America em peso, se vos parecer, e
ámanhã estou prompto paraexpor os meus meios como para responder a todas as objecções,
sejam lá quaes forem. Descansae que hei de espera-las a pé firme.
Convem-vos isto?
"Convem-me", respondeu Barbicane.
Accordado isto, saiu o presidente do camarim e veiu communicar á
multidão a proposta de Miguel Ardan.
Receberam-lhe as palavras com pateadas e grunhidos de alegria. A
cousa assim feita obviava a todas as difficuldades. No dia seguinte
todos poderiam contemplar á vontade o heroe europeu. Entretanto um
ou outro espectador houve mais cabeçudo que não quiz largar o
tombadilho do Atlanta, e passou a noite a bordo. Entre outros,
J.-T. Maston, que tinha atarraxado a ganchorra no parapeito do
castello de pôpa; nem um
cabrestante de lá poderia arranca-lo!
"É um heroe! um heroe! berrava elle em todas as intonações, nós é
que somos umas fracas mulheres, em comparação com esse
europeu!"
O presidente, esse depois de convidar a retirarem-se todos os
visitantes, volveu ao camarim do passageiro e não mais o largou até
ao momento em que a sineta de bordo tocou o quarto da meia noite.
Mas n'essa occasião, já os dois rivaes em popularidade se apertavam
reciproca e calorosamente as mãos, e Miguel Ardan já tratava por tu
ao presidente Barbicane.
No dia seguinte levantou-se o "astro do dia" um tanto tarde para
corresponder á impaciencia publica. Para desempenhar o papel de Sol
na illuminação de similhante festa, acharam-n'o um tanto
preguiçoso. Por vontade de Barbicane, que se arreceiava de
perguntas indiscretas para Miguel Ardan, teria o auditorio sido
reduzido a um pequeno numero de adeptos, os collegas, por exemplo.
Mas isso!.. era mais facil pôr um dique á corrente do Niagara. Por
consequencia teve de renunciar ao que projectára, e de consentir
que o amigo de recente data corresse todos os riscos de uma
conferencia publica. Apesar das suas dimensões colossaes, julgou-se
ainda insufficiente para a realisação de tal ceremonia a nova sala
da Bolsa de Tampa-Town, porque a reunião projectada assumira
proporções de verdadeiro meeting.
O logar escolhido foi uma vasta planicie situada fóra da cidade, e
em poucas horas conseguiram abriga-la dos raios solares; todos os
arranjos necessarios para a construcção de uma barraca colossal
foram ministrados pelos navios surtos no porto, abundantes em
velame, cordame, mastros e vergas de sobresalente.
Dentro em pouco estendia-se por sobre a planicie calcinada, a
defende-la contra as ardencias do dia, um immenso céu de panno
debaixo do
qual trezentas mil pessoas acharam abrigo para poderem
aguentar impunemente por espaço de muitas horas, emquanto esperavam
pelo francez, uma temperatura de abafar. De toda aquella turba de
espectadores só á primeira terça parte era dado ver e ouvir; a
segunda mal via enem palavra ouvia; quanto á terceira, essa nada via, e ainda
menos ouvia. E nem por isso foi a menos prompta a prodigalisar
applausos.
Ás tres horas, realisou-se a apparição de Miguel Ardan, em
companhia dos socios principaes do Gun-Club. Dava Miguel o braço
direito ao presidente Barbicane e o braço esquerdo a J.-T. Maston,
mais radiante e quasi tão rutilante como o Sol ao meio dia. Ardan
subiu a um estrado, de cima do qual se lhe estendia a vista por
sobre aquelle oceano de chapéus.
Não se percebia n'elle o menor signal de acanhamento, nem de
impostura; estava ali como quem está em sua casa, alegre, familiar
e amavel; depois de responder com uma graciosa inclinação de cabeça
aos hurrahs com que o acolheram, e de reclamar com um gesto de mão
silencio, tomou a palavra em inglez, exprimindo-se, com extrema
correcção de linguagem, nos seguintes termos:
"Meus senhores, apesar do grande calor que faz, tomarei a liberdade
de abusar dos vossos momentos para dar algumas explicações ácerca
de projectos que, segundo parece, vos interessam.
"Não sou orador nem homem de sciencia, e não contava fallar em
publico; disse-me porém o meu amigo Barbicane que isso vos seria
agradavel, e tanto bastou para me decidir a esse sacrificio.
Consequentemente, escutae-me com os vossos seiscentos mil ouvidos,
e tende a bondade de desculpar os erros do auctor."
Mereceu grande apreço aos circumstantes aquelle exordio sem
ceremonia; um immenso murmurio de satisfação deu prova do
contentamento da multidão.
"Meus senhores, proseguiu Ardan, todos e quaesquer signaes de
approvação ou desapprovação são permittidos. Isto posto, começarei
Em primeiro logar, não deveis esquecer que estaes tratando com um
ignorante, e tão longe vae sua ignorancia, que até as difficuldades
ignora. Pareceu-lhe portanto cousa simples, natural e facil tomar
passagem dentro de um projectil, e partir para a Lua. Era viagem
que mais tarde ou mais cedo se havia de vir a fazer, e pelo que diz
respeito ao modo de locomoção adoptado, esse não era mais do que
simples consequencia da lei do progresso. O homem começou por
viajar com as mãos pelo chão, depois, um bello dia, só nos dois
pés, depois n'uma carroça, depois em caleça, depois em carroção,
depois em diligencia, depois em caminho de ferro; pois bem! o
projectil é a viatura do futuro; que, a fallar a verdade, os
planetas não são senão outros tantos projecteis, simples balas de
canhão arremessadas pela mão do Creador.
"Mas voltemos ao nosso vehiculo. Algum de vós, senhores, poderá ter
pensado que a velocidade que tem de imprimir-se-lhe, é excessiva;
pois não é assim;todos os astros têem superior rapidez, e a propria Terra, em seu
movimento de translação em volta do Sol, nos leva comsigo com
triplicada velocidade. Vou apresentar-vos alguns exemplos, e
pedirei permissão para me exprimir contando por leguas, porque não
estou muito familiarisado com as medidas americanas e tenho receio
de me embarulhar nos calculos."
Ninguem oppoz difficuldades á concessão pedida, que pareceu
perfeitamente rasoavel, e o orador continuou o discurso:
"Eis-aqui, senhores, a velocidade dos differentes planetas. Apesar
da minha ignorancia, força é confessa-lo, conheço com muita
exactidão estas miudezas astronomicas. Mas em menos de dois minutos
estareis a esse respeito tão instruidos como eu. Sabei pois, que
Neptuno anda cinco mil leguas por hora; Urano, sete mil; Saturno,
oito mil oitocentas e cincoenta e oito; Jupiter, onze mil
seiscentas e setenta e cinco; Marte, vinte e duas mil e onze; a
Terra, vinte e sete mil e quinhentas; Venus, trinta e duas mil
cento e noventa; Mercurio, cincoenta e duas mil quinhentas e vinte;
certos cometas, um milhão e quatrocentas mil leguas no perihelio!
Nós cá, verdadeiros passeiantes, gente de poucas posses, não
havemos de ir alem de nove mil novecentas leguas de velocidade, e
mais ha de esta ir sempre diminuindo. Perguntarei eu agora, se ha
aqui motivo para pasmar, e se todas estas velocidades não hão de
ser um dia excedidas por outras ainda maiores, de que provavelmente
serão agentes mechanicos a luz ou a electricidade?"
Ninguem pareceu pôr em duvida a asserção de Miguel Ardan.
"Caros auditores, proseguiu este, se formos a dar credito a uns
certos espiritos acanhados,--e é exactamente esta a qualificação
que melhor lhes cabe--está a humanidade encerrada n'um circulo de
Popilius, que alem do qual não póde dar passo, e condemnada a
vegetar no globo terraqueo sem esperança sequer de poder abrir vôo
para os espaços planetarios! Pois não é assim! Agora vamos á Lua, e
ainda havemos de ir aos planetas, ainda havemos de ir ás estrellas,
como se vae hoje de Liverpool a New-York, com facilidade, rapidez e
segurança. Em breve serão atravessados o oceano atmospherico, bem
como os oceanos da Lua! A distancia é apenas um termo de relação, e
havemos de chegar a final a reduzi-la a zero."
A assembléa, apesar de muito enlevada pelo heroe francez, ficou um
tanto attonita com aquella theoria audaciosa. Miguel Ardan pareceu
percebê-lo, e proseguiu com amavel sorriso:
"Parece-me que não estaes lá muito convencidos, estimaveis
hospedes. Pois bem! Discutâmos um pouco. Sabeis quanto tempo seria
necessario a um comboio expresso para chegar á Lua? Trezentos dias.
Nada mais. O trajecto é de oitenta e seis mil quatrocentase dez leguas, mas isso que é? Não chega a ser nove vezes um
circuito em volta da Terra; não ha marinheiro ou viajante digno
d'esse nome que não tenha andado mais do que isso no decurso da
vida! Pensae pois, que eu não hei de gastar mais de noventa e sete
horas no caminho! Ah! estaes imaginando que a Lua está a grande
distancia da Terra, e que não seria mau reflectir antes de tentar a
aventura! Que dirieis então se se tratasse de ir a Neptuno que
gravita a um milhão cento e quarenta e sete mil leguas do Sol! Isso
é que é viagem que poucos poderiam intentar, ainda que mais não
custasse que a cinco soldos por kilometro! Nem o barão de
Rothschild com os seus mil milhões tinha com que pagasse o logar;
faltavam-lhe ainda cento e quarenta e sete milhões para não ficar
no caminho!"
Esta maneira de argumentar pareceu ser muito do agrado da
assembléa. Miguel Ardan, por sua parte, bem possuido como estava do
assumpto, deixava-se arrastar ao sabor da argumentação com soberbo
enthusiasmo; percebêra que era ouvido com avidez, e proseguiu
portanto com admiravel confiança: "Pois bem, amigos, ainda esta
distancia de Neptuno ao Sol não é nada, se a compararmos com a das
estrellas; effectivamente para avaliar o afastamento de taes astros
é necessario lançar mão de uma classe de numeros deslumbrantes, o
menor dos quaes tem nove algarismos, tomar emfim por unidade o
milhar de milhões. Peço-vos perdão de me mostrar tão sabido no
assumpto, mas é por ser de um interesse palpitante. Ouvi e julgae.
Alpha do Centauro está a oito billiões de leguas, Wega a cincoenta
billiões, Sirius a cincoenta billiões, Arcturus a cincoenta e dois
billiões, a Polar a cento e dezesete billiões de leguas, a Cabra a
cento e setenta billiões, as outras estrellas a milhares de
billiões e de trilliões de leguas! E ainda haverá quem falle na
distancia que medeia entre o Sol e os planetas! E haverá ainda quem
sustente que existe tal distancia! Erro, falsidade! aberração dos
sentidos! Quereis saber o que eu penso ácerca d'esse mundo que
começa no astro radiante e acaba em Neptuno? Quereis conhecer a
minha theoria? É muito simples! Para mim o mundo solar é um corpo
solido, homogeneo; os planetas que o formam, apertam-se, tocam-se,
adherem, e o espaço que entre elles existe é como o espaço que
medeia sempre entre as molleculas do mais compacto metal, seja
prata, seja ferro, oiro ou platina! Julgo portanto ter direito para
affirmar, e repito-o com convicção, que ha de communicar-se a
vóstodos: "A distancia é uma palavra vã, a distancia nem sequer
existe!"
--Bem dito! Bravo! Hurrah! gritou una voce a assembléa electrisada
pelo gesto, pela accentuação do orador e pelo ousado das
concepções.
--Não, exclamou J.-T. Maston ainda mais energicamente que os
outros, a distancia não existe!"
E, arrastado pela violencia dos movimentos, pelo impulso do proprio
corpo que mal podia dominar, ía caíndo do alto do estrado no chão.
Conseguiu, todavia, retomar a posição de equilibrio, e livrar-se de
uma quéda que lhe havia de provar brutalmente que a distancia não
era palavra de todo vã. Em seguida proseguiu no seu discurso o
attrahente orador.
"Amigos, disse Miguel Ardan, cuido que tal problema deve já agora
ter-se como resolvido. Se não logrei convencer-vos a todos, foi de
certo
porque fui timido nas demonstrações, fraco na argumentação, e
a culpa é da minha insufficiencia de estudos theoricos. Seja lá
como for, repito, a distancia da Terra ao seu satellite é realmente
pouco importante e indigna de preoccupar qualquer espirito grave.
Creio que não será ir muito alem da verdade affirmar que em breve
se hão de vir a estabelecer trens de projecteis, nos quaes poderá
fazer-se com toda a commodidade a viagem da Terra á Lua. N'estes é
que não haverá que receiar, nem choques, nem abalos, nem
descarrilamentos, e chegar-se-ha ao termo da viagem, sem cansaço em
linha recta, "a vôo de abelha", para fallar na linguagem dos
caçadores cá da America. D'aqui a vinte annos, de certo já metade
da Terra tem ido visitar a Lua!
"Hurrah! hurrah! por Miguel Ardan, clamaram os circumstantes ainda
os menos convencidos.
--Hurrah por Barbicane!" respondeu modestamente o orador.
Aquelle acto de gratidão para com o promotor da empreza, foi
recebido pelos espectadores com applausos unanimes.
"Agora, amigos, proseguiu Miguel Ardan, se alguem tem qualquer
pergunta a fazer-me, por certo que embaraçará um pobre homem como
eu, entretanto farei todos os esforços para responder."
Até aquelle momento não tivera o presidente do Gun-Club senão
motivos de satisfação pela direcção que a discussão tomava.
Versando esta sobre theorias especulativas, Miguel Ardan, levado
pela sua viva imaginação, mostrava-se extremamente brilhante. Por
consequencia, o que a Barbicane parecia necessario, era pôr
impedimento a que se desviasse para questões praticas, de que por
certo Ardan se havia de saír menos airoso.
Barbicane apressou-se portanto a tomar a palavra, para perguntar ao
amigo de recente data qual era o seu modo de ver em respeito a
habitantes da Lua e dos planetas.
"É um grande problema esse que me propões para resolver, meu digno
presidente, respondeu o orador sorrindo; todavia, se me não engano,
homens de grande intelligencia, taes como Plutarco,Swedenborg,
Bernardin de Saint-Pierre e muitos outros
pronunciaram-se pela affirmativa. Olhando a questão pelo lado da
philosophia natural, sou levado a pensar em harmonia com a opinião
d'elles; a mim proprio digo que cousa alguma inutil existe no
mundo, e respondendo á tua pergunta, com outra pergunta, affirmarei
que se os mundos são habitaveis, é porque são habitados, porque o
foram, ou porque ainda o hão de ser.
Muito bem! clamaram as primeiras linhas de espectadores, cuja
opinião tinha força de lei para com as ultimas.
--Com mais logica e a proposito é que não ha responder, disse o
presidente do Gun-Club. A minha pergunta transforma-se portanto na
seguinte: "Serão porventura os mundos habitaveis?"
--Pela minha parte parece-me que o são.
E eu cá por mim, estou seguro d'isso, respondeu Miguel Ardan.
--Todavia, replicou um dos circumstantes, argumentos ha que vão de
encontro á theoria da habitabilidade dos mundos. Para que estes
podessem ser habitaveis, era evidentemente necessario, que na maior
parte d'elles, fossem modificados os principios da vida. N'estes
termos, e não me referindo já senão a planetas, n'uns d'elles seria
o homem queimado e n'outros gelado, segundo a respectiva distancia
solar.
--Sinto, respondeu Miguel Ardan, não conhecer pessoalmente o meu
honrado contradictor. A objecção que apresenta tem seu valor, mas
creio que póde ser combatida com bom exito, assim como todas as que
se oppõe á habitabilidade dos mundos. Se eu fôra um physico, havia
de dizer-lhe que, se ha menos calorico em movimento nos planetas
proximos do sol, e pelo contrario mais, nos planetas mais
afastados, esse mesmo phenomeno é bastante para equilibrar o calor
e tornar a temperatura de todos os mundos supportavel para seres
organisados como nós outros. Se fôra naturalista havia de
repetir-lhe, depois de o terem dito muitos sabios illustres, que a
natureza mesmo cá na Terra nos fornece exemplos de animaes que
vivem em condições bem diversas de habitabilidade; que os peixes
respiram n'um ambiente que é mortal para os outros animaes; que os
amphibios têem uma existencia dupla
bastante difficil de explicar;
que ha certos habitantes dos mares que se mantem nas camadas de
grande profundidade, onde aguentam, sem serem esmagados, pressões
de cincoenta ou sessenta atmospheras; que ha diversos insectos
aquaticos insensiveis á acção da temperatura, que se encontram
tanto nas nascentes de agua a ferver como nos plainos gelados do
oceano polar; e finalmente que é força reconhecer na natureza uma
diversidade de meios de acção por vezes incomprehensivel, mas que
nem por isso é menos real, e que chega até á omnipotencia. Se eu
fôra chimico, havia de dizer-lhe que os aerolithos, corpos
evidentemente formados fóra domundo terrestre, tem revelado pela analyse vestigios
indiscutiveis de carbonio, e que esta substancia só tem origem nos
seres organisados, e que, em virtude das experiencias de
Reichenbach, deve necessariamente ter estado "animalisada". Emfim,
se fôra theologo, dir-lhe-ía que, segundo S. Paulo, parece que a
redempção divina se applicára, não sómente á Terra, mas a todos os
mundos celestes. Mas não sou theologo, nem chimico, nem
naturalista, nem physico. E portanto, na minha perfeita ignorancia
das grandes leis que regem o universo, limitar-me-hei a
responder:
--Não sei se os mundos são ou não habitados, e por isso mesmo que
não sei, vou lá ver!"
Se o adversario de Miguel se abalançou ou não a apresentar outros
argumentos é que nós não podemos dizer, porque os gritos freneticos
da multidão tornaram-se então capazes de impedir que qualquer
opinião fosse sequer ouvida. Logoque se restabeleceu o silencio,
ainda nos mais afastados grupos, o triumphante orador terminou,
contentando-se em acrescentar as seguintes considerações:
"Bem deveis pensar, estimaveis Yankees, que apenas toquei de leve
tão momentosa questão; eu não vim aqui para fazer um curso publico
e defender theses ácerca de tão vasto assumpto. Ha ainda uma
collecção completa de argumentos de natureza inteiramente
differente a favor da habitabilidade dos mundos. Pô-los-hei de
parte. Dêem-me entretanto licença que insista ácerca de um unico
ponto. Áquelles que sustentam que os planetas não são habitados,
deve responder-se:--Póde ser que tenhaes rasão, se é que está
demonstrado que a Terra é o melhor dos mundos possiveis; mas isso é
que não é assim, apesar do que Voltaire disse a tal respeito. A
Terra tem um só satellite, emquanto Jupiter, Urano,
Saturno e
Neptuno têem muitos ao seu serviço, vantagem que não é para
desdenhar. Mas o que, mais que tudo, torna o nosso globo pouco
confortable, é a inclinação do eixo sobre a orbita. D'esta vem a
desigualdade dos dias e das noites; d'esta a incommoda diversidade
das estações. No nosso desgraçado espheroide faz sempre frio ou
calor demasiado; gela-se por cá no inverno, e arde-se no estio; é o
planeta dos defluxos, dos coryzas e das constipações, emquanto na
superficie de Jupiter, por exemplo, cujo eixo tem pequena
inclinação, os habitantes, se é que existem, podem gosar
temperaturas invariaveis; ali ha uma zona das primaveras, uma zona
dos estios, uma zona dos outonos e uma zona de invernos perpetuos;
cada habitante de Jupiter póde escolher o clima que mais lhe
convier, e pôr-se para toda a vida ao abrigo das variações de
temperatura. Haveis portanto de conceder-me sem difficuldade a
superioridade de Jupiter em relação ao nosso planeta, sem fallar já
das revoluções annuas d'aquelle astro, queduram cada uma doze annos dos nossos! Ainda mais, é para mim
evidente, que com taes auspicios e em tão maravilhosas condições de
existencia, os habitantes d'esse mundo afortunado são entes
superiores; que ali os sabios são mais sabios, os artistas mais
artistas, os maus peiores, e os bons melhores. Ai! e que nos falta
a nós, pobre espheroide, para chegar a tal perfeição? Bem pouca
cousa. Um eixo de rotação, com menos inclinação sobre o plano da
orbita!
--Pois bem! clamou uma voz impetuosa, unâmos os nossos esforços,
inventemos machinas e indireitemos o eixo da Terra!
Rebentou ao ouvir-se tal proposta uma trovoada de applausos; o
auctor da proposta fôra, e nem outro podia ser, J.-T. Maston. É
provavel que o fogoso secretario se deixasse arrastar a aventar tão
ousada idéa pelos seus instinctos de engenheiro. Força é dize-lo
porém, porque é a verdade, muitos o applaudiram com enthusiasmo, e
por certo se tivessem o ponto de apoio que Archimedes reclamava, os
americanos teriam construido uma alavanca capaz de levantar o mundo
e de endireitar-lhe o eixo. Mas o que lhes faltava, áquelles
temerarios constructores, era exactamente o ponto de apoio.
Entretanto aquella idéa "eminentemente pratica" teve um exito
enorme; suspendeu-se a discussão por um bom quarto de hora, e por
muito tempo, por muito tempo ainda, se fallou nos Estados Unidos da
America
da proposta formulada, com tanta energia pelo secretario
perpetuo do Gun-Club.
Parecia que aquelle incidente devia pôr termo á discussão. Estava
dita "a ultima palavra" e a melhor não poder ser. Todavia, quando
acalmou a agitação, ouviram-se as seguintes palavras, pronunciadas
por uma voz forte e severa:
"Agora que o orador já deu mais do que devêra dar á phantasia, por
certo não se negará a entrar de novo no assumpto, construindo menos
theorias, e discutindo a parte pratica da expedição que
intenta?"
Volveram-se todos os olhares para o personagem que fallava
d'aquella fórma. Era um homem magro, secco, de physionomia
energica, com abundantes barbas, talhadas á americana, que lhe
saíam debaixo do queixo inferior. Conseguira pouco e pouco
collocar-se nas primeiras filas, á sombra dos diversos movimentos
que se tinham realisado na assembléa. Ali, cruzados os braços, com
o olhar ousado e scintillante, fixava-o imperturbavelmente no heroe
do meeting. Depois de ter formulado a pergunta, calou-se sem
parecer impressionado pelos milheiros de olhares que para elle
convergiam, nem pelo murmurio desapprovador, que suscitaram as
palavras que pronunciára. E como a resposta se ía fazendo esperar,
repetiu de novo a pergunta, com a mesma accentuação precisa e
terminante, e acrescentando:
"Estamos aqui para tratar da Lua, que não da Terra.
--Tendes rasão, senhor, respondeu Miguel Ardan,a discussão desviou-se um tanto do caminho regular. Volvamos á
Lua.
--Senhor, replicou o desconhecido, affirmaes que o nosso satellite
é habitado. Bem. Mas se existem selenitas, certamente essa especie
de gente vive sem respirar, porque--e por interesse vosso é que vos
vou
prevenindo--não ha uma unica mollecula de ar á superficie da
Lua."
Ao ouvir tal asserção, sacudiu Ardan a fulva juba: comprehendeu que
com aquelle homem é que a luta ía engajar-se a serio e na parte
mais melindrosa do assumpto.
Olhou tambem fixo para elle e disse:
"Ah! Então não ha ar na Lua! E, se me dá licença, quem é que o
affirma?
--Os homens da sciencia.
--Na verdade?
--Na verdade.
--Senhor, replicou Miguel Ardan, fóra de qualquer brincadeira,
tenho profunda estima pelos homens de sciencia que sabem, mas
tambem profundo desdem pelos sabios que nada sabem.
--E conheceis alguns que pertençam á ultima categoria?
--Muito particularmente. Em França ha um que sustenta que
"mathematicamente" as aves não podem voar, e outro cujas theorias
demonstram que os peixes não foram feitos para viver na agua.
--Não é d'esses que trato, senhor, e para apoiar a minha asserção
poderia citar-vos nomes que de certo não havieis de recusar.
--N'esse caso, senhor, muito havieis de embaraçar um pobre
ignorante, que, aliás, nada deseja tanto como instruir-se!
--Então, se não estudastes as questões scientificas, porque é que
vos abalançaes a discuti-las? perguntou com bastante rudeza o
desconhecido.
--Porque? respondeu Ardan. Pela simples rasão que é sempre arrojado
aquelle que nem suspeita tem dos perigos! Nada sei, é verdade, mas
é exactamente n'esta fraqueza que consiste a minha força.
--A vossa fraqueza chega a ser loucura, exclamou o desconhecido com
intonação de mau humor.
--Sim!? Tanto melhor, replicou o francez, se essa loucura me levar
até á Lua!
Barbicane e os collegas devoravam com o olhar o intruso, que com
tanto arrojo vinha apresentar-se em opposição á empreza. Ninguem o
conhecia, e o presidente pouco seguro ácerca das consequencias da
discussão tão francamente posta, olhava com tal ou qual apprehensão
para o seu novo amigo. A assembléa mostrava-se attenta e seriamente
inquieta, porque a disputa tivera como resultado chamar-lhe a
attenção para os perigos, ou talvez verdadeiras impossibilidades da
expedição.
"Senhor, proseguiu o adversario de Miguel Ardan, são numerosas e
indiscutiveis as rasões que provam a ausencia completa de
atmosphera em volta da Lua. Até a priori póde affirmar-se que se
alguma vez existiu essa atmosphera da Lua, deve ter-lhe sido
subtrahida pela Terra. Prefiro entretanto objectar-vos factos
irrecusaveis.
--Objectae, senhor, respondeu Miguel Ardan com perfeita cortezania,
objectae á vossa vontade!
--Sabeis, disse o desconhecido, que quando os raiosluminosos atravessam um meio qualquer tal como o ar, são
desviados da linha recta, ou, por outras palavras, que experimentam
uma refracção. Pois bem! quando a Lua occulta alguma estrella, os
raios luminosos que emanam d'esta, mesmo quando são tangentes á
peripheria do disco lunar, nunca experimentam o menor desvio nem
dão o mais leve indicio de refracção. D'ahi flue como consequencia
evidente que a Lua não está circumdada por uma atmosphera."
Olharam todos para o francez, porque admittida que fosse a
observação, as consequencias tiradas eram perfeitamente
rigorosas.
"Em verdade, respondeu Miguel Ardan, é esse o vosso mais valioso,
por não dizer o unico, argumento, e qualquer homem de sciencia
havia de ver-se extremamente embaraçado para responder-lhe; eu cá
direi
sómente que tal argumento não tem valor absoluto, porque
suppõe que o diametro angular da Lua está perfeitamente
determinado, o que não é exacto. Mas passemos adiante, e dizei-me,
meu caro senhor, se admittis a existencia de vulcões á superficie
da Lua.
--De vulcões extinctos, sim; inflammados, não.
--Deixar-me-heis comtudo acreditar, e sem transpor de certo os
limites da logica, que esses vulcões estiveram em actividade em
outra epocha?
--Isso é positivo, mas como tambem era possivel que os proprios
vulcões fornecessem o oxygenio necessario para a combustão, o facto
das erupções não prova de modo algum a existencia de atmosphera
lunar.
--Passemos adiante, respondeu Miguel Ardan, e ponhâmos de parte tal
genero de argumentos para chegarmos ás observações directas.
Previno-vos porém que vou citar os nomes proprios.
--Pois citae.
--É o que farei. Em 1715, os astronomos Louville e Halley, na
observação do eclipse de 3 de maio, notaram certas fulminações de
natureza singular. Essa especie de relampagos, rapidos e a miudo
repetidos, foi por estes observadores attribuida a tempestades que
se desencadeavam na atmosphera da Lua.
Em 1715, replicou o desconhecido, tomaram os astronomos Louville e
Halley por phenomenos lunares phenomenos que eram puramente
terrestres, taes como bolidos, aerolithos ou outros similhantes, e
que se realisaram na nossa atmosphera. É isto o que responderam os
homens da sciencia á enunciação de taes factos, e é o que eu com
elles responderei tambem.
--Adiante pois, respondeu Ardan, sem se perturbar com a
replica.
E Herschel, em 1787, não observou um grande numero de pontos
luminosos na superficie da Lua?
--É certo, mas o proprio Herschel, que aliás não deu explicação
alguma
ácerca da origem d'esses pontos luminosos, não tirou por
conclusão do que observára a forçada existencia de uma atmosphera
lunar.
--Bem respondido, disse Miguel Ardan cumprimentando o antagonista,
vejo que sois muito entendido em selenographia.
--Verdade é que sou bastante entendido no assumpto, senhor; devo
porém acrescentar, que os mais habeis observadores, osque mais a fundo têem estudado o astro das noites, os srs. Beer
e Moedler, estão commigo de accordo ácerca da falta absoluta de ar
na superficie d'elle."
Houve certa sensação entre os circumstantes, que pareceram
impressionados pelos argumentos do singular personagem.
"Continuemos a passar adiante, respondeu Miguel Ardan com a maior
placidez, que chegaremos a final a um facto importante. Um habil
astronomo francez, M. Laussedat, na observação do eclipse de 18 de
julho de 1860, verificou que as extremidades do crescente solar
estavam arredondadas e truncadas. Ora tal phenomeno só podia ser
produzido por um desvio dos raios solares que atravessassem uma
atmosphera da Lua; outra explicação admissivel não ha.
--E esse facto é positivo? perguntou com vivacidade o
desconhecido.
--Absolutamente positivo!"
Realisou-se então na assembléa um movimento inverso do anterior, e
que fez de novo pender os espiritos para o heroe favorito, cujo
antagonista ficára silencioso. Ardan retomou a palavra, e sem se
ufanar com a decidida vantagem que acabava de obter, disse com
simpleza:
Vêdes por consequencia, meu caro senhor, que não devemos
pronunciar-nos de uma fórma absoluta contra a existencia de
atmosphera á superficie da Lua; essa atmosphera é provavelmente
pouco densa, muito subtil, mas na actualidade a sciencia admitte
geralmente a existencia d'ella.
--Não nas montanhas, em que vos peze, replicou o desconhecido, que
não queria dar o braço a torcer.
Não, mas no fundo dos valles, e sem que a sua altura passe de
alguns centos de pés.
--Em todo o caso, não será mau que tomeis todas as precauções,
porque esse ar ha de estar terrivelmente rarefeito.
--Oh! meu estimavel senhor, sempre ha de haver que farte para um
homem só; e demais, depois de lá estar em cima, eu tratarei de o
economisar o melhor que podér; não respirarei senão nas grandes
occasiões!"
Retumbou uma estrepitosa gargalhada aos ouvidos do mysterioso
interlocutor, que estendeu a vista por toda a assembléa, como que
desafiando-a, altivo.
"Consequentemente, proseguiu Miguel Ardan, visto como estamos de
accordo ácerca da existencia de tal ou qual atmosphera, somos
forçados a admittir tambem a presença de tal ou qual quantidade de
agua. E é uma consequencia esta com que, pela minha parte, me
alegro em extremo. Alem d'isto permittirá o meu amavel contradictor
que lhe submetta ainda mais outra observação. Nós só conhecemos uma
das faces do disco da Lua, e se pouco ar póde haver na face que
olha para nós, é possível que haja muito na face opposta.
--E porque rasão?
--Porque a Lua, em virtude da attracção terrestre é que tomou a
fórma de um ovo, que nós vemos pelo lado da ponta mais achatada; e
d'ahi vem a consequencia obtidapelos calculos de Houven, que o centro de gravidade da Lua está
situado no outro hemispherio. E d'ahi tambem por conclusão, que
todas as massas aereas e aquosas devem ter sido arrastados para a
outra face do nosso satellite nos primeiros tempos da sua
creação.
--Puras phantasias! exclamou o desconhecido.
--Isso não! mas sim puras theorias, aliás fundadas nas leis da
mechanica, e que me parecem de difficil refutação. Appello portanto
para o juizo da assembléa, e ponho á votação a questão de saber se
a vida, tal como existe na Terra, é ou não possivel na superficie
da Lua?"
Trezentos mil auditores applaudiram simultaneamente a proposição. O
adversario de Miguel Ardan ainda quiz fallar, mas nem podia
fazer-se ouvir. Caíu-lhe em cima como uma saraivada de gritos e
ameaças.
"Basta! Basta! diziam uns.
--Fóra o intruso! repetiam outros.
--Fóra! Fóra! clamava a multidão irritada.
O desconhecido porém, firme, agarrado e bem seguro ao estrado, não
arredou pé e deixou passar a tormenta, que teria assumido
proporções formidaveis se Miguel Ardan não a tivera apaziguado com
um gesto. Ardan era muito cavalheiro para abandonar um adversario
em taes extremos.
"Desejaes acrescentar mais algumas palavras? perguntou Ardan com a
mais graciosa intonação.
--Um cento! ou um milheiro! respondeu iracundo o desconhecido. Ou,
para melhor dizer, não, basta só uma! Se perseveraes na empreza, é
porque sois...
--Imprudente! E com que fundamento me trataes vós por similhante
fórma, a mim, que até pedi ao meu amigo Barbicane que a bala fosse
cylindro-conica, só para não andar á roda no caminho como qualquer
esquilo?
--Mas, desgraçado, logo á partida ha de fazer-vos em estilhas a
horrorosa repercussão do tiro!
--Meu caro contradictor, agora sim, agora é que pozestes o dedo na
chaga, na verdadeira e unica difficuldade; entretanto o conceito
que formo do engenho industrial dos americanos é muito elevado para
que me permitta acreditar que não hão de conseguir resolve-la.
--E o calor desenvolvido pela velocidade do projectil ao atravessar
as camadas da atmosphera?
--Oh! as paredes do projectil são espessas, e depois tanto é o
tempo que eu hei de levar a atravessar a atmosphera!?
--Mas viveres e agua?
--Já calculei que podia levar commigo provisões para um anno, e a
viagem dura só quatro dias!
--E ar para respirar no caminho?
--Hei de fabrica-lo por processos chimicos.
--Mas a quéda na Lua, dado mesmo que consigaes lá chegar?
--Ha de ser seis vezes menos rapida do que o seria na superficie da
Terra, visto como a gravidade é seis vezes menor na superficie da
Lua.
--Ainda assim ha de ser mais do que sufficiente para vos fazer em
pedaços como a um bocado de vidro!
--E quem é queme ha de impedir de retardar a queda por meio de foguetes
convenientemente dispostos e inflammados em occasião opportuna.
--Mas, emfim, demos que estão resolvidas todas as difficuldades,
aplanados todos os obstaculos, e que se juntam ainda a vosso favor
todas as probabilidades, admittamos que chegaes á Lua são e salvo,
como é que haveis de voltar?
--Não volto!"
Ao ouvir tal resposta sublime em sua mesma simplicidade, a
assembléa ficou muda. Mas aquelle silencio era mais eloquente do
que quaesquer clamores de enthusiasmo. D'elle se aproveitou o
desconhecido para lavrar o seu ultimo protesto.
--É um suicidio infallivel, exclamou, e a vossa morte, que será
apenas a morte de um insensato, nem ao menos servirá de proveito á
sciencia!
--Continuae, generoso desconhecido, prognosticaes, na verdade, por
modo tão agradavel!
--Ah! isto é de mais! exclamou o adversario de Miguel Ardan, nem
sei porque tenho estado a perder o meu tempo em discussão tão pouco
seria! Prosegui á vontade n'essa empreza louca. A culpa não é a vós
que se deve tornar!
--Oh! não faça ceremonia!
--Não! a outrem cabe a responsabilidade inteira dos vossos
actos.
--Então a quem, se me faz favor? perguntou Miguel Ardan com voz
imperiosa.
--Ao ignorante que organisou essa tentativa tão impossivel como
ridicula."
O ataque era directo. Barbicane que desde que o desconhecido
interviera na discussão fazia esforços violentos para se conter, e
"queimar o proprio fumo" como as fornalhas fumivoras de certas
caldeiras, vendo-se agora claramente designado e com tamanha
affronta, levantou-se precipitadamente e ía já sobre o adversario
que o desafiava cara a cara, quando de subito se viu separado
d'elle.
Cem braços vigorosos arrancaram n'um momento o estrado, e o
presidente do Gun-Club teve que partilhar com Miguel Ardan as
honras do triumpho. O broquel era pesado, mas os que o levavam
revezavam-se de continuo, disputando, lutando todos e combatendo
para prestarem com os proprios hombros decidido apoio á
manifestação.
E todavia o desconhecido não se aproveitára do tumulto para se
escapar. E porventura teria podido faze-lo, rodeado como estava por
aquella multidão compacta? Por certo que não.
Caso é que se conservára na primeira fila, e de braços cruzados
devorava com os olhos o presidente Barbicane.
Este por sua parte não o perdia de vista; os olhares d'aquelles
dois homens estavam em cruzamento permanente como duas espadas
frementes.
Os clamores da multidão immensa mantiveram-se no maximum de
intensidade durante todo o tempo que durou a marcha triumphal.
Miguel Ardan deixava-se levar com evidente satisfação ao sabor das
turbas. Irradiava-lhe do rosto a alegria. Por vezes o estrado
parecia jogar de pôpa a proa, e de bombordo a estibordo como um
navio batido pelas ondas. Mas os dois heroesdo meeting que tinham pé de marinheiro, nem vacillavam; e
chegou-lhes a nave sem avaria ao porto de Tampa-Town.
Miguel Ardan conseguiu, por fortuna, escapar-se aos ultimos
amplexos e apertos de mão dos seus vigorosos admiradores; safou-se
para o hotel Franklin, subiu com presteza para o quarto, e
metteu-se rapidamente na cama, emquanto um exercito de cem mil
homens velava debaixo das janellas.
N'aquella mesma hora passava-se entre o personagem mysterioso e o
presidente do Gun-Club uma scena curta, porém grave e decisiva.
Barbicane apenas se vira livre, caminhára direito ao
adversario.
"Vinde!" lhe disse com voz breve.
O outro seguiu-o para o caes e, dentro em pouco, acharam-se a sós á
entrada de um Warfe que deitava para Jone's-Fall. Chegados áquelle
logar miraram-se os dois inimigos ainda então desconhecidos um para
o outro.
"Quem sois vós?" perguntou Barbicane.
--Sou o capitão Nicholl.
--Já o suspeitava. Até este momento nunca o acaso nos proporcionára
occasião de nos vermos frente a frente...
--Busquei-a eu!
--Insultastes-me!
--E em publico.
--Haveis de dar-me satisfação do insulto!
--Já.
--Não. Desejo que se passe tudo secretamente e só entre nós. Ha um
bosque situado a tres milhas de Tampa-Town, o bosque de Skersnow.
Conheceis-lo?
--Conheço.
--Será do vosso agrado entrar lá ámanhã ás cinco da manhã por
determinado lado?...
--Sim, se á mesma hora lá entrardes pelo outro.
--E que não esqueça o rifle? disse Barbicane.
--"Tanto como vós haveis de esquecer o vosso", respondeu
Nicholl.
Pronunciadas friamente estas palavras, o presidente do Gun-Club e o
capitão separaram-se. Barbicane voltou para casa, mas em vez de
descansar por algumas horas, passou a noite a buscar meios de
evitar a repercussão do tiro dentro do projectil, a resolver o
difficil problema que Miguel Ardan apresentára na discussão do
meeting.
Emquanto entre o presidente e o capitão se discutiam as convenções
do
duello, duello terrivel e selvagem, em que cada um dos
adversarios se transforma em caçador de outro homem, repousava
Miguel Ardan das fadigas do triumpho.
Repousar não é na realidade o termo adequado, porque as camas na
America podem disputar primazias em dureza com qualquer mesa de
marmore ou de granito. Dormia por consequencia Ardan, mas mal, dava
voltas e voltas entre os dois guardanapos que lhe serviam de
lençoes, sonhando que installava dentro do seu projectil uma
camasinha mais comfortable, quando um estrepito violento veio
arranca-lo da região dos sonhos. Empurravam-lhe a porta com
pancadas desordenadas, que pareciam dadas com instrumento de ferro.
De envolta com aquelle tumulto excessivamente matutino, ouviam-se
formidaveis berros.
"Abre! abre, pelo amor de Deus!
Ardan não tinha motivo algum para annuir a um pedido feito com
tanto arruido. Não obstante levantou-se, e foi abrir aporta, no instante em que ella estava para ceder aos esforços do
teimoso visitante.
Irrompeu pelo quarto dentro o secretario do Gun-Club, que nem uma
bomba teria entrado com maior semcerimonia.
"Hontem á noite, prorompeu J.-T. Maston ex abrupto, o nosso
presidente foi insultado em publico no meeting! Desafiou o
adversario, que é nem mais nem menos que o capitão Nicholl!
Batem-se esta manhã no bosque de Skersnow! De tudo fui informado
pela propria bôca de Barbicane! A morte d'este é a aniquilação de
nossos projectos! Por consequencia é necessario pôr impedimento a
tal duello! Um só homem n'este mundo exerce no espirito de
Barbicane influencia bastante para desvia-lo de seus intentos, e
esse homem é Miguel Ardan!"
Emquanto Maston assim dizia, Miguel Ardan, que logo desistíra de o
interromper, precipitára-se dentro das vastas calças, e menos de
dois minutos eram passados, já os dois amigos chegavam á desfilada
aos suburbios de Tampa-Town.
No decurso d'aquella rapida carreira é que Maston foi pondo Ardan
mais ao facto da situação. Contou-lhe então as verdadeiras causas
da
inimisade de Barbicane e Nicholl, como era de antiga data tal
inimisade, e por que rasões, nunca até áquella occasião, Barbicane
e o capitão tinham logrado encontrar-se cara a cara, graças aos
esforços de communs amigos; disse-lhe tambem que não havia ali mais
do que rivalidade de bala e chapa, e finalmente que a scena do
meeting fôra apenas a occasião de ha muito procurada por Nicholl,
para satisfazer antigos rancores.
Nada ha mais terrivel que a fórma de duello peculiar da America, em
que os contendores se buscam por entre as matas, se espreitam pelas
abertas das çarças, e atiram um ao outro, no meio das devezas, como
quem atira a um animal feroz.
N'esse momento é que ambos os adversarios devem ter inveja das
maravilhosas qualidades que caracterisam os indios das planicies,
da rapida intelligencia e da engenhosa astucia de que estes são
dotados, do faro e da peculiar percepção dos rastos que os
distinguem, quando seguem pela pista o inimigo. Em taes occasiões é
que o menor erro, a menor hesitação, um passo só que seja, dado em
falso, podem trazer por consequencia a morte. Em taes recontros
levam por vezes os yankees de companhia os seus cães, e
perseguem-se assim durante horas inteiras, desempenhando a um tempo
os papeis de caça e caçador.
"Que diabo de gente são estes americanos! exclamou Miguel Ardan,
depois que o companheiro acabou de lhe descrever com extrema
energia todas aquellas scenas.
--Somos assim tal qual, respondeu com modestia J.-T. Maston; mas
vamos apressando o passo."
Entretantopor mais que Maston e Ardan corressem através da planicie, ainda
humida do orvalho da noite, passando arrozaes e ribeiros, tomando
sempre pelo caminho mais curto, não lograram chegar ao bosque de
Skersnow, antes das cinco horas e meia. Barbicane já havia boa meia
hora que devia ter-lhe passado a orla.
Trabalhava ali um velho bushman, cuja occupação era desfazer em
cavacos as arvores que derrubava com o machado.
Maston correu para elle a gritar:
"Vistes entrar na mata um homem armado de rifle, Barbicane, o
presidente... o meu melhor amigo?..."
O digno secretario do Gun-Club pensava ingenuamente que o seu
presidente havia por força de ser conhecido do mundo inteiro. Mas o
bushman não deu mostras de o comprehender.
"Um caçador, disse então Ardan.
--Um caçador, sim vi, respondeu o bushman.
--E ha muito?
--Ha de haver uma hora.
--Já é tarde! clamou Maston.
--E ouvistes tiros de espingarda? perguntou Miguel Ardan.
--Nada.
--Nem um só?
--Nem um. Não me parece que o tal caçador tenha feito lá muito
grande caçada!
--Que se ha de fazer? disse Maston.
--É entrar na mata, mesmo correndo risco de apanhar algum balasio,
que não nos fosse destinado.
--Ah! exclamou Maston com accentuação, de cuja franqueza não era
permittido duvidar-se, antes eu queria apanhar dez balas na minha
propria cabeça, de que acertasse uma só na de Barbicane.
--Então ávante!" replicou Ardan, apertando a mão do
companheiro.
Segundos depois desappareciam os dois amigos na espessura da mata,
que era formada de cyprestes-gigantes, sycomoros, tulipeiras,
oliveiras, tamarindos, carvalheiras e magnolias. Entrelaçavam-se as
ramadas d'aquellas differentes arvores, em tão emmaranhada
confusão, que não consentiam que a vista alcançasse muito ao longe.
Miguel Ardan e Maston caminhavam um junto do outro, passando em
silencio por entre as hervas altas, abrindo caminho por entre
agudas silvas e vigorosas trepadeiras, inquirindo com o olhar as
moitas ou as ramadas perdidas por entre a sombria espessura da
folhagem, e esperando a cada instante ouvir a temivel detonação dos
rifles.
Rasto de Barbicane, na sua passagem através do bosque, é que não
logravam reconhecer. Caminhavam ás cegas por aquellas veredas
apenas pisadas, em que qualquer indio teria seguido passo por passo
a marcha do adversario.
Passada uma hora em pesquizas inuteis, fizeram alto os dois
companheiros. Redobrára-lhes a inquietação de espirito.
"É porque está tudo acabado, disse Maston desanimado. Barbicane não
era homem que jogasse astucias com o inimigo, nem que lhe armasse
laços ou usasse de manobras! É franco e corajoso de mais para isso.
Caminhou em frente, direito ao perigo, e por certo a tal distancia
do bushman que o vento levou, sem que este a ouvisse, a detonação
das armas de fogo!
--Mas nós! respondeu Miguel Ardan. Desde queentrámos no bosque não haviamos de ter ouvido alguma cousa!
--E se chegámos tarde! exclamou Maston com intonação de
desespero.
--Miguel Ardan como não tinha replica que dar-lhe proseguiu com
Maston na marcha interrompida.
De tempos a tempos davam grandes gritos: chamavam ora por
Barbicane, ora por Nicholl; mas nenhum dos dois adversarios
respondia ás vozes d'elles. Apenas alegres bandos de aves,
despertadas pelo ruido, desappareciam por entre as ramadas, ou
algum gamo assustado
fugia precipitado através da mata.
Por mais uma hora ainda se prolongaram as pesquizas. Já fôra
explorada a maior parte da mata, e nada que revelasse a presença
dos combatentes. Era caso para pôr em duvida as asserções do
bushman, e Ardan pensava já em desistir de continuar por mais tempo
uma busca inutil, quando, de subito, Maston estacou.
--Chit! murmurou elle. Está acolá alguem!
--Alguem? respondeu Miguel Ardan.
--Sim! um homem! Parece estar immovel. Já não tem o rifle nas mãos.
Que estará fazendo?
--Mas reconheces-lo? perguntou Ardan, a quem, myope como era, de
pouco servia a vista em tal conjunctura.
--Sim! sim! Lá se volta, respondeu Maston.
--E é?
--O capitão Nicholl!
--Nicholl! clamou Miguel Ardan, que sentiu apertar-se-lhe
violentamente o coração.
"Nicholl sem arma! Seria por nada ter já que receiar do
adversario?
"Vamos ter com elle, disse Miguel Ardan; ficaremos
desenganados."
Mas apenas teriam caminhado uns cincoenta passos, elle e o
companheiro estacaram, para mais attentamente examinarem o capitão.
Cuidavam encontrar um homem sequioso de sangue, todo entregue a
pensamentos de vingança!
Ao verem-no pararam estupefactos. Distendia-se entre dois
tulipeiros gigantescos uma rede de apertada malha; mesmo no centro
da teia, debatia-se uma avesinha presa pelas azas, soltando
lastimosos gritos. O
passarinheiro que assim dispozera a
inextricavel rede não fôra um ser humano, senão uma peçonhenta
aranha, peculiar d'aquellas regiões, de volume igual ao de um ovo
de pomba e dotada de pernas enormes. Mas o horrendo animalejo, no
momento em que ía arrojar-se sobre a presa, tivera de retirar,
buscando asylo nas altas ramadas do tulipeiro, porque por sua vez
fôra ameaçado por temivel inimigo.
Effectivamente, Nicholl largára a espingarda e esquecido dos
perigos da situação, tratava de desembaraçar com extremos de
delicadeza a victima enlaçada nas redes da monstruosa aranha. E
quando concluiu a obra, deu a liberdade á pequena avesinha, que
bateu alegremente as azas e desappareceu.
Ainda Nicholl contemplava enternecido a avesinha que fugia de ramo
em ramo, quando ouviu as seguintes palavras ditas em tom de
commoção:
"Isto é que é homem valente e de alma bem formada!"
Voltou-se, e encarou com Miguel Ardan, que repetia em todas as
intonações:
"É homem que merece ter amigos!"
--Miguel Ardan! exclamou o capitão. Que vindes fazer aqui,
senhor?
--Apertar-vos a mão, Nicholl,e impedir que mateis Barbicane, ou que sejaes morto por
elle.
--Barbicane! exclamou o capitão, Barbicane, que eu procuro ha duas
horas sem lograr encontra-lo! Onde estará elle escondido?
--Nicholl, disse Miguel Ardan, isso é falta de cortezia! deve
sempre prestar-se respeito ao adversario; descansae, que se
Barbicane é vivo havemos de encontra-lo, e com tanta maior
facilidade que, se é que não passou o tempo como vós, entretido em
soccorrer alguma avesinha opprimida, deve andar em vossa procura.
Mas quando dermos com elle, sou eu, Miguel Ardan quem vo-lo diz,
não é de duellos que se ha de tratar.
--Entre mim e o presidente Barbicane, respondeu com gravidade
Nicholl, ha rivalidades de tal ordem, que só a morte de um dos
dois...
--Ora vamos, vamos, replicou Miguel Ardan, homens valentes e almas
bem formadas como vós outros, é possivel que se detestem, mas por
certo tambem se estimam. Não haveis de bater-vos.
--Hei-de bater-me, senhor!
--Isso é que não.
--Capitão, disse então J.-T. Maston com generoso animo, sou amigo
do presidente, o seu alter ego, outro elle; se desejaes
absolutamente matar alguem, disparae sobre mim, que é exactamente o
mesmo.
--Senhor, disse Nicholl apertando com mão convulsa o rifle, essas
zombarias...
--O amigo Maston não está zombando, respondeu Miguel Ardan, e eu cá
por mim comprehendo perfeitamente a sua idéa de se fazer matar em
vez do homem de quem é amigo! Mas nem elle nem Barbicane hão de
cair aos tiros do capitão Nicholl, porque tenho a fazer aos dois
rivaes uma proposta por tal fórma seductora, que por certo hão de
acceita-la com enthusiasmo.
--Que proposta é então essa? perguntou Nicholl com visivel
incredulidade.
--Haja paciencia, respondeu Ardan, não posso fazer a communicação
senão na presença de Barbicane.
--Pois vamos por elle, exclamou o capitão.
No mesmo instante pozeram-se os tres a caminho; o capitão desarmou
o rifle, po-l'o ao hombro, e caminhou com passo soffreado, sem
dizer palavra.
Por espaço de meia hora ainda, foram inuteis todas as pesquizas.
Maston sentia-se dominado por sinistro presentimento, e observava
Nicholl com severidade, perguntando a si proprio se não estaria já
satisfeita a vingança do capitão, e Barbicane jazendo ferido de
bala ao pé de alguma moita ensanguentada. Miguel Ardan parecia
dominado pelas mesmas idéas, e ambos inquiriam com os olhos o
capitão Nicholl, quando Maston estacou de subito.
Encostado ao tronco de uma catalpa gigantesca via-se a uns vinte
passos o busto immovel de um homem com o corpo meio occulto por
entre as hervas.
"É elle!" murmurou Maston.
Barbicane nem se movia. Ardan olhou fito para os olhos do capitão,
mas este não trepidou. Ardan deu alguns passos, gritando:
"Barbicane! Barbicane!"
Nada de resposta.
Ardan encaminhou-se precipitado para oamigo, mas no momento em que ía agarra-lo pelo braço, estacou de
repente, soltando uma exclamação de surpreza.
Barbicane, de lapis em punho, escrevia fórmulas e traçava figuras
geometricas n'uma carteira. A espingarda, essa jazia desarmada no
chão.
O homem de sciencia, absorto pelo trabalho, esquecendo por sua
parte duello e vingança, nada víra nem ouvíra. Mas quando Miguel
Ardan lhe poz a mão nas d'elle, levantou-se e olhou com ar de
espanto.
--Ah! exclamou por fim, tu aqui! Encontrei, amigo! encontrei!
--O que?
--Os meios!
--Mas que meios?
--Meios de annullar o effeito da repercussão do tiro á partida do
projectil!
--Realmente? disse Miguel Ardan, olhando de soslaio para o
capitão.
--É verdade! agua, agua pura servirá de almofada.
Ah! Maston! exclamou Barbicane, tambem vós!
--Em propria pessoa, respondeu Miguel Ardan, e dá-me licença que te
apresente tambem por esta occasião o estimavel capitão Nicholl!
--Nicholl! exclamou Barbicane, levantando-se de subito. Perdão,
capitão, tinha-me esquecido... mas estou prompto..."
Miguel Ardan metteu-se de permeio sem dar tempo aos dois inimigos
para que se interpellassem.
"Por vida minha! disse Ardan, que foi uma verdadeira felicidade que
dois homens de alma generosa e elevada como vós dois se não
tivessem encontrado mais cedo! Tinhamos agora que estar chorando um
dos dois! Mas graças a Deus, que se metteu no negocio, já nada ha
que receiar. Quando dois homens esquecem os seus odios para se
entregarem á resolução de problemas de mechanica ou fazer partidas
ás aranhas, é porque taes odios não são perigosos para
ninguem."
E Miguel Ardan narrou ao presidente a aventura do capitão.
--"Ora perguntarei eu agora, disse Miguel em conclusão, se duas
boas pessoas como vós outros foram feitas para se esmigalharem
reciprocamente a cabeça a tiros de carabina?"
Havia n'aquella situação, um tanto ridicula, alguma cousa de tão
inesperado, que Barbicane e Nicholl não sabiam como comportar-se um
em relação ao outro. Miguel, que bem o percebeu, resolveu
precipitar a reconciliação.
"Estimaveis amigos, disse deixando apontar aos labios o mais
agradavel dos sorrisos, nunca houve entre vós dois senão equivocos.
Nada mais.
Pois bem! para dar prova de que todas as contendas estão
terminadas, e visto como sois homens que não temem arriscar a
pelle, acceitae sem hesitar a proposta que vou fazer-vos.
--O amigo Barbicane pensa que o seu projectil ha de ir direitinho á
Lua?
--Certamente que sim, replicou o presidente.
--E o amigo Nicholl está persuadido que o projectil ha de caír na
Terra.
--Estou seguro d'isso, exclamou o capitão.
--Muito bem! proseguiu Miguel Ardan. Eu é que não tenho pretensões
a pôr-vos de accordo, mas sómente vos direi mui lhana e
simplesmente: Vinde commigo, para vermos assim se ficâmos ou não a
meio caminho.
--Hum!" exclamou J.-T.Maston estupefacto.
Ao ouvirem tão inesperada proposta, os dois rivaes levantaram os
olhos um para o outro. Observavam-se attentamente. Barbicane
aguardava a resposta do capitão. Nicholl estava á espreita da
primeira palavra do presidente.
"Então? disse Miguel Ardan com intonação das mais convidativas.
Visto nada haver que receiar da repercussão!...
--Acceito! exclamou Barbicane.
Mas, por depressa que esta palavra fosse pronunciada pelo
presidente, tambem Nicholl a concluira ao mesmo tempo.
--Hurrah! bravo! viva! hip! hip! hip! clamou Miguel Ardan
estendendo as mãos aos dois adversarios. E agora que a pendencia
está pacificamente terminada, meus amigos, consintam-me que os
trate á franceza. Vamos almoçar."
N'aquelle mesmo dia toda a America foi informada a um tempo do
desafio de Barbicane com o capitão Nicholl, e da aventura singular
que lhe puzera termo. O papel que desempenhára n'aquelle recontro o
cavalheiroso europeu, a proposta inesperada que viera cortar todas
as dificuldades, a acceitação simultanea dos dois rivaes, aquella
conquista do continente lunar, para emprehender a qual íam
marchando de accordo França e Estados Unidos, tudo se reuniu para
ainda mais augmentar a popularidade de Miguel Ardan.
É sabido qual o phrenesi com que os yankees se apaixonam por
qualquer individualidade. Imagine-se qual seria a paixão
desencadeada em favor do audacioso francez, n'aquelle paiz onde até
os mais graves magistrados não duvidam puxar á carruagem de
qualquer dansarina para a levarem em triumpho. Se não desatrelaram
os cavallos de Ardan, foi provavelmente porque elle os não tinha,
que no demais foram-lhe prodigalisadas todas as provas imaginaveis
de enthusiasmo. Não houve um só cidadão que senão unisse a elle de
alma e coração. Ex pluribus unum, que é a divisa dos Estados
Unidos.
A partir d'aquelle dia, não teve Miguel Ardan um só momento de
socego. Vinham procura-lo deputações de todos os cantos da União,
que o attribulavam e que não promettiam ter fim, nem tregua. E o
mais é que tinha que as receber, com vontade ou sem ella. Quantos
apertos de mão deu, a quanta gente tratou por tu, é cousa que nem
póde calcular-se. Dentro em pouco tempo estava exhausto de forças,
a voz já mal lhe saía dos labios em sons inintelligiveis, rouca dos
innumeraveis speechs; ía arranjando uma gastro-enterite de tanto
toast que se viu obrigado a fazer a todos os condados da União. Um
triumpho tal teria subido á cabeça a outro qualquer logo no
primeiro dia, mas Ardan teve artes de nunca passar de uma
espirituosa e encantadora semi-ebriedade.
Entre as deputações de todos os generos que por aquella occasião o
assaltaram, não soube esquecer quanto devia ao futuro conquistador
da Lua, a dos "lunaticos". Certo dia, algunsd'estes pobres diabos, abundantes na America, vieram ter com
elle e pedir-lhe que os levasse comsigo para o paiz natal. Alguns
houve que affirmaram saber fallar a
"lingua selenita" e que até a
quizeram ensinar a Miguel Ardan. Prestou-se este de bom grado a tão
innocente mania, e até se encarregou de recados e encommendas para
os amigos que os pobres diabos diziam ter na Lua.
"Singular loucura, disse Ardan a Barbicane, depois que os despediu,
e loucura que ataca as mais das vezes as intelligencias mais
agudas. Dizia-me Arago, um dos nossos mais illustres homens de
sciencia, que muitas pessoas, aliás extremamente sensatas e
cautelosas nas suas concepções, se deixam arrastar a grande
exaltação e a incriveis singularidades, todas as vezes que se
occupam da Lua. E tu não dás credito á influencia da Lua sobre as
doenças?
--Pouco, respondeu o presidente do Gun-Club.
--Tambem eu não; apesar de que a historia tem registrado factos
que, pelo menos, são para causar admiração. Assim em 1693, durante
certa epidemia, morreu muita mais gente no dia 21 de janeiro, por
occasião de um eclipse. O celebre Bacon desmaiava nas occasiões de
eclipse da Lua, e só voltava a si depois da completa emersão do
astro. O rei Carlos VI recaíu por seis vezes em demencia, no
decurso do anno de 1399, e sempre em occasião de Lua nova ou de Lua
cheia. Affirmam alguns medicos que a epilepsia deve classificar-se
entre as doenças que acompanham as phases da Lua. As molestias
nervosas tambem por vezes parecem depender da influencia lunar.
Conta Mead que havia no seu tempo um menino que entrava em
convulsões logo que a Lua entrava em opposição. Gall notou que a
exaltação das pessoas debeis cresce duas vezes em cada mez, uma no
novi-lunio, outra no pleni-lunio. Finalmente, ha mais de um
milheiro de observações d'este genero, em respeito a vertigens,
febres malignas e ataques de somnambulismo, que todos tendem a
provar que o astro das noites gosa de mysteriosa influencia sobre o
curso das doenças terrestres.
--Mas como? porque? perguntou Barbicane.
--Porque? respondeu Ardan. Á fé que te hei de dar a mesma resposta
que Arago repetia dezenove seculos depois de Plutarco: "Talvez seja
exactamente por não ser verdade!"
No meio do seu triumpho, não logrou Miguel Ardan escapar-se a
nenhuma das massadas inherentes ao estado de homem celebre. Os
especuladores de vogas e celebridades de occasião tentaram pô-lo em
exhibição. Barnum chegou a offerecer-lhe um milhão para adquirir o
direito de o transportar de cidade em cidade, em todos os Estados
Unidos, e mostra-lo qualanimal raro. A resposta de Miguel Ardan foi alcunha-lo de
cornac, e manda-lo a elle Barnum... passeiar.
Todavia, recusando-se aliás a satisfazer por tal fórma a
curiosidade publica, deixou Ardan pelo menos que seus retratos
corressem pelo mundo inteiro e occupassem logar de honra em todos
os albums; d'elles se tiraram provas de todas as dimensões, desde
as de tamanho natural até as da grandeza microscopica da estampilha
do correio. Estava ao alcance de toda a gente possuir a imagem do
heroe, em qualquer das posições imaginaveis; cabeça só, meio corpo,
corpo inteiro, de frente, de perfil, de tres quartos e até de
costas. Tirou-se mais de milhão e meio de exemplares. A occasião
era bem boa para se desfazer em reliquias, mas Ardan é que a não
soube aproveitar. Só a vender os cabellos a dollar cada um, podia
fazer uma fortuna, e mais já não eram muitos!
A popularidade, querendo fallar com inteira franqueza, não lhe era
desagradavel. Pelo contrario, Ardan punha-se á disposição do
publico, e correspondia-se com o universo inteiro. Por toda a parte
se contavam, repetiam e propalavam os ditos conceituosos d'elle,
muito principalmente os que elle nem tinha proferido. Como é uso,
por isso mesmo que n'essa parte lhe sobrava a riqueza, é que mais
lhe queriam dar ou emprestar. E não sómente soube tornar propicios
os homens, senão tambem as mulheres. Bastaria que lhe tivesse
passado pela cabeça a phantasia de "entrar no rol dos homens
serios", para ter arranjado um numero infinito de "bellos
casamentos". Principalmente as velhas misses, d'estas que ha bons
quarenta annos se mirravam por não casar, todas devaneiavam dia e
noite diante das photographias d'elle.
Certo é que teria achado companheiras aos centos, aindaque lhes
impuzesse como condição acompanharem-n'o na aerea viagem; que as
mulheres quando lhes não dá para de tudo terem medo, são
verdadeiramente intrepidas. Porém, como Ardan não tinha intento de
fazer estirpe no continente lunar, nem de para lá transportar raça
atravessada de francez e americano, recusou-se formalmente a todos
os
enlaces.
"Ir eu lá para cima, dizia elle, fazer o papel de Adão com uma
filha de Eva, obrigado! E se lá encontrasse serpentes!..."
Ardan, logoque alfim logrou subtrahir-se ás alegrias exageradamente
repetidas do triumpho, foi com os amigos fazer uma visita á
Columbiada, que bem lh'o merecia. De mais a mais, depois que Ardan
vivia em contacto com Barbicane, J.-T. Maston e tutti quanti
tinha-se tornado muito sabedor em questões de balistica. O seu
maior prazer consistia então em repetir aos estimaveis artilheiros,
que não eram elles mais do que amaveis e sabios assassinos. Ácerca
de tal assumpto nunca se lheesgotava a musa epigrammatica. No dia em que visitou a
Columbiada, admirou-a com enthusiasmo e desceu até ao fundo da alma
do gigantesco morteiro, que em breve havia de arremessa-lo para o
astro das noites.
"Este canhão ao menos, disse, não ha de fazer mal a ninguem; o que
da parte de um canhão já não é pouco para admirar. Mas não me
venham cá fallar d'esses machinismos que destroem, que incendeiam,
que despedaçam, que matam, e ainda menos dizer-me que têem "alma",
que lá isso é que eu nunca hei de acreditar!"
Vem a pêllo narrar n'este logar um caso que diz respeito a J.-T.
Maston. Quando o secretario do Gun-Club ouviu que Nicholl e
Barbicane acceitavam a proposta de Miguel Ardan, resolveu lá no
intimo juntar-se com elles, e fazer assim "uma parceirada de
quatro"; um bello dia pediu para entrar na viajata. Barbicane,
sentindo immenso ter que lhe responder com uma recusa, fez-lhe ver
que o projectil não tinha lotação para tanto passageiro. J.-T.
Maston, desesperado, foi ter com Miguel Ardan, que o convidou a
resignar-se, fazendo até valer certos argumentos ad hominem.
"Ora pensa bem, meu velho Maston, e não vás tomar as minhas
palavras em mau sentido; mas aqui para nós, a verdade é que estás
muito incompleto para te apresentar assim na Lua!
--Incompleto! exclamou o velho invalido.
--Sim! meu estimavel amigo! Ora põe-te no caso de encontrarmos
habitantes lá em cima. Quererias tu dar-lhes tão triste idéa do que
se passa cá por baixo, patentear-lhe o que é a guerra,
demonstrar-lhes que empregâmos por cá o melhor do nosso tempo a
devorar-nos, a comer-nos, a quebrar-nos reciprocamente pernas e
braços, e isto n'um globo que poderia alimentar cem mil milhões de
habitantes, e que apenas tem mil e duzentos milhões d'elles? Ora
vamos, meu digno amigo, isso era até caso de nos pôrem de lá fóra,
por tua causa!
--Mas se vós lá chegardes feitos em pedaços, replicou J.-T. Maston,
estareis tão incompletos como eu!
--De certo, respondeu Miguel Ardan, mas a verdade é que não havemos
de chegar lá feitos em pedaços!"
Effectivamente, uma experiencia preparatoria, que se tentou a 18 de
outubro, dera optimo resultado e fizera conceber as mais fundadas
esperanças. Barbicane, que desejava conhecer exactamente o effeito
da repercussão do tiro no momento da partida do projectil, fez
trazer do arsenal de Pensacola um morteiro de trinta e duas
pollegadas(0,75 centimetros), que installaram na praia do molhe de
Hillisboro, para que a bomba viesse a cair no mar e o choque da
quéda fosse amortecido pela agua, visto tratar-se sómente de
experimentar ácerca do abalo á partida e não dochoque á chegada.
Foi preparado com os maiores cuidados para a realisação d'esta
curiosa experiencia um projectil ôco. Estofava-lhe as paredes
internas um expesso acolchoado assente em cima de uma rede de molas
de aço da mais fina tempera. Era um verdadeiro ninho cuidadosamente
almofadado.
"Que pena não caber eu lá dentro!" dizia J.-T. Maston, lamentando
que o proprio volume lhe não consentisse tentar a aventura.
N'aquella encantadora bomba, que fechava por meio de uma tampa de
rosca, introduziram primeiro um gato, depois um esquilo pertencente
a J.-T. Maston, e a que o secretario do Gun-Club tinha particular
affeição. Mas havia desejos de saber como é que aquelle
animalsinho, pouco sujeito a vertigens, supportaria a viagem de
experiencia.
Carregou-se o morteiro com cento e sessenta libras de polvora, e
collocada a bomba na peça, fez-se fogo. No mesmo instante elevou-se
rapidamente o projectil, descreveu magestosamente a sua parabola,
chegou á maxima altura de approximadamente mil pés e foi-se abysmar
por entre as vagas, descendo por graciosa curva.
Dirigiu-se sem perda de tempo uma embarcação para o logar onde
caira a bomba, precipitaram-se habeis mergulhadores debaixo de agua
e amarraram cabos ás auriculas da bomba que de prompto foi içada a
bordo. Nem cinco minutos tinham decorrido entre o momento em que os
animaes tinham sido encerrados na bomba e aquelle em que se lhes
desatarraxou a tampa da prisão.
Ardan, Barbicane, Maston e Nicholl estavam na embarcação e
assistiram á operação com um sentimento de interesse facil de
conceber. Apenas se abriu a bomba, saltou fóra o gato um tanto
machucado é verdade, mas cheio de vida, e sem ares de quem
regressava de tal expedição. Mas a respeito de esquilo é que nada.
Procurou-se. Nem rasto. A final não houve mais remedio de que
reconhecer a verdade. O gato tinha comido o companheiro de
viagem.
J.-T. Maston ficou extremamente contristado com a perda do pobre
esquilo, e assentou que devia inscrever-lhe o nome no martyrologio
da sciencia.
Caso é que depois d'aquella experiencia desappareceram todas as
hesitações e todos os temores. Demais, os planos de Barbicane ainda
haviam de aperfeiçoar o projectil e annullar quasi completamente os
effeitos da repercussão. Portanto nada mais restava a fazer, senão
partir.
Dois dias depois Miguel Ardan recebeu uma mensagem do presidente da
União, honra a que se mostrou notavelmente sensivel.
O governo, tomando exemplo do que se praticára para com o
cavalheiroso marquez de La Fayette, compatriota de Ardan, conferira
a este o titulo de cidadão dos Estados Unidos da America.
Depois que ficára concluida a celebre Columbiada, volvêra-se
immediatamente a attenção publica para o projectil, novo vehiculo
destinado a conduzir através do espaço os tres ousadosaventureiros. A ninguem esquecêra, que Miguel Ardan tinha
pedido, no telegramma de 30 de setembro, que se modificassem os
planos combinados pelos membros da commissão.
Pensava então o presidente Barbicane, e com justa rasão, que era de
pouca importancia a fórma do projectil, porque depois de atravessar
a atmosphera em poucos segundos, havia de realisar o resto do
percurso no vasio absoluto.
Adoptára por consequencia, a commissão a fórma espherica, para que
a bala podesse girar sobre si propria e comportar-se como lhe
acudisse á phantasia. Mas logoque a transformavam em vehiculo, o
caso era outro.
Miguel Ardan nenhum prazer tinha por certo em fazer viagem á
maneira de esquilo; desejava subir, sim, mas de cabeça para cima e
de pés para baixo, com tanta dignidade e compostura como se viajára
na barquinha de qualquer balão; seguramente com maior rapidez, mas
sem se ver obrigado a fazer uma serie de cambalhotas menos
decorosas.
Mandaram-se portanto novos planos á casa Breadwill e C.a de Albany,
e com expressa recommendação de os pôr sem demora em execução.
O projectil fundiu-se, com as modificações apontadas, a 2 de
novembro, e foi expedido immediatamente para Stone's-Hill pela via
ferrea de leste.
A 10, chegou sem accidente ao logar a que era destinado. Miguel
Ardan, Barbicane e Nicholl esperavam com a maior impaciencia "o
wagon-projectil" em que haviam de tomar passagem para voarem á
descoberta de um mundo novo.
O projectil, força é confessá-lo, era uma peça de metal magnifica,
um
producto metallurgico que dava honra ao engenho industrial dos
americanos. Pela vez primeira fôra o aluminium obtido em massa tão
consideravel, e esse resultado só por si merecia com justiça ser
considerado como um prodigio.
O precioso projectil scintillava aos raios do sol. Quem o visse com
aquellas suas fórmas de metter respeito, coberto com o seu chapéu
conico, facilmente o tomaria por uma d'aquellas macissas torres em
fórma de pimenteiro, que os architectos da idade media suspendiam
dos angulos dos castellos fortificados. Só lhe faltavam grimpa e
setteiras.
"Está-se-me figurando, exclamou Miguel Ardan, que vae d'ali saír um
homem de armas com o seu arcabuz e o seu corsalete de aço. Havemos
de estar lá dentro quaes senhores feudaes. Se levassemos alguma
artilheria poderiamos d'ali fazer frente a todos os exercitos
selenitas, se é que ha exercitos na Lua.
--Com que então agrada-te o vehiculo? perguntou Barbicane ao
amigo.
--Sim! Sim! de certo, respondeu Miguel que o estava examinando como
artista.
--Sinto unicamente que não tenha as fórmas mais esbeltas e
ligeiras, o cone mais gracioso; deviam ter-lhe posto como remate um
florão de ornatos de metal lavrado, com uma chimera, porexemplo, uma carranca, ou uma salamandra a saír do fogo com as
azas desdobradas e as fauces abertas...
--E para que servia tudo isso? disse Barbicane, cujo espirito
positivo era pouco sensivel ás bellezas da arte.
--Para que servia, amigo Barbicane! Ai de mim! só pelo facto de m'o
perguntares fico quasi seguro de que nunca o has de vir a
comprehender!
--Vae sempre dizendo, estimavel companheiro.
--Pois ouve lá; é minha opinião que devemos sempre attender um
pouco á arte em tudo quanto fazemos. Conheces acaso uma comedia
india
intitulada o Carro do menino?
--Nem de nome, respondeu Barbicane.
--Tambem não admira, proseguiu Miguel Ardan. Sabe pois, que n'essa
comedia ha um ladrão que na occasião em que está para furar a
parede de uma casa, cogita se ha de dar ao buraco a fórma de lyra,
de flor, de ave ou de amphora?
Ora responde lá, amigo Barbicane, se n'aquella epocha fosses membro
do jury, condemnavas o tal ladrão?
--Sem hesitar, respondeu o presidente do Gun-Club, e com a
circumstancia aggravante do arrombamento.
--Pois eu cá absolvia-o, amigo Barbicane! E aqui está a rasão
porque tu nunca me has de comprehender!
--Nem trato d'isso, meu valente artista.
--Pelo menos, proseguiu Ardan, já que o exterior do nosso
wagon-projectil fica áquem dos meus desejos, hão de me dar licença
que o mobile a meu geito e com todo o luxo que quadra a
embaixadores da Terra!
--Lá a esse respeito, meu caro Miguel, respondeu Barbicane, farás o
que te dictar a phantasia, deixar-te-hemos fazer o que melhor te
aprouver."
O presidente do Gun-Club porém, antes de passar ao agradavel,
cuidára do util, e conseguira fazer applicar os meios por elle
inventados para diminuir os effeitos da repercussão, com perfeita
intelligencia.
Tinha Barbicane pensado, e com rasão, que nenhuma especie de molas
teria força bastante para amortecer o choque, e no decurso
d'aquelle famoso passeio da matta de Skersnaw, conseguíra resolver
aquella grande difficuldade por uma fórma engenhosa. Á agua é que
elle contava ser devedor de tão assignalado serviço. Eis por que
maneira:
Encher-se-ia o projectil, até a altura de tres pés, de uma camada
de
agua destinada a aguentar um disco de madeira perfeitamente
estanque que escorregasse com attrito pelas paredes internas do
projectil.
Em cima d'aquella especie de jangada é que haviam de ir collocados
os viajantes. A massa liquida havia de ser dividida por tabiques
horisontaes que o choque á partida espedaçaria successivamente.
N'esse mesmo momento todos os lençoes de agua, desde o debaixo até
ao de cima, saíndo por tubos de despejo para a parte superior do
projectil, fariam almofada; não podendo o disco, aliás guarnecido
como era depossantes chapuzes, ir de encontro á culatra do projectil senão
depois de terem sido successivamente esmagados os differentes
tabiques. Por certo que os viajantes sempre haviam de soffrer
violenta repercussão depois da saída completa da massa liquida, mas
o primeiro choque havia de ser quasi completamente amortecido por
aquella mola de grande potencia. Verdade é, que tres pés de altura
de agua n'uma área de cincoenta e quatro pés quadrados haviam de
pesar perto de onze mil e quinhentas libras; mas a força elastica
dos gazes accumulados dentro da Columbiada na opinião de Barbicane,
havia de ser bastante para vencer mais aquelle augmento de peso;
demais o choque havia de expellir aquella agua toda em menos de um
segundo, e o projectil de prompto retomaria o peso normal.
Era isto o que o presidente do Gun-Club imaginára, esta a maneira
por que pensava ter resolvido o importante problema do
amortecimento da repercussão do tiro.
De mais a mais, aquelle trabalho fôra comprehendido com perfeita
intelligencia pelos engenheiros da casa Breadwill, e tambem
maravilhosamente executado. Produzido o effeito desejado, e
expellida a totalidade da agua, podiam os viajantes,
desembaraçar-se com facilidade dos tabiques espedaçados, e desarmar
o disco movel que os aguentára no momento da partida.
As paredes superiores do projectil, essas eram cobertas de um
acolchoado expesso de couro, assente sobre espiraes do mais fino
aço, tão flexiveis como molas de relogio. Os tubos de esgoto
escondidos por debaixo do acolchoado nem deixavam suspeitar que
existiam.
Tinham-se portanto tomado por aquella fórma todas as precauções
imaginaveis para amortecer o primeiro choque, e, segundo dizia
Ardan, quem ainda assim se deixasse esmagar, é porque era "de má
raça."
Media o projectil, pela parte de fóra, doze pés de altura sobre
nove de largura.
E, para que não excedesse o peso calculado, tinham-lhe diminuido um
pouco a espessura das paredes, e reforçado a culatra que tinha de
aguentar toda a violencia dos gazes desenvolvidos pela deflagração
do pyroxylo.
Assim succede geralmente com as bombas e obuzes cylindro-conicos,
cuja maior espessura é sempre na culatra.
A entrada para aquella torre de metal era por uma estreita abertura
reservada nas paredes do cone, similhante aos "buracos de homem"
que têem as caldeiras a vapor, e que fechava hermeticamente por
meio de uma chapa de aluminium, apertada da parte de dentro por
possantes parafusos de pressão. Podiam portanto os viajantes saír á
vontade da sua movel prisão, logoque lograssem chegar ao astro das
noites.
Mas o caso não estava só em ir, estava tambem em ir vendo pelo
caminho. Nada mais facil. Por debaixo do acolchoado das paredes
estavam quatro vigias com vidros lenticulares de grande espessura,
duas abertasna parede circular do projectil, uma no fundo e outra no chapéu
conico. Teriam portanto os viajantes toda a facilidade para
observarem durante o percurso, quer a Terra que deixavam, quer a
Lua que íam buscar, quer os espaços constellados do céu.
As vigias estavam defendidas do choque á partida por chapas
fortemente encaixadas, que era facil fazer caír para a parte de
fóra desatarraxando porcas collocadas pela parte de dentro.
Tornavam-se por aquella maneira possiveis quaesquer observações,
sem que o ar contido no projectil podesse de lá saír.
Todos aquelles mechanismos, admiravelmente construidos e
collocados, trabalhavam com a maior facilidade; os constructores
tambem não deram menor prova de intelligencia na arrumação interna
do
wagon-projectil.
Para a conducção da agua e viveres necessarios para os tres
viajantes havia recipientes solidamente seguros, e até aos
passageiros era dado obter fogo e luz, porque tambem levavam gaz
armazenado em recipiente especial debaixo de uma pressão
equivalente a muitas atmospheras. Era abrir uma torneira, e tinham
gaz para lhes illuminar e aquecer o confortable vehiculo para seis
dias.
Claro está que não lhes faltava nada do que se póde reputar
essencial á vida ou mesmo á commodidade. Alem d'isto, e graças aos
instinctos de Miguel Ardan, veio ainda o agradavel juntar-se ao
util, sob fórma de obras de arte; Miguel se não lhe faltára espaço,
fazia do projectil um verdadeiro atelier de artista.
Errada seria a supposição de quem imaginasse que tres pessoas não
estavam bem á larga n'aquella torre de metal.
Media-lhe a capacidade interna uma superficie de proximamente
cincoenta e quatro pés quadrados por dez pés de altura, espaço que
já consentia aos viajeiros certa liberdade de movimentos. Nem que
fossem no mais confortable wagon dos Estados Unidos estariam tanto
á sua vontade.
Estando resolvida a questão de mantimentos e illuminação, faltava
ainda a questão do ar. Era evidente que o ar contido no projectil
não podia chegar para a respiração dos tres viajantes pelo espaço
de quatro dias; effectivamente, cada homem gasta n'uma hora todo o
oxygenio contido em cem litros de ar. Barbicane, os dois
companheiros e dois cães que tencionavam levar, haviam de consumir
só em vinte e quatro horas, dois mil e quatrocentos litros de
oxygenio, em peso proximamente sete libras. Forçoso era portanto
renovar o ar do interior do projectil. Mas como? Por um processo
muito simples, o dos srs. Reiset e Regnault, o mesmo a que Miguel
alludíra no correr da discussão do meeting.
É vulgarmente sabido que o ar se compõe essencialmente de vinte e
uma partes de oxygenio e setenta e nove de azoto. E o que é que
succede no acto da respiração? Umphenomeno muito simples. O homem absorve o oxygenio do ar, gaz
eminentemente proprio para sustentar a
vida e expelle o azoto
intacto. O ar expirado perdeu perto de cinco por cento do seu
oxygenio e contém um volume proximamente igual de acido carbonico,
que é o producto definitivo da combustão dos elementos do sangue
pelo oxygenio inspirado. Portanto, em qualquer logar fechado, ha de
succeder sempre, depois de certo tempo, transformar-se todo o
oxygenio do ar em acido carbonico, gaz que é essencialmente
deleterio.
Como o azoto se conservava intacto, reduzia-se portanto a questão
ao seguinte: 1.º, refazer o oxygenio absorvido; 2.º, destruir o
acido carbonico expirado. E não ha nada mais facil, por meio do
chlorato de potassa e da potassa caustica.
O chlorato de potassa é um sal que se apresenta sob fórma de
palhetas brancas; aquecido a uma temperatura superior a
quatrocentos graus, transforma-se em chloreto de potassium,
abandonando todo o oxygenio que contém. Dezoito libras de chlorato
de potassa rendem por este processo sete libras de oxygenio, isto
é, a quantidade d'elle necessaria aos viajantes para vinte e quatro
horas. E aqui está como se havia de fazer o oxygenio.
A potassa caustica, essa é uma substancia muito avida do acido
carbonico misturado com o ar. Basta agita-la no ambiente para que
elle se apodere do acido carbonico, formando bicarbonato de
potassa. E aqui está tambem como havia de ser destruido o acido
carbonico.
Estes dois meios combinados restituem seguramente ao ar viciado
todas as suas qualidades vivificadoras. Prova-o a experiencia feita
com bom exito pelos dois chimicos, os srs. Reiset e Regnault.
Mas, força é confessar, que as experiencias até então feitas tinham
sempre sido realisadas in anima vili. Ignorava-se absolutamente
qual seria o effeito d'ellas sobre o homem, apesar da extrema
precisão scientifica com que tinham sido executadas.
Esta foi a observação que a todos se offereceu na sessão em que foi
ventilado tão grave assumpto. Miguel Ardan, que nem por sombras
duvidava da possibilidade de viver por meio do ar, assim
artificialmente preparado, offereceu-se para experimenta-lo antes
da partida.
Porém Maston reclamou para si proprio com energia a honra de tentar
o ensaio.
"Já que me não deixam partir, dizia o valente artilheiro, não será
grande favor deixarem-me ao menos habitar no projectil por uns oito
dias."
Recusar em tal caso, era prova de má vontade. Satisfizeram-lhe
portanto os desejos. Puzeram-se á disposição de Maston quantidades
de chlorato de potassa, de potassa caustica e viveres bastantes
para oito dias: em seguida e depois do aperto de mão aos amigos,
encaixou-se o estimavel secretario no projectil, cuja tampa foi
hermeticamente fechada, a 12 de novembro ás seishoras da manhã, recommendando expressamente que lhe não abrissem
a prisão antes do dia 20 ás seis horas da tarde.
O que lá dentro se passava no decurso d'aquelles oito dias, não era
possivel imagina-lo, que a espessura das paredes do projectil
impedia que se percebesse cá de fóra qualquer ruido interior.
A 20 de novembro, ás seis horas em ponto, desaparafusou-se a chapa:
os amigos de Maston sempre estavam um tanto desassocegados de
espirito. Mas de prompto lhes serenou o animo uma voz alegre, que
soltava formidavel hurrah.
Pouco depois appareceu no vertice do cone o secretario do Gun-Club
em postura de triumphador.
Tinha engordado!
A 20 de outubro do anno anterior, depois de fechada a subscripção,
tinha o presidente do Gun-Club aberto um credito a favor do
observatorio de Cambridge, no valor das quantias necessarias para
construir um enorme instrumento optico. Devia tal apparelho, luneta
ou telescopio, ser de força bastante para tornar visivel na
superficie da Lua qualquer objecto de nove pés de largura
maxima.
Ha uma differença importante entre uma luneta e um telescopio, que
é conveniente recordar aqui: a luneta compõe-se de um tubo, que tem
na extremidade superior uma lente convexa, chamada objectivo, e na
extremidade inferior outra lente chamada ocular, a que se applica o
olho do observador. Os raios que emanam do objecto luminoso
atravessam a primeira lente e vão, em virtude da refracção, formar
uma imagem invertida do objecto no foco d'ella. Essa imagem é
que é observada por meio do ocular, que a amplifica exactamente
como qualquer lupa. Claro está pois que o tubo da luneta fica
fechado n'uma e n'outra extremidade pelo objectivo e pelo
ocular.
O tubo do telescopio, pelo contrario, é aberto na extremidade
superior. Os raios luminosos que partem do objecto observado
penetram livremente no tubo e vão incidir n'um espelho metallico
concavo, e portanto convergente. D'ahi partem esses raios depois de
reflectidos a encontrar um espelho menor que os envia para um
ocular, disposto por fórma que amplifique a imagem produzida.
Nas lunetas portanto desempenha papel principal a refracção, nos
telescopios a reflexão. É d'ahi que vem dar-se ás primeiras o nome
de refractores, e aos segundos o de reflectores. A principal
difficuldade de execução de taes apparelhos de optica está na
construcção dos objectivos, quer sejam lentes, quer espelhos
metallicos.
Entretanto na epocha em que o Gun-Club tentou a sua grande
experiencia, estavam já estes instrumentos notavelmente
aperfeiçoados, e davam resultados magnificos. Longe ia o tempo em
que Galileu observára os astros com a sua pobre luneta, que apenas
amplificava na proporção de sete para um, se tanto. Do seculo XVII
até então tinhamos instrumentos de optica crescido em comprimento e largura em
proporções consideraveis, que permittiam explorar os espaços
estellares até uma profundidade até áquella epocha ignorada.
Entre os instrumentos refractores que já então funccionavam, podem
citar-se a luneta do observatorio de Pulkowa, na Russia, cujo
objectivo
mede quinze pollegadas(38 centimetros), em largura, a
luneta do constructor francez Lerebours, que tinha um objectivo
igual ao da anterior, e finalmente a luneta do observatorio de
Cambridge, com um objectivo de dezenove pollegadas de diametro(48
centimetros).
A respeito de telescopios, dois eram já conhecidos de notavel força
e de gigantescas dimensões. O mais antigo, construido por Herschel
tinha trinta e seis pés de comprimento e um espelho de quatro pés e
meio de largura. Com este instrumento se obtinham amplificações de
seis mil por um. O segundo fôra construido na Irlanda, em Kreastle
no parque de Parsoastown, a expensas de lord Rosse. O comprimento
do tubo d'este ultimo era de quarenta e oito pés, e a largura do
espelho de seis pés(1 metro e 83 centimetros); amplificava na
proporção de seis mil e quatrocentos para um, e fôra necessario
construir uma immensa mole de pedra e cal para dispôr os apparelhos
necessarios para a manobra do instrumento, que pesava vinte e oito
mil libras.
Mas, como acabâmos de ver, apesar d'estas colossaes dimensões, não
podéra obter-se amplificação em proporção superior a seis mil para
um, numeros redondos; ora uma amplificação na proporção de seis mil
para um, apenas trás a Lua á distancia de trinta e nove milhas(16
leguas), distancia á qual os objectos que têem sessenta pés de
diametro são apenas perceptiveis, a não ser que sejam extremamente
alongados.
E como no caso em questão, se tratava de um projectil de nove pés
de largura por quinze de comprimento, forçoso era trazer a Lua a
cinco milhas(2 leguas) pelo menos, e n'esse intuito, realisar
amplificações na proporção de quarenta e oito mil para um.
Era este o problema proposto ao observatorio de Cambridge, a quem
sómente incumbia resolver difficuldades materiaes, pois que as
pecuniarias lhe não tolhiam o passo.
Primeiro que tudo, teve o observatorio de optar entre telescopios e
lunetas. As lunetas levam certa vantagem aos telescopios. Com igual
objectivo, obtem-se por meio de uma luneta amplificações em
proporção mais consideravel, porque os raios luminosos que
atravessam as lentes perdem menos pela absorpção de que pela
reflexão no espelho metallico do telescopio. Em compensação a
espessura de que é possivel
construir-se uma lente é limitada,
porque sendo a lente demasiado espessa, não deixa passar os raios
luminosos. Alem d'isto a construcção das enormeslentes a que nos vamos referindo é extremamente difficil e leva
um tempo tão consideravel, que se mede aos annos.
Conseguintemente, apesar de serem as imagens mais illuminadas nas
lunetas, vantagem aliás de subido preço quando se trata de observar
a Lua que apenas emitte luz reflectida, decidiu o observatorio usar
de um telescopio que se podia construir com mais promptidão e que
permittiria obter amplificações em proporção maior. E como os raios
luminosos perdem grande parte da sua intensidade no atravessar da
atmosphera, resolveu o Gun-Club que o instrumento fosse assente
n'uma das mais elevadas montanhas da União, circumstancia esta que
havia de diminuir a espessura das camadas aereas atravessadas pela
luz lunar.
Nos telescopios, como já dissemos, é a lente collocada no olho do
observador, o ocular, que produz a amplificação, e o objectivo que
maiores amplificações consente, é o que tem mais extenso diametro e
maior distancia focal. Para conseguir amplificações na proporção de
quarenta e oito mil para um, forçoso era ir nas dimensões muito
alem das objectivas de Herschell e de lord Rosse. E exactamente ahi
é que estava a difficuldade, porque a fundição dos espelhos de tal
grandeza é operação estremamente delicada.
Por fortuna, inventára poucos annos antes, um homem de sciencia do
instituto de França, Léon Foucault, um processo que tornára muito
facil e muito rapida a operação de polir os objectivos
telescopicos, substituindo os espelhos metallicos por espelhos
prateados. Por este processo basta fundir um pedaço de vidro do
tamanho requerido, metallisar-lhe depois a superficie por meio de
um sal de prata, e está construido e polido o espelho. Foi este o
processo, de resultados aliás excellentes, que se empregou na
fabricação do objectivo.
Acrescente-se a isto, que o espelho objectivo foi collocado em
harmonia com o methodo que Herschell imaginára para os seus
telescopios. No grande apparelho do astronomo de Slough vinha a
imagem dos objectos reflectida pelo espelho inclinado formar-se no
fundo do tubo, na outra extremidade d'elle onde estava collocado o
ocular. Por esta disposição o observador, em vez de estar collocado
na parte inferior do tubo, içava-se
a parte superior d'elle, e
d'ali, munido da respectiva lupa, é que mergulhava a vista dentro
do enorme cylindro. Esta combinação tinha a vantagem de supprimir o
espelho pequeno cuja funcção é reenviar a imagem para o ocular. A
imagem passava assim por uma reflexão unica em vez de duas. Por
consequencia, menor era a quantidade de raios luminosos extincta, e
menos enfraquecida ficava a imagem, obtendo-se portanto maior
clareza, vantagem preciosa especialmente na observação que havia a
fazer.
Tomadas estas resoluções, começaram os trabalhos. Segundo os
calculos do pessoal do observatorio deCambridge, o tubo do novo reflector devia ter duzentos e oitenta
pés de comprido, e o espelho dezeseis pés de diametro. Por mais
colossal que fosse tal instrumento, nem sequer era digno de
comparar-se com um telescopio de dez mil pés(3 kilometros e meio)
de comprimento, cuja construcção o astronomo Hooke propunha ha
poucos annos. E no entretanto as difficuldades que apresentava a
construcção e assentamento, tal como era, já não eram pequenas.
A questão da collocação, essa foi de prompto resolvida. Tratava-se
de escolher uma elevada montanha, e as montanhas de grande elevação
não abundam nos Estados Unidos.
Effectivamente, o systema orographico d'aquelle grande paiz
reduz-se apenas a duas cadeias de montanhas de mediana altura,
entre as quaes corre o magnifico rio Mississipi que os americanos
appellidariam "o rei dos rios" se para elles não fôra inadmissivel
uma realeza qualquer.
A leste, estão os Apalaches, cujo vertice mais elevado, no
New-Hampshire, não vae alem de cinco mil e seiscentos pés, altura
na realidade extremamente modesta.
A oeste, pelo contrario, encontram-se as Montanhas penhascosas,
immensa corda que começa no estreito de Magalhães, acompanha a
costa occidental do sul com o nome de Andes ou Cordilheiras,
transpõe o isthmo de Panamá e corre através da America do Norte até
ás praias do mar polar.
Não são muito elevadas estas montanhas; os Alpes ou o Hymalaya
podiam com justa rasão olha-las de alto da propria grandeza com
supremo desdem.
Com effeito, o mais alto vertice d'ellas tem apenas dez mil e
setecentos pés de altura, ao passo que o monte Branco mede quatorze
mil quatrocentos e trinta e nove, e o Kintschindjinga, vinte e
seis mil setecentos e setenta e seis, acima do nivel do mar.
O Gun-Club, porém, visto ter empenho em que o telescopio assim como
a Columbiada fossem assentes nos Estados da União, teve de se
contentar com as montanhas Penhascosas, e mandou dirigir todo o
material necessario para a cumiada de Long's Peak, no territorio do
Missouri.
Nem a penna nem a palavra humana poderiam narrar as difficuldades
de todos os generos que os engenheiros americanos tiveram de
vencer, os prodigios de audacia e de habilidade que realisaram.
Este trabalho foi um verdadeiro tour de force. Foi necessario
levantar pedras monstruosas, pesadissimas peças forjadas, pilastras
de ingente peso, os pedaços enormes do cylindro, o objectivo, que
só por si pesava trinta mil libras, e levantar tudo acima do limite
das neves perpetuas, a mais de dez mil pés de altura, e isto depois
de ter transposto planicies desertas, florestas impenetraveis,
temerosos "saltos" em torrentes impetuosas, longe dos centros de
população, em meio de regiões selvagens em que cada um dos
pormenoresda existencia se transformava em problema quasi insoluvel.
Apesar de tantos obstaculos o engenho dos americanos de tudo soube
triumphar. Menos de um anno depois do começo dos trabalhos, pelos
ultimos dias de setembro, o gigantesco reflector erguia nos ares o
seu tubo de duzentos e vinte e quatro pés de comprido suspenso de
um enorme andaime de ferro, manobrando com facilidade por meio de
engenhosos machinismos em direcção a todos os pontos do céu, e
podendo seguir os astros de um a outro extremo do horisonte no
decurso da sua marcha através do espaço.
Custára este telescopio mais de quatrocentos mil dollars. A
primeira vez que o dirigiram para a Lua, experimentaram os
observadores uma sensação mixta de curiosidade e inquietação. Que
iriam descobrir no
campo d'aquelle telescopio que amplificava na
proporção de quarenta e oito mil para um as dimensões dos objectos
observados? Populações, rebanhos de animaes lunares, cidades,
lagos, oceanos? Não, nada que á sciencia não fôra já conhecido: a
natureza vulcanica da Lua verificou-se com absoluta precisão em
todos os pontos do disco.
Entretanto o telescopio das montanhas Penhascosas, antes de servir
ao Gun-Club, prestou immensos serviços á astronomia.
Graças ao poder de penetração de tal instrumento, sondaram-se até
aos ultimos limites as profundezas do céu, poderam medir-se com
rigor os diametros apparentes de muitas estrellas, e até M. Clarke,
membro do pessoal technico de Cambridge, decompoz a crab nebula
de Taurus, que o reflector de lord Rosse não lográra reduzir.
Contava já vinte e dois dias o mez de novembro, e a partida suprema
devia realisar-se dez dias depois. Faltava ainda conseguir feliz
exito n'uma unica operação, mas delicada, perigosa, que demandava
infinitas precauções, e contra o bom resultado da qual ajustára o
capitão Nicholl a sua terceira aposta.
Era o caso, carregar a Columbiada introduzindo-lhe as quatrocentas
mil libras de algodão-polvora. Pensára Nicholl, e com justo
fundamento talvez, que da manipulação de tão formidavel quantidade
de pyroxylo haviam de provir graves catastrophes, e que, quando
peior não succedesse, aquella massa eminentemente explosiva havia
de inflammar-se por si mesma sob a pressão do projectil.
Havia n'isto serios perigos, que maiores se tornavam pela
negligencia e leviandade habitual dos americanos. Haja vista o que
succedeu durante a guerra federal: ninguem se incommodava a tirar o
charuto da bôca para carregar uma bomba. Mas lá estava Barbicane,
que tinha a peito chegar a bom resultado e não naufragar já dentro
do porto; que
escolheu por consequencia os melhores operarios, e
que os fez trabalhar debaixo das suas proprias vistas, não os
largando de olho um só momento, conseguindo assim á força de
prudencia e de precaução, pôr a seufavor todas as probabilidades de bom exito.
Antes de tudo, teve Barbicane o maior cuidado em não mandar a carga
inteira de uma vez para o recinto de Stone's-Hill, senão a pouco e
pouco e em caixotes perfeitamente fechados. As quatrocentas mil
libras de pyroxylo foram depositadas em pacotes de quinhentas
libras, dando assim para oitocentos grandes cartuchos fabricados
com o maior esmero pelos mais habeis pyrotechnicos de Pensacola.
Cada caixão tinha capacidade para dez cartuchos, e os caixões íam
chegando uns após outros pela via ferrea de Tampa-Town; por esta
fórma nunca havia a um tempo mais de cinco mil libras de pyroxylo
dentro do recinto. Caixão que chegava era logo descarregado por
operarios descalços, e cada cartucho transportado para o orificio
da Columbiada para dentro da qual descia por meio de guindastes
manobrados a braço.
Tinham-se posto de parte todas as machinas que trabalhavam a vapor,
e apagado todos os fogos n'um circuito de duas milhas de raio. Já
era mais que bastante ter que preservar dos ardores do sol, mesmo
em novembro, aquellas massas de algodão-polvora.
O trabalho, por este motivo, era de preferencia feito de noite ao
clarão de uma luz produzida no vacuo por meio dos apparelhos de
Ruhmkorff, que ministrava uma illuminação artificial que chegava ao
fundo da Columbiada. Dentro do canhão ficavam os cartuchos
arrumados com perfeita regularidade e ligados uns aos outros por
meio de um fio metallico destinado a conduzir instantaneamente ao
centro de cada um d'elles a faisca electrica.
E effectivamente por meio da pilha, é que se havia de dar fogo
aquella massa de algodão-polvora.
Os fios metallicos todos envolvidos em capas de substancia
isoladora, iam reunir-se em um só n'um estreito orificio aberto na
altura em que o projectil havia de ficar; n'esse ponto atravessavam
a espessa parede de ferro fundido, subindo depois até ao solo por
um dos respiradouros do revestimento de pedra, especialmente
reservado para este fim.
A partir do vertice de Stone's-Hill corria o fio por sobre postes
pelo espaço de duas milhas, terminando n'uma pilha de Bunsen munida
do competente apparelho de interrupção. Por consequencia logoque
que se carregasse no botão do apparelho a corrente electrica
restabelecia-se instantaneamente e ía dar fogo ás quatrocentas mil
libras de algodão-polvora. Claro está que a pilha só tinha de
funccionar no ultimo momento.
A 28 de novembro, já os oitocentos cartuchos estavam arrumados no
fundo da Columbiada. Lográra bom exito esta parte da operação.
Mas quantos incommodos, quantas inquietações, quantas luctas tinha
soffrido ou sustentado o presidente Barbicane? Debalde prohibíra a
todos a entrada de Stone's-Hill; todos os dias um ou outro curioso
subia por escalada as palissadas, e algunshouve que, levando a imprudencia até á loucura, foram pôr-se a
fumar mesmo no meio dos fardos de algodão-polvora. Barbicane tinha
ataques de furor todos os dias. J.-T. Maston fazia quanto em si
cabia para o auxiliar, dando caça aos intrusos com grande vigor, e
apanhando as pontas de charuto ainda a arder que os yankees
deitavam para toda a parte. E a tarefa era de estafar, que mais de
300:000 pessoas faziam cêrco em volta das palissadas. Verdade é que
Miguel Ardan tambem se offerecêra para escoltar os caixões até á
bôca da Columbiada; mas o presidente do Gun-Club, que o apanhou em
propria pessoa com um enorme charuto na bôca, ao tempo que ia
perseguindo alguns imprudentes a quem dava assim tão funesto
exemplo, logo percebeu que não podia contar com tão intrepido
fumista, e viu-se obrigado a faze-lo vigiar a elle, e com muita
especialidade.
Emfim, como é certo que ha um Deus especial para os artilheiros,
não houve a menor explosão, e conseguiu-se a final pôr a carga
inteira a são e salvo. Muito duvidosa estava portanto a terceira
aposta do capitão Nicholl. Faltava só introduzir o projectil na
Columbiada e collocá-lo em cima da espessa camada de
algodão-polvora.
Antes porém de se dar começo a esta ultima operação, foram
collocados e arrumados no wagon-projectil todos os objectos
necessarios aos viajantes, que eram bastante numerosos e que, se
tivessem deixado fazer a Miguel Ardan a sua vontade, dentro em
pouco teriam enchido
todo o espaço reservado para as pessoas.
Ninguem imagina que cousas o amavel francez queria levar para a
Lua. Uma verdadeira carregação de inutilidades. Interveio porém
Barbicane, e não houve mais remedio de que reduzir-se ao
estrictamente necessario. Na caixa dos instrumentos ía grande
numero de barometros, thermometros e de oculos de alcance.
Os viajantes estavam com curiosidade de examinar a Lua no decurso
da viagem, e levavam, para facilitar o reconhecimento d'aquelle
novo mundo, um excellente mappa de Beer e Moedler, o Mappa
selenographico, publicado em quatro folhas, e que, com justo
fundamento, tem fama de verdadeira obra prima de observação e
paciencia. Reproduz este mappa com escrupulosa exactidão os mais
insignificantes pormenores da face do astro que olha para a Terra;
montanhas, valles, circos, crateras, picos, ranhuras, tudo ali se
encontra com exactidão nas dimensões e fidelidade na orientação e
denominações, desde os montes Doerfel e Leibnitz, cujas altas
cumiadas se erguem no extremo oriental do disco até ao Mare
Frigoris, que se estende pelas regiões circumpolares do norte.
Era portanto este mappa, para os viajantes, um guia precioso,
porque lhes tornava possivel o estudo do paiz, antes de láporem os pés.
Levavam tambem os viajantes tres riffles e tres carabinas de caça
do systema de bala explosiva, e alem d'isto grande quantidade de
chumbo e polvora.
Dizia a este respeito Miguel Ardan: "Nós não sabemos com quem vamos
lá haver-nos; sejam homens ou sejam animaes podem levar a mal que
lhes vamos fazer uma visita! Por consequencia convem que cada qual
tome as suas precauções".
Acrescentaremos, que as armas de defeza pessoal iam acompanhadas de
picaretas, alviões, serras de mão e a mais ferramenta
indispensavel, sem fallar dos vestuarios adequados para todas as
temperaturas, desde o frio das regiões polares até aos calores da
zona torrida.
Miguel Ardan desejava levar na expedição certo numero de animaes,
que se não chegava a ser um casal de cada uma das especies
conhecidas, é porque Ardan não reputava cousa necessaria acclimar
na Lua nem serpentes, nem tigres, nem crocodilos, nem quaesquer
outros animalejos damninhos.
"Tanto não, dizia elle a Barbicane, mas alguns animaes de carga,
por exemplo bois, vaccas, burros ou cavallos, não só haviam de
fazer bello effeito na paizagem, como nos haviam de servir de
grande utilidade.
"Estou de accordo, meu caro Ardan, respondia o presidente do
Gun-Club, mas o nosso wagon-projectil é que não é nenhuma arca de
Nóe. Nem tem capacidade que chegue, nem para isso foi destinado;
por consequencia fiquemo-nos nos limites do possivel."
Finalmente, depois de longa discussão, concordou-se em que os
viajantes tinham de se contentar em levar uma excellente cadella de
caça que pertencia a Nicholl, e um vigoroso Terra-Nova de força
prodigiosa. Entraram tambem no numero dos objectos uteis muitas
caixas de sementes das mais usuaes. Miguel Ardan, por sua vontade
levaria tambem alguns sacos de terra para as semear. Em todo o
caso, sempre foi mettendo a um canto do projectil uma duzia de
arbustos embrulhados em bainhas de palha.
Restava ainda a questão de viveres, porque necessario era ir
prevenido para o caso de arribar a alguma região da Lua
completamente esteril.
Barbicane tanto fez, que conseguiu metter no projectil provisões
para um anno. É necessario acrescentar, para que ninguem d'isto se
admire, que estes viveres consistiam em conservas de carnes e
legumes, reduzidas ao minimo volume pela acção da prensa
hydraulica, que todavia continham grande abundancia de elementos
nutritivos; a variedade é que não era grande; mas tambem n'uma
expedição d'aquellas não era occasião propria para alguem se
mostrar niquento. Levavam tambem os viajantes uma reserva de
aguardente, que montaria a uns cincoenta gallões, e agua para
dois mezes apenas, porque, na verdade, em consequencia das ultimas
observações astronomicas, já ninguem punha em duvida a existencia
de certa quantidade de agua á superficie daLua. Quanto a viveres, reputar-se-ía até insensato quem
suppozesse que habitantes da Terra não haviam de lá encontrar farto
alimento.
Miguel Ardan não conservava sombra de duvida a tal respeito. Se a
conservára por certo não estaria decidido a partir.
"E demais, disse elle um dia aos amigos, os camaradas cá da Terra
de certo nos não hão de abandonar completamente, antes terão todo o
cuidado em nos não esquecer.
--Certamente, respondeu J.-T. Maston.
--Como se entende isso? perguntou Nicholl.
--Muito simplesmente, respondeu Ardan. Porventura não continua a
Columbiada a estar no mesmo logar? Pois então! não poderão
mandar-nos obuzes carregados de viveres que nós esperaremos em dias
prefixos, por exemplo, todas as vezes que a Lua se apresentar em
condições favoraves de zenith, senão de perigeo, isto é, quasi uma
vez por anno?
--Hurrah! hurrah! clamou J.-T. Maston como quem lá tinha a sua
idéa; isso é que é bem dito! De certo, estimaveis amigos, de certo
que vos não havemos de esquecer!
--Conto com isso!
"E assim teremos, como acabaes de ver, e com toda a regularidade
novidades do globo, e pela nossa parte tambem, só se formos muito
pouco habilidosos é que não havemos de conseguir pôr-nos em
communicação com os nossos bons amigos da Terra!"
Respirava n'estas palavras tão grande confiança, que Miguel Ardan
com o seu ar resoluto e soberbo denodo teria levado atrás de si o
Gun-Club inteiro. Tudo quanto Ardan dizia parecia simples,
elementar, facil, de bom exito seguro; era preciso que alguem
estivesse na realidade agarrado com muito apoucamento a este
miseravel globo terraqueo, para que ouvindo-o se não promptificasse
a ser companheiro dos tres viajantes na sua expedição lunar.
Logoque ficaram collocados e arrumados no projectil os diversos
objectos, introduziu-se entre os respectivos tabiques a agua
destinada a amortecer a repercussão, e no recipiente proprio o gaz
de illuminação. De chlorato de potassa e de potassa caustica
mettêra Barbicane, que se arreceiava das demoras imprevistas no
caminho, no projectil, quantidade tal d'estas substancias que
chegava para renovar o oxygenio e absorver o acido carbonico por
espaço de dois mezes. A restituição ao ar das suas qualidades
vivificadoras e a purificação completa d'elle, estavam a cargo de
um apparelho extremamente engenhoso, que funccionava
automaticamente. Conseguintemente estava prompto o projectil, e
nada mais restava a fazer senão po-lo no fundo da Columbiada,
operação aliás cheia de difficuldades e de perigos.
Conduziram o enorme obuz ao cume de Stone's-Hill, onde ficou seguro
e suspenso de possantes guindastes por cima do poço de metal.
Aquelle momento foi palpitante! Se succedesse quebrarem-se as
cadeias com o enorme peso, a quéda de similhante massa
seguramenteteria produzido instantanea inflammação do algodão polvora.
Felizmente não succedeu assim, e algumas horas depois, o
wagon-projectil que descêra lentamente pela alma do canhão,
descansava em cima da sua cama de pyroxylo, verdadeiro édredon
fulminante. O unico resultado que veio da pressão do projectil foi
ficar mais atacada a carga da Columbiada.
"Perdi", disse o capitão, entregando ao presidente Barbicane a
quantia de tres mil dollars.
Barbicane não queria receber dinheiro de um companheiro de viagem;
teve porém que ceder perante a obstinação de Nicholl, que tinha
empenho em satisfazer quantos compromissos contrahíra, antes de
deixar a Terra.
"Á vista d'isso, disse Miguel Ardan, só uma cousa tenho a
desejar-vos, meu estimavel capitão.
--Qual? perguntou Nicholl.
--Que vos dêem igual proveito as outras duas apostas. Se assim
succeder, estaremos seguros de não nos ficarmos no caminho.
Chegára o primeiro dia de dezembro, dia fatal, porque se a partida
do projectil se não effeituasse n'aquella mesma noite ás dez horas
quarenta e seis minutos e quarenta segundos da tarde, mais de
dezoito annos haviam de decorrer antes que a Lua volvesse a
apresentar-se nas mesmas condições simultaneas de zenith e
perigeo.
O tempo estava magnifico; apesar da proximidade do inverno, o sol
resplandecia e banhava com seus radiantes effluvios aquella mesma
Terra que tres dos habitantes d'ella íam abandonar em troca de um
mundo novo.
Quanta gente mal dormiu durante a noite que precedeu aquelle dia
com tanta impaciencia desejado! Quantos peitos opprimidos pelo
pesado fardo da anciedade! Todos os corações palpitaram de
inquietação, excepto o coração de Miguel Ardan. Este personagem
impassivel andava de cá para lá com o seu ar habitual de quem tem
muitos affazeres, mas nada denunciava n'elle preoccupação insolita.
Dormira a somno solto, como dormia Turenne antes da batalha,
encostado ao reparo de um canhão. Desde pela manhã innumeravel
multidão cobria as planicies que se estendem a perder de vista em
torno de Stone's-Hill.
De quarto em quarto de hora chegava pela via ferrea de Tampa-Town
um comboio carregado de novos curiosos; em breve espaço assumiu
aquella emigração proporções fabulosas; segundo a estatistica do
Tampa-Town Observer, pisaram, n'aquelle dia memoravel, o solo da
Florida cinco milhões de espectadores.
Havia já um mez que a maior parte d'aquella multidão acampava em
volta do recinto, dando começo á fundação de uma cidade que depois
se chamou Ardan's-Town. A planicie estava coberta de
abarracamentos, cabanas, choupanas e tendas, habitações ephemeras
que davam guarida a uma população bastantemente numerosa para
causar inveja ás maiores cidades da Europa.
Ali tinham representantes todos os povos da Terra, fallavam-se ali
a um tempo todos os dialectos do mundo. Dir-se-ía que reinava lá a
confusão das linguas como nos tempos biblicos da torrede Babel. Ali se confundiam em absoluta igualdade as diversas
classes da sociedade americana. Banqueiros, lavradores, maritimos,
moços de recados, corretores, cultivadores de algodão, negociantes,
barqueiros, magistrados, tudo ali se acotovelava com sem cerimonia
primitiva. Fraternisavam os creoulos da Luiziania com os
fazendeiros da Indiana; os gentlemen do Kentucky e do Tenessee, os
virginienses elegantes e altivos mettiam conversa com os caçadores
semi-selvagens dos Lagos, e com os contratadores de gado de
Cincinnati. Usavam na cabeça chapéu de castor branco de aba larga
ou o classico panamá, vestiam calça de guinguamp azul, das fabricas
de Opelousas, envolviam o corpo nas dobras de elegantes blusas de
cotim cru, e os pés em botins de cores brilhantes, trazendo em
exposição extravagantes bofes de fina cambraia, e fazendo
scintillar nos peitos das camisas, nos punhos, nas gravatas, nos
dez dedos, e até nas orelhas, um sortimento completo de anneis,
cadeias, argolas e breloques, cujo mau gosto corria parelhas com o
subido preço. Outras tantas mulheres, creanças e creados, em trajes
não menos opulentos acompanhavam, seguiam, precediam ou rodeiavam
aquelles maridos, paes ou amos, que mais pareciam chefes de tribu
cercados das innumeraveis familias. Era cousa digna de ver-se
aquella gente toda ás horas de refeição deitar-se ás iguarias
peculiares dos Estados Unidos e devorar, com appetite ameaçador
para o abastecimento de viveres da Florida, alimentos que causariam
repugnância a qualquer estomago europeu, taes como rãs de fricassé,
macacos estufados, fish-chowder, sariguêa assada, opossum ainda
em sangue, ou racoon na grelha.
Mas em compensação tambem, que variada serie de licores e de
bebidas para facilitar a digestão d'aquelles indigestos alimentos!
Que gritos excitantes, que vociferações convidativas echoavam nos
bar-rooms ou nas casas de pasto profusamente adornadas de copos,
cangirões, frascos, garrafas brancas e pretas de fórmas
inverosimeis, de almofarizes para pisar o assucar, e de mólhos de
palha!
"Aqui ha o julepe de hortelã!" gritava o dono de um estabelecimento
em tom retumbante.
--Prompta! a sangaree de vinho de Bordéus! replicava outro em voz
de pipia.
--E o gin-sling, repetia o segundo.
--E o cocktail! e brandy-smash! gritava o primeiro.
--"Quem quer provar do verdadeiro mint-julep, á ultima moda?"
gritavam alguns destros vendedores, fazendo passar com rapidez de
um para outro copo, como qualquer prestidigitador faria a uma noz
muscada, o assucar, o limão, a hortelã verde, o gêlo partido, a
agua, o cognac e o ananás de que se compõe aquelle refresco.
Habitualmente, repetiam-se e cruzavam-se no ar, produzindo infernal
barulho, aquelles incitamentos dirigidos ás guellas seccas pela
acção abrasadora das especiarias. Mas n'aquelle dia, no primeiro de
dezembro, eram raros os gritos. Tambem bem poderiam os vendedores
enrouquecer a provocar os freguezes, que todos os seus esforços
seriambaldados. Ninguem pensava em comer nem beber; quantos
espectadores circulavam por entre a multidão, que ás quatro horas
da tarde ainda nem tinham comido o seu lunch do costume! Symptoma
ainda mais significativo, a paixão violenta dos americanos pelo
jogo fôra vencida pela emoção. Quem visse os paulitos do tempins
deitados no chão, os dados do creps a dormir nos copos, a roleta
immovel, o cribbage abandonado, as cartas do whist, do vinte e um,
do rouge et noire, do monte e do faro socegadamente fechadas em
seus envolucros intactos, logo comprehendia que o acontecimento do
dia absorvêra qualquer outra necessidade, e não deixára logar para
distracções.
Até á noite correu pela multidão anhelante uma agitação surda, sem
clamores, como a que precede as grandes catastrophes. Dominava os
espiritos uma ancia indescriptivel, um torpor pesado, um sentimento
indefinivel que opprimia o coração. O que todos desejavam era que
"já estivesse tudo acabado".
Entretanto, por volta das sete horas, dissipou-se repentinamente
aquelle pesado silencio. Nascia então a Lua no horisonte, e muitos
milhões de hurrahs lhe saudaram a apparição. Era exacta ao
rendez-vous.
Subiram os clamores até aos céus, rebentaram applausos de todos os
lados, e a loura Phoebéa brilhava serena no céu admiravel
acariciando com os mais affectuosos de seus raios a multidão
innebriada.
N'aquelle momento appareceram os tres intrepidos viajantes. Ao
vê-los, redobraram em intensidade os clamores. Unanimemente,
instantaneamente, soltou-se de todos aquelles peitos anhelantes a
canção nacional dos Estados Unidos, e o Yankee doodle, repetido em
côro por cinco milhões de cantores, ergueu-se como uma tempestade
sonora até ao extremo limite da atmosphera.
Depois, passado aquelle primeiro e irresistivel arranco de
enthusiasmo, emmudeceu o hymno, extinguiram-se pouco e pouco as
derradeiras harmonias, os echos perderam-se no espaço, e vagueou
por sobre a multidão tão fundamente impressionada um rumorejar
silencioso. No entretanto, o francez e os dois companheiros tinham
transposto o recinto reservado em torno do qual se apertava a
multidão immensa. Acompanhavam-nos os socios do Gun-Club e as
deputações enviadas pelos differentes observatorios europeus.
Barbicane ia frio e sereno e dava tranquillamente as ultimas
ordens. Nicholl, de beiços apertados e mãos encruzadas atrás das
costas, caminhava com passo firme e pausado.
Miguel Ardan, sempre despreoccupado, em traje de perfeito viajante,
polainas de coiro nos pés, bolsa de viagem a tiracolo, mochilla ás
costas, a nadar dentro do amplo fato de velludo castanho, de
charuto na bôca, distribuia na passagem cordeaes apertos de mão com
prodigalidade de principe. Prosa e alegria nunca lhe faltavam; ria,
chalaceava e fazia ao digno J.-T. Maston partidas de garoto, n'uma
palavra mostrava-se "francez", e, o que peior é, "parisiense" até
ao ultimo segundo.
Soaram dez horas. Era chegado o momento detomar logar dentro do projectil, porque a manobra necessaria
para descer, o aparafusar da chapa-tampa, e a safa dos guindastes e
andaimes que pendiam dentro das fauces da Columbiada, sempre haviam
de levar ainda algum tempo. Barbicane regulára o seu chronometro,
com erro inferior a um decimo de segundo, pelo do engenheiro
Murchison, encarregado de dar fogo á polvora, por meio da faísca
electrica; d'esta maneira os viajantes
podiam, encerrados dentro do
projectil, seguir com os olhos o ponteiro impassivel que havia de
marcar o instante exacto da partida.
Chegára o momento das despedidas. Foi uma scena tocante. Miguel
Ardan, apesar de toda a sua febril alegria, sentiu-se commovido.
J.-T. Maston lográra encontrar sob as aridas palpebras uma velha
lagrima que estava como de reserva para aquella occasião, e que o
bom do secretario verteu na fronte do seu caro e estimavel
presidente.
"E se eu tambem fosse? disse elle, ainda estâmos a tempo!
--É impossível, meu velho Maston", respondeu Barbicane.
Poucos instantes depois, estavam os três companheiros de viagem
installados no projectil, cuja chapa-porta tinham aparafusado pela
parte de dentro, e abria-se livremente para o céu, inteiramente
desembaraçada a bôca da Columbiada.
Nicholl, Barbicane e Miguel Ardan estavam definitivamente
entaipados no wagon de metal.
Quem poderia pintar a anciedade universal, que então attingíra ao
seu paroxysmo?
A Lua ía caminhando n'um firmamento de limpida pureza, e apagando
na passagem os lumes scintillantes das estrellas; percorriam
aquelle momento a constellação dos Gemeos e estava a igual
distancia do horisonte e do zenith. Para todos era facil de
comprehender que a pontaria era feita adiante do alvo, como a faz o
caçador que aponta adiante da lebre que quer ferir.
Pesava por sobre aquella scena toda um silencio atterrador. Nem um
sopro de vento na terra! Nem um suspiro de tanto peito. Nem os
corações ousavam palpitar. Os olhos fixavam-se todos como que
assustados nas fauces abertas da Columbiada. Murchison seguia com
os olhos o ponteiro do chronometro. Faltavam apenas quarenta
segundos para soar o instante da partida. Cada segundo parecia um
seculo.
Ao bater do vigesimo segundo tudo estremeceu; é que accudíra ao
pensamento d'aquella multidão que tambem os audaciosos viajantes
encerrados no projectil contavam aquelles segundos terriveis!
Soltaram-se então gritos isolados que diziam:
"Trinta e cinco! trinta e seis! trinta e sete! trinta e oito!
trinta e nove! quarenta! Fogo!!!"
No mesmo instante, Murchison, carregando com o dedo no interruptor
do apparelho, restabeleceu a corrente electrica e lançou a faísca
para o fundo da Columbiada.
Instantaneamente produziu-se uma detonação horrorosa, inaudita,
sobrehumana, de que cousa alguma poderia dar idéa, nem o ribombar
do trovão, nem o estampido das erupções. Das entranhas do solo,
como de uma cratera,surgiu um jacto immenso de fogo. A terra tremeu e abriu-se, e
apenas um ou outro espectador pôde por instantes entrever o
projectil que fendia victoriosamente os ares envolto em
chammejantes vapores.
No momento em que se ergueu para os céus, até prodigiosa altura, o
jacto incandescente, a effusão de labaredas illuminou a Florida
inteira; por inapreciaveis instantes, tornou-se a noite em claro
dia n'uma extensão consideravel de territorio. Aquelle immenso
penacho de fogo viu-se a cem milhas de distancia no mar, tanto no
Atlantico como no golpho, e mais de um capitão de navio notou no
diario de bordo a apparição d'aquelle gigantesco meteoro.
A detonação da Columbiada foi acompanhada de um verdadeiro tremor
de terra. A Florida sentiu-se abalada até ás entranhas. Os gazes da
polvora, dilatados pelo calor, repelliram com violencia
incomparavel as camadas atmosphericas, e aquelle furacão
artificial, cem vezes mais rapido que o furacão das tempestades,
passou como um cyclone através dos ares.
Nem um só espectador ficou de pé; homens, mulheres, creanças, todos
foram deitados ao chão, como espigas pela borrasca; houve um
inexprimivel tumulto, e grande numero de pessoas que ficaram
gravemente feridas. J.-T. Maston, que de encontro a todos os
dictames da prudencia estava perto de mais, foi arremessado a vinte
toezas de distancia, e passou por sobre as cabeças dos seus
concidadãos como uma bala.
Trezentas mil pessoas ficaram por alguns momentos surdas, e como
que tocadas de estupor.
A corrente atmospherica depois de ter derrubado os abarracamentos,
de ter virado de pernas ao ar cabanas, de ter desarreigado arvores,
n'um raio de vinte milhas, de ter impellido os comboios do caminho
de ferro até Tampa, caiu sobre a cidade como uma avalanche,
destruindo um cento de casas, entre outras a igreja de Saint-Mary,
e o novo edificio da Bolsa, que abriu fendas em toda a sua
extensão. Algumas das embarcações surtas no porto, abalroando umas
de encontro ás outras, foram a pique, e uns dez navios fundeados no
molhe foram até á costa, partidas as amarras como fios de
algodão.
Mas o circulo das devastações estendeu-se muito mais ao largo,
ainda alem dos limites dos Estados Unidos. O effeito da
repercussão, auxiliado pelos ventos de oeste, fez-se sentir no
Atlantico a mais de trezentas milhas das praias da America.
Arremessou-se por sobre os navios com inaudita violencia uma
tempestade artificial, uma tempestade inesperada, que nem o
almirante Fitz-Roy podéra prever; muitas embarcações envolvidas
n'aquelles horrorosos turbilhões, sem tempo sequer para colher
panno, sossobraram a panno largo, entre outros o Childe-Harold, de
Liverpool, catastrophe esta muito para lamentar, que deu origem a
recriminações violentas por parte da Inglaterra.
Finalmente, para tudo relatar, aindaque o factonão offereça maior garantia do que a affirmação de alguns
indigenas, asseguram os habitantes da Goréa e de Serra Leôa ter
ouvido, meia hora depois da partida do projectil, um abalo surdo,
derradeiro fremito das ondas sonoras, que depois de terem
atravessado o Atlantico, vinham morrer nas plagas africanas.
Mas volvâmos á Florida. Passados os primeiros instantes do tumulto
despertaram os surdos, os feridos, emfim a multidão inteira, e
ergueram-se até aos céus clamores freneticos de: hurrah por Ardan!
hurrah por Barbicane! hurrah por Nicholl! Milhões de homens de
ventas para o ar, armados de telescopios, de lunetas, de oculos de
alcance, interrogavam o espaço, esquecidos de contusões e emoções,
para se occuparem exclusivamente do projectil. Mas debalde
pesquisavam, que o projectil já não podia ver-se, e força era
resignar-se a esperar pelos telegrammas de Long's-Peak.
O director do observatorio de Cambridge estava no seu posto,
que a elle, astronomo habil e perseverante, é que tinham sido
confiados os trabalhos de observação. Porém um phenomeno
imprevisto, aliás facil de prever, e contra o qual nada havia a
fazer, veiu dentro em pouco submetter a dura prova a impaciencia
publica.
O tempo até ali tão bello, mudou do repente, o céu de subito
toldado cobriu-se de nuvens. Nem podia deixar de assim succeder,
depois da terrivel deslocação das camadas atmosphericas e da
dispersão de tão enorme quantidade de vapores, producto da
deflagração de quatrocentas mil libras de pyroxylo.
A ordem natural fôra completamente perturbada. Nem é cousa que
cause admiração, visto como, nos combates navaes, por vezes se têem
observado repentinas modificações do estado atmospherico,
exclusivamente causadas pelas descargas de artilheria.
No dia seguinte surgiu o sol de um horisonte carregado de espessas
nuvens, pesado e impenetravel véu estendido entre o céu e a terra,
e que por desgraça alcançava até ás regiões das montanhas
Penhascosas. Foi uma fatalidade. Ergueu-se de todos os cantos do
globo um concerto de reclamações. A natureza porém pouco se
commovia; decididamente já que os homens tinham perturbado a
atmosphera com a detonação, justo era que lhe soffressem as
consequencias.
No decurso do primeiro dia todos diligenceavam penetrar o opaco véu
de nuvens; baldados esforços! Deve tambem notar-se que todos se
enganavam levantando os olhos para o céu, porque em consequencia do
movimento diurno do globo, o projectil corria n'aquelle momento
pela linha dos antipodas. Fosse como fosse, quando a Lua volveu
acima do horisonte, envolvida como estava a Terra em noite
impenetravel e profunda, foi impossivel distinguir o astro das
noites; era caso para dizer que a Lua de proposito se furtava ás
vistas dos temerarios que lhetinham atirado.
Consequentemente não havia possibilidade de observação, e os
despachos de Long's-Peak não fizeram mais do que vir confirmar
aquelle desagradavel contratempo.
Entretanto, se é que a experiencia lográra feliz exito, os
viajantes que tinham partido no 1.º de dezembro ás dez horas
quarenta e seis minutos e quarenta segundos da tarde, deviam chegar
no dia 4 á meia noite, e portanto até áquella epocha, e visto como,
por fim de contas, sempre havia de ser muito difficil observar em
taes condições corpo tão pequeno como o obuz, todos se mostraram
pacientes sem grande alarido.
A 4 de dezembro, das oito horas da tarde até á meia noite devia ser
possivel seguir o rasto do projectil, que devia apparecer qual
ponto negro no disco brilhante da Lua. Mas o céu conservou-se
encoberto sem piedade, facto que levou a exasperação publica ao
paroxysmo. Chegaram até a injuriar a Lua, só porque se não
mostrava. Triste compensação das cousas d'este mundo!
J.-T. Maston, desesperado, partiu para Long's-Peak. Desejava
observar por seus proprios olhos. Não lhe restava duvida de que os
amigos deviam ter chegado ao termo da viagem. E tambem a ninguem
constava que o projectil tivesse tornado a caír em qualquer ponto
das ilhas ou dos continentes terrestres, e J.-T. Maston não queria
admittir nem por instantes a possibilidade da quéda nos oceanos que
cobrem as tres quartas partes da extensão do globo terraqueo.
No dia 5, tempo, o mesmo. Os grandes telescopios do velho mundo, o
de Herschell, o de Rosse, o de Foucault estavam invariavelmente
apontados para o astro das noites, porque o tempo na Europa estava
exactamente n'aquella occasião magnifico; mas o pouco alcance
relativo de taes instrumentos, impedia qualquer observação
util.
No dia 6, tempo, o mesmo. Mordiam-se de impaciencia as tres quartas
partes do globo. Chegaram a propor-se os meios mais insensatos para
dissipar as nuvens accumuladas no ar.
No dia 7, pareceu que o estado do céu se modificava um tanto.
Renasceu a esperança, mas não durou por muito tempo; á noite, já as
nuvens de novo acastelladas defendiam a abobada estrellada contra
todas as inspecções.
O caso então tornou-se serio. Effectivamente no dia 11, ás nove
horas e onze minutos da manhã devia a Lua entrar no ultimo quarto.
Passado esse momento havia de ir declinando, e aindaque o céu
limpasse diminuiriam notavelmente as probabilidades de observação;
com effeito a Lua havia de mostrar então uma parte sempre
decrescente do disco, até tornar-se em Lua nova, isto é, até que
nascesse e se pozesse simultaneamente com o Sol, cujos raios a
tornariam absolutamente invisivel. Seria portanto necessario
esperar até 3 de janeiro até ao meiodia e quarenta minutos para que voltasse a Lua cheia, e se
podessem recomeçar as observações.
Os jornaes publicavam estas reflexões com mil commentarios, e não
occultavam ao publico, que era necessario armar-se de angelica
paciencia.
No dia 8, nada. No dia 9 o sol appareceu por um instante como para
zombar dos americanos. Cobriram-no de vaias, e offendido,
certamente com tal acolhimento, mostrou-se avaro de seus raios.
No dia 10, nada de mudança. J.-T. Maston ia enlouquecendo, chegou a
haver suas apprehensões em relação ao cerebro daquelle estimavel
cavalheiro, tão bem conservado até então, pelo seu craneo de
gutta-percha.
No dia 11 porém desencadeou-se na atmosphera uma d'aquellas
horrorosas tempestades privativas das regiões inter-tropicaes.
Varreram fortes ventaneiras de leste as nuvens ha tanto tempo
encastelladas, e á noite o disco meio corroido do astro das noites
ostentou-se magestoso por entre as limpidas constellações do
céu.
N'aquella mesma noite, a palpitante nova com tanta impaciencia
esperada rebentou como um raio nos Estados da União, e d'ali
correndo através do oceano, percorreu todos os fios telegraphicos
do globo. O projectil fôra visto, graças ao gigantesco reflector de
Long's-Peak.
Eis a nota redigida pelo director do observatorio de Cambridge, que
contém as conclusões scientificas da grande experiencia do
Gun-Club.
"Long's-Peak, 12 de dezembro.--Aos ex.mos srs. membros do pessoal
technico do observatorio de Cambridge.
"O projectil arremessado pela Columbiada de Stone's-Hill foi visto
pelos srs. Belfast e J.-T. Maston, no dia 12 de dezembro, ás oito
horas e quarenta e sete minutos da tarde, já a Lua entrára no
ultimo quarto.
"O projectil não deu no alvo, passou-lhe ao lado, mas todavia
bastantemente proximo para ficar retido pela attracção lunar.
"Chegado ali, transformou-se-lhe o movimento rectilineo em
movimento circular de rapidez vertiginosa, e actualmente percorre
uma orbita elliptica em volta da Lua, da qual se tornou verdadeiro
satellite.
"Os elementos do novo astro não poderam ainda determinar-se. Nem é
conhecida a sua velocidade de translação, nem a de rotação. A
distancia a que está da superficie da Lua, póde avaliar-se em duas
mil oitocentas e trinta e tres milhas approximadamente.
"N'estes termos, uma de duas hypotheses póde realisar-se, que ha de
ter por consequencia modificação no actual estado de cousas.
"Ou vencerá a attracção da Lua, e n'este caso chegarão os viajantes
ao termo da sua viagem;
"Ou o projectil mantido n'uma ordem immutavel, gravitará até final
dos seculos em volta do disco lunar.
"É o que nos hão de dizer um dia as observações; até agora porém, a
tentativa do Gun-Club não colheu outro resultado senão enriquecer
com um astro novo o nosso systema solar.--J. T. Belfast."
Quantos problemas surgiram d'esta inesperada solução! Que situação
cheia de mysterios reservava o futuroás investigações da sciencia! Graças á coragem e á dedicação de
tres homens, aquella empreza apparentemente assás futil, de
arremessar uma bala á Lua, acabava de ter um resultado immenso, e
cujas consequencias eram incalculaveis. Os viajantes encerrados no
novo satellite, se não tinham realisado o seu fim, faziam pelo
menos parte do mundo lunar; gravitavam em torno do astro das
noites, cujos mysterios o olho do homem ía pela vez primeira
penetrar. Os nomes de Nicholl, Barbicane e Miguel Ardan devem
portanto para todo o sempre ser celebrados nos fastos da
astronomia, porque estes ousados exploradores, avidos de alargar o
circulo dos conhecimentos humanos, lançaram-se audaciosamente
através do espaço, e jogaram a vida na mais notavel tentativa dos
tempos modernos.
Como quer que fosse, logoque foi do dominio publico a nota de
Long's-Peak, apossou-se do universo inteiro um sentimento de
surpreza e de espanto. Acaso seria possivel prestar auxilio
áquelles ousados habitantes da Terra? Não, por certo, que se tinham
collocado fóra da humanidade, logo que transpozeram os limites
impostos por Deus ás creaturas terrestres. Ar podiam elles obte-lo
pelo espaço de dois mezes. Viveres, levavam-n'os para um anno. Mas
depois?... Ao formular-se tal pergunta palpitavam até os corações
mais insensiveis.
Só havia um homem, um só, que não podia admittir que a situação
fosse para desesperar. Um só tinha confiança, e era esse o amigo
dedicado dos tristes, e tanto como elles audaz e resoluto, era o
estimavel J.-T. Maston.
E tambem não os largava de olho. Assentára definitivamente os
penates no posto de Long's-Peak, onde tinha por unico horisonte o
espelho do
immenso reflector. Logoque a Lua surgia acima do
horisonte, fixava-a no campo do telescopio e não a perdia de vista
nem um momento, seguindo-a com assiduidade na sua marcha através
dos espaços estellares; observava com eterna paciencia a passagem
do projectil pelo disco de prata; na realidade podia dizer-se que o
estimavel secretario estava em perpetua communicação com os tres
amigos, que ainda, um dia esperava tornar a ver.
"Havemos de nos corresponder com elles, dizia a quem queria
ouvi-lo, logoque as circumstancias o permittam. Havemos de ter
novidades de lá, e elles tambem as hão de ter de cá! E demais, eu
conheço-os, são homens engenhosos. Juntos os tres, levaram comsigo
para o espaço todos os recursos da arte, da sciencia e da
industria. Com taes elementos faz-se tudo quanto se quer. Hão de
saír-se da difficuldade, e senão veremos!"
FIM DE "DA TERRA Á LUA".