Fernando Pessoa

"Navegar é Preciso"

I

Quando, despertos deste sono, a vida,

Soubermos o que somos, e o que foi

Essa queda até Corpo, essa descida

Até à noite que nos a Alma obstrui,

Conheceremos pois toda a escondida

Verdade do que é tudo que há ou flui?

Não: nem na Alma livre é conhecida...

Nem Deus, que nos criou, em Si a inclui.

Deus é o Homem de outro Deus maior:

Adam Supremo, também teve Queda;

Também, como foi nosso Criador,

Foi criado, e a Verdade lhe morreu...

De além o Abismo, Spirito Seu, Lha veda;

Aquém não a há no Mundo, Corpo Seu.

II

Mas antes era o Verbo, aqui perdido

Quando a Infinita Luz, já apagada,

Do Caos, chão do Ser, foi levantada

Em Sombra, e o Verbo ausente escurecido.

Mas se a Alma sente a sua forma errada,

Em si, que é Sombra, vê enfim luzido

O Verbo deste mundo, humano e ungido,

Rosa Perfeita, em Deus crucificada.

Então, senhores do limiar dos Céus,

Podemos ir buscar além de Deus

O Segredo do Mestre e o Bem profundo;Mas só de aqui, mas já de nós, despertos,

No sangue atual de Cristo enfim, libertos

Do a Deus que morre a geração do Mundo.

III

Ah, mas aqui, onde irreais erramos,

Dormimos o que somos, e a verdade,

Inda que enfim em sonhos a vejamos,

Vemo-la, porque em sonho, em falsidade.

Sombras buscando corpos, se os achamos

Como sentir a sua realidade?

Com mãos de sombra. Sombras, que tocamos?

Nosso toque é ausência e vacuidade.

Quem desta Alma fechada nos liberta?

Sem ver, ouvimos para além da sala

De ser: mas como, aqui, a porta aberta?

Calmo na falsa morte a nós exposto,

O Livro ocluso contra o peito posto,

Nosso Pai Rosaeacruz conhece e cala.

Tenho tanto sentimento

Que é frequente persuadir-me

De que sou sentimental,

Mas reconheço, ao medir-me,

Que tudo isso é pensamento,

Que não senti afinal.

Temos, todos que vivemos,

Uma vida que é vivida

E outra vida que é pensada,

E a única vida que temos

É essa que é dividida

Entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é a verdadeira

E qual errada, ninguém

Nos saberá explicar;

E vivemos de maneira

Que a vida que a gente tem

É a que tem que pensar.

Grandes mistérios habitam

O limiar do meu ser,

O limiar onde hesitam

Grandes pássaros que fitam

Meu transpor tardo de os ver.

São aves cheias de abismo,

Como nos sonhos as há.

Hesito se sondo e cismo,

E à minha alma é cataclismo

O limiar onde está.

Então desperto do sonho

E sou alegre da luz,

Inda que em dia tristonho;

Porque o limiar é medonho

E todo passo é uma cruz.

Viajar! Perder países!

Ser outro constantemente,

Por a alma não ter raízes

De viver de ver somente!

Não pertencer nem a mim!

Ir em frente, ir a seguir

A ausência de ter um fim,

E a ânsia de o conseguir!

Viajar assim é viagem.

Mas faço-o sem ter de meu

Mais que o sonho da passagem.

O resto é só terra e céu.

A pálida luz da manhã de inverno,

O cais e a razão

Não dão mais 'sperança, nem menos 'sperança sequer,

Ao meu coração.

O que tem que ser

Será, quer eu queira que seja ou que não.

No rumor do cais, no bulício do rio

Na rua a acordar

Não há mais sossego, nem menos sossego sequer,

Para o meu 'sperar.

O que tem que não ser

Algures será,se o pensei; tudo mais é sonhar.

Tão abstrata é a ideia do teu ser

Que me vem de te olhar, que, ao entreter

Os meus olhos nos teus, perco-os de vista,

E nada fica em meu olhar, e dista

Teu corpo do meu ver tão longemente,

E a ideia do teu ser fica tão rente

Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me

Sabendo que tu és, que, só por ter-me

Consciente de ti, nem a mim sinto.

E assim, neste ignorar-me a ver-te, minto

A ilusão da sensação, e sonho,

Não te vendo, nem vendo, nem sabendo

Que te vejo, ou sequer que sou, risonho

Do interior crepúsculo tristonho

Em que sinto que sonho o que me sinto sendo.

Que voz vem no som das ondas

Que não é a voz do mar?

É a voz de alguém que nos fala,

Mas que, se escutarmos, cala,

Por ter havido escutar.

E só se, meio dormindo,

Sem saber de ouvir ouvimos

Que ela nos diz a esperança

A que, como uma criança

Dormente, a dormir sorrimos.

São ilhas afortunadas

São terras sem ter lugar,

Onde o Rei mora esperando.

Mas, se vamos despertando

Cala a voz.

E há só o mar.

O mito é o nada que é tudo.

O mesmo sol que abre os céus

É um mito brilhante e mudo -

O corpo morto de Deus,

Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,

Foi por não ser existindo.

Sem existir nos bastou.

Por não ter vindo foi vindo

E nos criou.

Assim a lenda se escorre

A entrar na realidade,

E a fecundá-la decorre.

Em baixo, a vida, metade

De nada, morre.

Que jaz no abismo sob o mar que se ergue?

Nós, Portugal, o poder ser.

Que inquietação do fundo nos soergue?

O desejar poder querer.

Isto, e o mistério de que a noite é o fausto...

Mas súbito, onde o vento ruge,

O relâmpago, farol de Deus, um hausto

Brilha e o mar 'scuro 'struge.

Senhor, a noite veio e a alma é vil.

Tanta foi a tormenta e a vontade!

Restaram-nos hoje, no silencio hostil,

O mar universal e a saudade.

Mas a chama, que a vida em nos creou,

Se ainda há vida ainda não é finda.

O frio morto em cinzas a ocultou:

A mão do vento pode erguê-la ainda.

Dá o sopro, a aragem, - ou desgraça ou ânsia -,

Com que a chama doesforço se remoça,

E outra vez conquistemos a Distância -

Do mar ou outra, mas que seja nossa!

Ai que prazer

Não cumprir um dever.

Ter um livro para ler

E não o fazer!

Ler é maçada,

Estudar é nada.

O sol doira sem literatura.

O rio corre bem ou mal,

Sem edição original.

E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal

Como tem tempo, não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.

Estudar é uma coisa em que está indistinta

A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto melhor é quando há bruma.

Esperar por D. Sebastião,

Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...

Mas o melhor do mundo são as crianças,

Flores, música, o luar, e o sol que peca

Só quando, em vez de criar, seca.

E mais do que isto

É Jesus Cristo,

Que não sabia nada de finanças,

Nem consta que tivesse biblioteca...

2. O universo não é meu: sou eu

Onde Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros em Lisboa, descreve(sem uma ordem cronológica estabelecida) o seu cotidiano na Rua dos Douradores. Isto são alguns trechos do monumental "Livro do Desassossego"(e ainda virão outros mais, noutro capítulo)...

Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a haviam tido - sem saber porquê. E então, porque o espírito humano tende naturalmente para criticar porque sente e não porque pensa, a maioria desses jovens escolheu a Humanidade para sucedâneo de Deus. Pertenço, porém, àquela espécie de homens que estão sempre na margem daquilo a que pertencem, nem veem só a multidão de que são, senão também os grandes espaços que há ao lado. Por isso nem abandonei Deus tão amplamente como ele, nem aceitei nunca a Humanidade. Considerei que Deus, sendo improvável, poderia ser, podendo pois dever ser adorado; mas que a Humanidade, sendo uma mera ideia biológica, e não significando mais que a espécie animal humana, não era mais digna de adoração do que qualquer outra espécie animal. Este culto da Humanidade, com seus ritos de Liberdade e Igualdade, pareceu-me sempre uma reviviscência dos cultos antigos, em que animais eram como deuses, ou os deuses tinham cabeças de animais.

Assim, não sabendo crer em Deus, e não podendo crer numa soma de animais, fiquei, como outros da orla das gentes, naquela distância de tudo a que comummente se chama a Decadência. A Decadência e a perda total da inconsciência; porque a inconsciência é o fundamento da

vida.O coração, se pudesse pensar, pararia.

A quem, como eu, assim, vivendo não sabe ter vida, que resta senão, como a meus poucos pares, a renúncia por modo e a contemplação por destino? Não sabendo o que é a vida religiosa, nem podendo sabê-lo, porque se não tem fé com a razão; não podendo ter fé na abstração do homem, nem sabendo mesmo que fazer dela perante nós, ficava-nos, como motivo de ter alma, a contemplação estética da vida. E, assim, alheios à solenidade de todos os mundos, indiferentes ao divino e desprezadores do humano, entregamo-nos futilmente à sensação sem propósito, cultivada num epicurismo subtilizado, como convém aos nossos nervos cerebrais.

Retendo, da ciência, somente aquele seu preceito central, de que tudo é sujeito às leis fatais, contra as quais se não reage independentemente, porque reagir é elas terem feito que reagíssemos; e verificando como esse preceito se ajusta ao outro, mais antigo, da divina fatalidade das coisas, abdicamos do esforço como os débeis do entretimento dos atletas, e curvamo-nos sobre o livro das sensações com um grande escrúpulo de erudição sentida.

Não tomando nada a sério, nem considerando que nos fosse dada, por certa, outra realidade que não as nossas sensações, nelas nos abrigamos, e a elas exploramos como a grandes países desconhecidos. E, se nos empregamos assiduamente, não só na contemplação estética mas também na expressão dos seus modos e resultados, é que a prosa ou o verso que escrevemos, destituídos de vontade de querer convencer o alheio entendimento ou mover a alheia vontade, é apenas como o falar alto de quem lê, feito para dar plena objetividade ao prazer subjetivo da leitura.

Sabemos bem que toda a obra tem que ser imperfeita, e que a menos segura das nossas contemplações estéticas será a daquilo que escrevemos. Mas imperfeito é tudo, nem há poente tão belo que o não pudesse ser mais, ou brisa leve que nos dê sono que não pudesse dar-nos um sono mais calmo ainda. E assim, contempladores iguais das montanhas e das estátuas, gozando os dias como os livros, sonhando tudo, sobretudo, para o converter na nossa íntima substância, faremos também descrições e análises, que, uma vez feitas, passarão a ser coisas alheias, que podemos gozar como se viessem na tarde.

Não é este o conceito dos pessimistas, como aquele de Vigny, para quem a vida é uma cadeia, onde ele tecia palha para se distrair. Ser

pessimista é tomar qualquer coisa como trágico, e essa atitude é um exagero e um incômodo. Não temos, é certo, um conceito de valia que apliquemos à obra que produzimos. Produzimo-la, é certo, para nos distrair, porém nãocomo o preso que tece a palha, para se distrair do Destino, senão da menina que borda almofadas, para se distrair, sem mais nada.

Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo. Não sei onde ela me levará, porque não sei nada. Poderia considerar esta estalagem uma prisão, porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis, porque aqui me encontro com outros. Não sou, porém, nem impaciente nem comum. Deixo ao que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo ao que fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes chegam cômodas até mim. Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero.

Para todos nós descerá a noite e chegará a diligência. Gozo a brisa que me dão e a alma que me deram para gozá-la, e não interrogo mais nem procuro. Se o que deixar escrito no livro dos viajantes puder, relido um dia por outros, entretê-los também na passagem, será bem. Se não o lerem, nem se entretiverem, será bem também.

Sou, em grande parte, a mesma prosa que escrevo. Tornei-me uma figura de livro, uma vida lida. O que sinto é(sem que eu queira) sentido para se escrever que se sentiu. O que penso está logo em palavras, misturado com imagens que o desfazem, aberto em ritmos que são outra coisa qualquer. De tanto recompor-me, destruí-me. De tanto pensar-me, sou já meus pensamentos mas não eu. Sondei-me e deixei cair a sonda; vivo a pensar se sou fundo ou não, sem outra sonda agora senão o olhar que me mostra, claro a negro no espelho do poço alto, meu próprio rosto que me contempla a contemplá-lo.

De repente, como se um destino mágico me houvesse operado de uma cegueira antiga com grandes resultados súbitos, ergo a cabeça, da minha vida anônima, para o conhecimento claro de como existo. E vejo que tudo quanto tenho feito, tudo quanto tenho pensado, tudo quanto tenho sido, é uma espécie de engano e de loucura. Maravilho-me do que consegui não ver. Estranho quanto fui e que vejo que afinal não sou.

Olho, como numa extensão ao sol que rompe nuvens, a minha vida

passada; e noto, com um pasmo metafísico, como todos os meus gestos mais certos, as minhas ideias mais claras, e os meus propósitos mais lógicos, não foram, afinal, maisque bebedeira nata, loucura natural, grande desconhecimento. Nem sequer representei. Representaram-me. Fui, não o ator, mas os gestos dele.

Tudo quanto tenho feito, pensado, sido, é uma soma de subordinações, ou a um ente falso que julguei meu, por que agi dele para fora, ou de um peso de circunstâncias que supus ser o ar que respirava. Sou, neste momento de ver, um solitário súbito, que se reconhece desterrado onde se encontrou sempre cidadão. No mais íntimo do que pensei não fui eu.

Vem-me, então, um terror sarcástico da vida, um desalento que passa os limites da minha individualidade consciente. Sei que fui erro e descaminho, que nunca vivi, que existi somente porque enchi tempo com consciência e pensamento. E a minha sensação de mim é a de quem acorda depois de um sono cheio de sonhos reais, ou a de quem é liberto, por um terremoto, da luz pouca do cárcere a que se habituara.

Pesa-me, realmente me pesa, como uma condenação a conhecer, esta noção repentina da minha individualidade verdadeira, dessa que andou sempre viajando sonolentamente entre o que sente e o que vê.

É tão difícil descrever o que se sente quando se sente que realmente se existe, e que a alma é uma entidade real, que não sei quais são as palavras humanas que possa defini-lo. Não sei se estou com febre, como sinto, se deixei de ter a febre de ser dormidor da vida. Sim, repito, sou como um viajante que de repente se encontre numa vila estranha, sem saber como ali chegou; e ocorrem-me esses casos dos que perdem a memória, e são outros durante muito tempo.

Fui outro durante muito tempo - desde a nascença e a consciência -, e acordo agora no meio da ponte, debruçado sobre o rio, e sabendo que existo mais firmemente do que fui até aqui. Mas a cidade é-me incógnita, as ruas novas, e o mal sem cura. Espero, pois, debruçado sobre a ponte, que me passe a verdade, e eu me restabeleça nulo e fictício, inteligente e natural.

Foi um momento, e já passou. Já vejo os móveis que me cercam, os desenhos do papel velho das paredes, o sol pelas vidraças poeirentas. Vi a verdade um momento. Fui um momento, com consciência, o que os grandes homens são com a vida. Com a vida? Recordo-lhes os atos e as palavras, e não sei se não foram também tentados vencedoramente pelo Demônio da Realidade.

Não saber de si é viver. Saber mal de si é pensar. Saber de si, de repente, como neste momento lustral, é ter subitamente a noção da mônada íntima, da palavra mágica daalma. Mas essa luz súbita cresta tudo, consome tudo, deixa-nos nus até de nós.

Foi só um momento, e vi-me. Depois já não sei sequer dizer o que fui. E, por fim, tenho sono, porque, não sei porquê, acho que o sentido é dormir.

Sinto-me às vezes tocado, não sei porquê, de um prenúncio de morte... Ou seja, uma vaga doença, que se não materializa em dor e por isso tende a espiritualizar-se em fim, ou seja, um cansaço que quer um sono tão profundo que o dormir lhe não basta - o certo é que sinto como se, no fim de um piorar de doente, por fim largasse sem violência ou saudade as mãos débeis de sobre a colcha, sentida.

Considero então que coisa é esta a que chamamos morte. Não quer dizer o mistério da morte, que não penetro, mas a sensação física de cessar de viver. A humanidade tem medo da morte, mas incertamente o homem normal bate-se bem em exercício, o homem normal, doente ou velho, raras vezes olha com horror o abismo do nada que ele atribui a esse abismo. Tudo isso é falta de imaginação. Nem há nada menos de quem pensa que supor a morte um sono. Porque o há de ser se a morte se não assemelha ao sono? O essencial do sono é o acordar-se dele, e da morte, supomos, não se acorda. E se a morte se assemelha ao sono, deveremos ter a noção de que se acorda dela. Não é isso, porém, o que o homem normal se figura: figura para si a morte como um sono de que não se acorda, o que nada quer dizer. A morte, disse não se assemelha ao sono, pois no sono se está vivo e dormindo; nem sei como pode alguém assemelhar a morte a qualquer coisa, pois não pode ter experiência dela, ou coisa com que a comparar.

A mim, quando vejo um morto, a morte parece-me uma partida O cadáver dá-me a impressão de um trajo que se deixou. Alguém se foi embora e não precisou de levar aquele fato único que vestira.

Há um cansaço da inteligência abstrata e é o mais horroroso dos cansaços. Não pesa como o cansaço do corpo nem inquieta como o cansaço pela emoção. É um peso da consciência o mundo, um não poder respirar com a alma.

Então, como se o vento nelas desse, e fossem nuvens, todas as ideias em que temos sentido a vida, todas as ambições e desígnios em que temos fundado a esperança nacontinuação dela, se rasgam, se abrem,

se afastam tornadas cinzas de nevoeiros, farrapos do que não foi nem poderia ser. E por detrás da derrota surge pura a solidão negra e implacável do céu deserto e estrelado.

O mistério da vida dói-nos e apavora-nos de muitos modos. Umas vezes vem sobre nós como um fantasma sem forma, e a alma treme com o pior dos medos - a da incarnação disforme do Não-ser. Outras vezes está atrás de nós, visível só quando nos não voltamos para ver, e é a verdade toda no seu horror profundíssimo de a desconhecermos.

Mas este horror que hoje me anula é menos nobre e mais roedor. É uma vontade de não querer ter pensamento, um desejo de nunca ter sido nada, um desespero consciente de todas as células do corpo e da alma. E o sentimento súbito de se estar enclausurado numa cela infinita. Para onde pensar em fugir, se só a cela é tudo?

E então vem-me o desejo transbordante, absurdo, de uma espécie de satanismo que precedeu Satan, de que um dia - um dia sem tempo nem substância - se encontre uma fuga para fora de Deus e o mais profundo de nós deixe, não sei como, de fazer parte do ser ou do não-ser.

O ambiente é a alma das coisas. Cada coisa tem uma expressão própria e essa expressão vem-lhe de fora.

Cada coisa é a intersecção de três linhas, e essas três linhas formam essa coisa: uma quantidade de matéria, o modo como interpretamos, e o ambiente em que está. Esta mesa, a que estou escrevendo, é um pedaço de madeira, é uma mesa, e é um móvel entre outros aqui neste quarto. A minha impressão desta mesa, se a quiser transcrever, terá que ser composta das noções de que ela é de madeira, de que eu chamo àquilo uma mesa e lhe atribuo certos usos e fins, e de que nela se refletem, nela se inserem, e a transformam, os objetos em cuja justaposição ela tem alma externa, o que lhe está posto em cima.

E a própria cor que lhe foi dada, o desbotamento dessa cor, as nódoas e partidos que tem - tudo isso, repare-se, lhe veio de fora, e é isso que, mais que a sua essência de madeira, lhe dá a alma. E o íntimo dessa alma, que é o ser mesa, também lhe foi dado de fora, que é a personalidade.

Acho, pois, que não há erro humano, nem literário, em atribuir alma às coisas que chamamos inanimadas. Ser uma coisa é ser objeto deuma atribuição. Pode ser falso dizer que uma árvore sente, que um rio "corre", que um poente é magoado ou o mar calmo(azul pelo céu que

não tem) é sorridente(pelo sol que lhe está fora). Mas igual erro é atribuir beleza a qualquer coisa. Igual erro é atribuir cor, forma, porventura até ser, a qualquer coisa. Este mar é água salgada. Este poente é começar a faltar a luz do sol nesta latitude e longitude. Esta criança, que brinca diante de mim, é um amontoado intelectual de células - mais, é uma relojoaria de movimentos subatômicos, estranha conglomeração elétrica de milhões de sistemas solares em miniatura mínima.

Tudo vem de fora e a mesma alma humana não é porventura mais que o raio de sol que brilha e isola do chão onde jaz o monte de estrume que é o corpo.

Nestas considerações está porventura toda uma filosofia, para quem pudesse ter a força de tirar conclusões. Não a tenho eu, surgem-me atentos pensamentos vagos, de possibilidades lógicas, e tudo se me esbate numa visão de um raio de sol dourando estrume como palha escura umidamente amachucada, no chão quase negro ao pé de um muro de pedregulhos.

Assim sou. Quando quero pensar, vejo. Quando quero descer na minha alma, fico de repente parado, esquecido, no começo de espiral da escada profunda, vendo pela janela do andar alto o sol que molha de despedida fulva o aglomerado difuso dos telhados.

Quantas vezes, presa da superfície e do bruxedo, me sinto homem. Então convivo com alegria e existo com clareza. Sobrenado. E é-me agradável receber o ordenado e ir para casa. Sinto o tempo sem o ver, e agrada-me qualquer coisa orgânica. Se medito, não penso. Nesses dias gosto muito dos jardins.

Não sei que coisa estranha e pobre existe na substância íntima dos jardins citadinos que só a posso sentir bem quando me não sinto bem a mim. Um jardim é um resumo da civilização - uma modificação anônima da natureza. As plantas estão ali, mas há ruas-ruas. Crescem árvores, mas há bancos por baixo da sua sombra. No alinhamento virado para os quatro lados da cidade, ali só largo, os bancos são maiores e têm quase sempre gente.

Não odeio a regularidade das flores em canteiros. Odeio, porém, o emprego público das flores. Se os canteiros fossem em parques fechados, se as árvores crescessem sobre recantos feudais, se os bancos não tivessem alguém, haveria com que consolar-me na contemplação inútil dos jardins. Assim, na cidade, regrados mas úteis, os jardins são

para mim como gaiolas, em que as espontaneidades coloridas das árvores e das floresnão têm senão espaço para o não ter, lugar para dele não sair, e a beleza própria sem a vida que pertence a ela.

Mas há dias em que esta é a paisagem que me pertence, e em que entro como um figurante numa tragédia cômica. Nesses dias estou errado, mas, pelo menos em certo modo, sou mais feliz. Se me distraio, julgo que tenho realmente casa, lar aonde volte. Se me esqueço, sou normal, poupado para um fim, escovo um outro fato e leio um jornal todo.

Mas a ilusão não dura muito, tanto porque não dura como porque a noite vem. E a cor das flores, a sombra das árvores, o alinhamento de ruas e canteiros, tudo se esbate e encolhe. Por cima do erro e de eu estar homem abre-se de repente, como se a luz do dia fosse um pano de teatro que se escondesse para mim, o grande cenário das estrelas. E então esqueço com os olhos a plateia amorfa e aguardo os primeiros atores com um sobressalto de criança no circo.

Estou liberto e perdido.

Sinto. Esfrio febre. Sou eu.

Aquilo que, creio, produz em mim o sentimento profundo, em que vivo, de incongruência com os outros, e que a maioria pensa com a sensibilidade e eu sinto com o pensamento.

Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim, pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar.

É curioso que, sendo escassa a minha capacidade de entusiasmo, ela é naturalmente mais solicitada pelos que se me opõem em temperamento do que pelos que são da minha espécie espiritual. A ninguém admiro, na literatura, mais que aos clássicos, que são a quem menos me assemelho. A ter que escolher, para leitura única, entre Chateaubriand e Vieira, escolheria Vieira sem necessidade de meditar.

Quanto mais diferente de mim alguém é, mais real me parece, porque menos depende da minha subjetividade. E é por isso que o meu estudo atento e constante é essa mesma humanidade vulgar que repugno e de quem disto. Amo-a porque a odeio. Gosto de vê-la porque detesto senti-la. A paisagem, tão admirável como quadro, é em geral incômoda como leito.

Penso às vezes com um agrado(em bissecção) na possibilidade futura de uma geografia da nossa consciência de nós próprios. A meu ver, o

historiador futuro das suas próprias sensações poderá talvez reduzir a uma ciência precisa a sua atitude para com a sua consciência da sua própria alma. Por enquanto vemos em princípio nesta arte difícil - arte ainda, química de sensaçõesno seu estado alquímico por ora. Esse cientista de depois de amanhã terá um escrúpulo especial pela sua própria vida interior. Criará de si mesmo o instrumento de precisão para a reduzir a analisada. Não vejo dificuldade essencial em construir um instrumento de precisão, para uso autoanalítico, com aços e bronzes só do pensamento. Refiro-me a aços e bronzes realmente aços e bronzes, mas do espírito. É talvez mesmo assim que ele deva ser construído.

Será talvez preciso arranjar a ideia de um instrumento de precisão, materialmente vendo essa ideia, para poder proceder a uma rigorosa análise íntima. E naturalmente será necessário reduzir também o espírito a uma espécie de matéria com uma espécie de espaço em que existe. Depende tudo isso do aguçamento externo das nossas sensações interiores, que, levadas até onde podem ser, sem dúvida revelarão, ou criarão, em nós um espaço real como o espaço que há onde as coisas da matéria estão, e que, aliás, é irreal como coisa.

Não sei mesmo se este espaço interior não será apenas uma nova dimensão do outro. Talvez a investigação científica do futuro venha a descobrir que tudo são dimensões do mesmo espaço, nem material nem espiritual por isso. Numa dimensão viveremos corpo; na outra viveremos alma. E há talvez outras dimensões onde viveremos outras coisas igualmente reais de nós. Apraz-me às vezes deixar-me possuir pela meditação inútil do ponto até onde esta investigação pode levar.

Talvez se descubra que aquilo a que chamamos Deus, e que tão patentemente está em outro plano que não a lógica e a realidade espacial e temporal, é um nosso modo de existência, uma sensação de nós em outra dimensão do ser. Isto não me parece impossível. Os sonhos também serão talvez ou ainda outra dimensão em que vivemos, ou um cruzamento de duas dimensões; como um corpo vive na altura, na largura e no comprimento, os nossos sonhos, quem sabe, viverão no ideal, no eu e no espaço. No espaço pela sua representação visível; no ideal pela sua apresentação de outro gênero que a da matéria; no eu pela sua íntima dimensão de nossos.

O próprio Eu, o de cada um de nós, é talvez uma dimensão divina. Tudo isto é complexo e a seu tempo, sem dúvida, será determinado. Os sonhadores atuais são talvez os grandes precursores da ciência final do

futuro. Não creio, é claro, numa ciência final do futuro. Mas isto nada tem para o caso.

Faço às vezes metafísicas destas, com a atenção escrupulosa e respeitosa de quem trabalha deveras e faz ciência. Já disse que chega a ser possível que a esteja realmente fazendo. O essencial é eu não meorgulhar muito com isto, dado que o orgulho é prejudicial à exata imparcialidade da precisão científica.

Reconhecer a realidade como uma forma da ilusão, e a ilusão como uma forma da realidade, é igualmente necessário e igualmente inútil. A vida contemplativa, para sequer existir, tem que considerar os acidentes objetivos como premissas dispersas de uma conclusão inatingível; mas tem ao mesmo tempo que considerar as contingências do sonho como em certo modo dignas daquela atenção a elas, pela qual nos tornamos contemplativos.

Qualquer coisa, conforme se considera, é um assombro ou um estorvo, um tudo ou um nada, um caminho ou uma preocupação. Considerá-la cada vez de um modo diferente é renová-la, multiplicá-la por si mesma. É por isso que o espírito contemplativo que nunca saiu da sua aldeia tem contudo à sua ordem o universo inteiro. Numa cela ou num deserto está o infinito. Numa pedra dorme-se cosmicamente.

Há, porém, ocasiões da meditação - e a todos quantos meditam elas chegam - em que tudo está gasto, tudo velho, tudo visto, ainda que esteja por ver. Porque, por mais que meditemos qualquer coisa, e, meditando-a, a transformemos, nunca a transformamos em qualquer coisa que não seja substância de meditação. Chega-nos então a ânsia da vida, de conhecer sem ser com o conhecimento, de meditar só com os sentidos ou pensar de um modo táctil ou sensível, de dentro do objeto pensado, como se fôssemos água e ele esponja. Então também temos a nossa noite, e o cansaço de todas as emoções aprofunda-se com serem emoções do pensamento, já de si profundas. Mas é uma noite sem repouso, sem luar, sem estrelas, uma noite como se tudo houvesse sido virado do avesso - o infinito tornado interior e apertado, o dia feito forro negro de um traje desconhecido.

Mais vale, sim, mais vale sempre ser a lesma humana que ama e desconhece, a sanguessuga que é repugnante sem o saber. Ignorar como vida! Sentir como esquecimento! Que episódios perdidos na esteira verde branca das naus idas, como um cuspo frio do leme alto a servir de nariz sob os olhos das câmaras velhas!

Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir - é lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida.

Apagar tudo do quadro de um dia para o outro, ser novo com cada nova madrugada, numa revirgindade perpétua da emoção - isto, e só isto, vale apena ser ou ter, para ser ou ter o que imperfeitamente somos.

Esta madrugada é a primeira do mundo. Nunca esta cor rosa amarelecendo para branco quente pousou assim na face com que a casaria de oeste encara cheia de olhos vidrados o silêncio que vem na luz crescente. Nunca houve esta hora, nem esta luz, nem este meu ser. Amanhã o que for será outra coisa, e o que eu vir será visto por olhos recompostos, cheios de uma nova visão.

Altos montes da cidade! Grandes arquiteturas que as encostas íngremes seguram e engrandecem, resvalamentos de edifícios diversamente amontoados, que a luz tece de sombras e queimações - sois hoje, sois eu, porque vos vejo sois o que amanhece e amo-vos da amurada como um navio que passa por outro navio e há saudades desconhecidas na passagem.

Durei horas incógnitas, momentos sucessivos sem relação, no passeio em que fui, de noite, à beira sozinha do mar. Todos os pensamentos, que têm feito viver homens, todas as emoções, que os homens têm deixado de viver, passaram por minha mente, como um resumo escuro da história, nessa minha meditação andada à beira-mar.

Sofri em mim, comigo, as aspirações de todas as eras, e comigo passearam, à beira ouvida do mar, os desassossegos de todos os tempos. O que os homens quiseram e não fizeram, o que mataram fazendo-o, o que as almas foram e ninguém disse - de tudo isto se formou a alma sensível com que passeei de noite à beira-mar. E o que os amantes estranharam no outro amante, o que a mulher ocultou sempre ao marido de quem é, o que a mãe pensa do filho que não teve, o que teve forma só num sorriso ou numa oportunidade, num tempo que não foi esse ou numa emoção que falta - tudo isso, no meu passeio à beira-mar, foi comigo e voltou comigo, e as ondas estorciam magnamente o acompanhamento que me fazia dormi-lo.

Somos quem não somos, e a vida é pronta e triste. O som das ondas à noite é um som da noite; e quantos o ouviram na própria alma, como a

esperança constante que se desfaz no escuro com um som surdo de espuma funda! Que lágrimas choraram os que obtiveram, que lágrimas perderam os que conseguiram! E tudo isto, no passeio à beira-mar, se me tornou o segredo da noite e da confidência do abismo. Quantos somos! Quantos nos enganamos! Que mares soam em nós, na noite de sermos, pelas praias que nos sentimos nos alagamentos da emoção!

Aquilo que se perdeu, aquilo quese deveria ter querido, aquilo que se obteve e satisfez por erro, o que amamos e perdemos e, depois de perder, vimos, amando por tê-lo perdido, que o não havíamos amado; o que julgávamos que pensávamos quando sentíamos; o que era uma memória e críamos que era uma emoção; e o mar todo, vindo lá, rumoroso e fresco, do grande fundo de toda a noite, a estuar fino na praia, no decurso noturno do meu passeio à beira-mar...

Quem sabe sequer o que pensa ou ,o que deseja? Quem sabe o que é para si mesmo? Quantas coisas a música sugere e nos sabe bem que não possam ser! Quantas a noite recorda e choramos e não foram nunca!

Como uma voz solta da paz deitada ao comprido, a enrolação da onda estoura e esfria e há um salivar audível pela praia invisível fora.

Quanto morro se sinto por tudo! Quanto sinto se assim vagueio, incorpóreo e humano, com o coração parado como uma praia, e todo o mar de tudo, na noite em que vivemos, batendo alto, chasco, e esfria-se, no meu eterno passeio noturno à beira-mar!

A vida é para nós o que concebemos dela. Para o rústico cujo campo próprio lhe é tudo, esse campo é um império. Para César cujo império lhe ainda é pouco, esse império é um campo. O pobre possui um império; o grande possui um campo. Na verdade, não possuímos mais que nossas próprias sensações; nelas, pois, que não no que elas veem, temos que fundamentar a realidade da nossa vida.

Isto não vem a propósito de nada.

Tenho sonhado muito. Estou cansado de ter sonhado, porém não cansado de sonhar. De sonhar ninguém se cansa, porque sonhar é esquecer, e esquecer não pesa e é um sono sem sonhos em que estamos despertos. Em sonhos consegui tudo. Também tenho despertado, mas que importa? Quantos Césares fui! E os gloriosos, que mesquinhos! César, salvo da morte pela generosidade de um pirata, manda crucificar esse pirata logo que, procurando-o bem, o consegue

prender. Napoleão, fazendo seu testamento em Santa Helena, deixa um legado a um facínora que tentara assassinar a Wellington. Ó grandezas iguais às da alma da vizinha vesga! Ó grandes homens da cozinheira de outro mundo! Quantos Césares fui, e sonho todavia ser.

Quantos Césares fui, mas não dos reais. Fui verdadeiramente imperial quando sonhei, e por isso nunca fui nada. Os meus exércitos foram derrotados, mas a derrota foi fofa, e ninguém morreu. Não perdi bandeiras. Não sonhei até o ponto do exército, onde elas aparecessem em meu olhar em cujo sonho há esquina. Quantos Césares fui, aqui mesmo,na Rua dos Douradores. E os Césares que fui vivem ainda na minha imaginação; mas os Césares que foram estão mortos, e a Rua dos Douradores, isto é, a Realidade, não os pode conhecer.

Atiro com a caixa de fósforos, que está vazia, para o abismo que a rua é para além do parapeito da minha janela alta sem sacada. Ergo-me na cadeira e escuto. Nitidamente, como se significasse qualquer coisa, a caixa de fósforos vazia soa na rua que me declara deserta. Não há mais som nenhum, salvo os da cidade inteira. Sim, os da cidade inteira - tantos, sem se entenderem, e todos certos.

Quão pouco, no mundo real, forma o suporte das melhores meditações. O ter chegado tarde para almoçar, o terem-se acabado os fósforos, o ter eu atirado, individualmente, a caixa para a rua, a má-disposição por ter comido fora das horas, ser domingo a promessa aérea de um poente mau, o não ser ninguém no mundo, e toda a metafísica.

Mas quantos Césares fui!

Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida. A música embala, as artes visuais animam, as artes vivas(como a dança e o representar) entretêm. A primeira, porém, afasta-se da vida por fazer dela um sono; as segundas, contudo, não se afastam da vida - umas porque usam de fórmulas visíveis e portanto vitais, outras porque vivem da mesma vida humana.

Não é esse o caso da literatura. Essa simula a vida. Um romance é uma história do que nunca foi, e um drama é um romance dado sem narrativa. Um poema é uma expressão de ideias ou de sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois que ninguém fala em verso.

Toda a alma digna de si própria deseja viver a vida em Extremo. Contentar-se com o que lhe dão é próprio dos escravos. Pedir mais é próprio das crianças. Conquistar mais é próprio dos loucos, porque toda

a conquista é(...)

Viver a vida em Extremo significa vivê-la até ao limite, mas há três maneiras de o fazer, e a cada alma elevada compete escolher uma das maneiras. Pode viver-se a vida em extremo pela posse extrema dela, pela viagem ulisseia através de todas as sensações vividas, através de todas as formas de energia exteriorizada. Raros, porém, são, em todas as épocas do mundo, os que podem fechar os olhos cheios do cansaço soma de todos os cansaços, os que possuíram tudo de todas as maneiras.

Raros podem assim exigir da vida, conseguindo-o, que ela se lhes entregue corpo e alma; sabendo não ser ciumentos dela por saberter-lhe o amor inteiramente. Mas este deve ser, sem dúvida, o desejo de toda a alma elevada e forte. Quando essa alma, porém, verifica que lhe impossível tal realização, que não tem forças para a conquista de todas as partes do Todo, tem dois outros caminhos que siga - um, a abdicação inteira, a abstenção formal, completa relegando para a esfera da sensibilidade aquilo que não pode possuir integralmente na região da atividade e da energia. Mais vale supremamente não agir que agir inutilmente, fragmentariamente, imbastantemente, como a inúmera supérflua maioria inane dos homens; outro, o caminho do perfeito equilíbrio, a busca do Limite da Proporção Absoluta, por onde a ânsia de Extremo passa da vontade e da emoção para a Inteligência, sendo toda a ambição não de viver toda a vida, não de sentir toda a vida, mas de ordenar toda a vida, de a cumprir em Harmonia e Coordenação inteligente.

A ânsia de compreender, que para tantas almas nobres substitui a de agir, pertence à esfera da sensibilidade. Substituir a Inteligência à energia, quebrar o elo entre a vontade e a emoção, despindo de interesse todos os gestos da vida material, eis o que, conseguido, vale mais que a vida, tão difícil de possuir completa, e tão triste de possuir parcial.

Diziam os argonautas que navegar é preciso, mas que viver não é preciso. Argonautas, nós, da sensibilidade doentia, digamos que sentir é preciso, mas que não é preciso viver.

Há uma erudição do conhecimento, que é propriamente o que se chama erudição, e há uma erudição do entendimento, que é o que se chama cultura. Mas há também uma erudição da sensibilidade.

A erudição da sensibilidade nada tem a ver com a experiência da vida.

A experiência da vida nada ensina, como a história nada informa.

A verdadeira experiência consiste em restringir o contacto com a realidade e aumentar a análise desse contacto. Assim a sensibilidade se alarga e aprofunda, porque em nós está tudo; basta que o procuremos e o saibamos procurar.

Que é viajar, e para que serve viajar? Qualquer poente é o poente; não é mister ir vê-lo a Constantinopla. A sensação de libertação, que nasce das viagens? Posso tê-la saindo de Lisboa até Benfica, e tê-la mais intensamente do que quem vá de Lisboa à China, porque se a libertação não está em mim, não está, para mim, em parte alguma. "Qualquer estrada", disse Carlyle, "até esta estrada de Entepfuhl, te leva até ao fim do mundo." Mas a estrada de Entepfuhl, se for seguida toda, e até ao fim, volta a Entepfuhl; demodo que o Entepfuhl, onde já estávamos, é aquele mesmo fim do mundo que íamos a buscar.

Condillac começa o seu livro célebre, "Por mais alto que subamos e mais baixo que desçamos, nunca saímos das nossas sensações". Nunca desembarcamos de nós. Nunca chegamos a outrem, senão outrando-nos pela imaginação sensível de nós mesmos As verdadeiras paisagens são as que nós mesmos criamos, porque assim, sendo deuses delas, as vemos como elas verdadeiramente são, que é como foram criadas. Não é nenhuma das sete partidas do mundo aquela que me interessa e posso verdadeiramente ver; a oitava partida é a que percorro e é minha.

Quem cruzou todos os mares cruzou somente a monotonia de si mesmo. Já cruzei mais mares do que todos. Já vi mais montanhas que as que há na terra. Passei já por cidades mais que as existentes, e os grandes rios de nenhuns mundos fluíram, absolutos, sob os meus olhos contemplativos. Se viajasse, encontraria a cópia débil do que já vira sem viajar.

Nos países que os outros visitam, visitam-nos anônimos e peregrinos. Nos países que tenho visitado, tenho sido, não só o prazer escondido do viajante incógnito, mas a majestade do Rei que ali reina, e o povo cujo uso ali habita, e a história inteira daquela nação e das outras. As mesmas paisagens, as mesmas casas eu as vi porque as fui, feitas em Deus com a substância da minha imaginação.

A renúncia é a libertação. Não querer é poder.

Que me pode dar a China que a minha alma me não tenha já dado? E, se a minha alma mo não pode dar, como mo dará a China, se é com a

minha alma que verei a China, se a vir? Poderei ir buscar riqueza ao Oriente, mas não riqueza de alma, porque a riqueza de minha alma sou eu, e eu estou onde estou, sem Oriente ou com ele.

Compreendo que viaje quem é incapaz de sentir. Por isso são tão pobres sempre como livros de experiência os livros de viagens, valendo somente pela imaginação de quem os escreve. E se quem os escreve tem imaginação, tanto nos pode encantar com a descrição minuciosa, fotográfica a estandartes, de paisagens que imaginou, como com a descrição, forçosamente menos minuciosa, das paisagens que supôs ver. Somos todos míopes, exceto para dentro. Só o sonho vê com(o) olhar.

No fundo, há na nossa experiência da terra duas coisas - o universal e o particular. Descrever o universal é descrever o que é comum a toda a alma humana e a toda a experiência humana - o céu vasto, com o dia e anoite que acontecem dele e nele; o correr dos rios - todos da mesma água sororal e fresca; os mares, montanhas tremulamente extensas, guardando a majestade da altura no segredo da profundeza; os campos, as estações, as casas, as caras, os gestos; o traje e os sorrisos; o amor e as guerras; os deuses, finitos e infinitos; a Noite sem forma, mãe da origem do mundo; o Fado, o monstro intelectual que é tudo... Descrevendo isto, ou qualquer coisa universal como isto, falo com a alma a linguagem primitiva e divina, o idioma adâmico que todos entendem. Mas que linguagem estilhaçada e babélica falaria eu quando descrevesse o Elevador de Santa Justa, a Catedral de Reims, os calções dos zuavos, a maneira como o português se pronuncia em Trás-os-Montes? Estas coisas são acidentes da superfície; podem sentir-se com o andar mas não com o sentir. O que no Elevador de Santa Justa é universal é a mecânica facilitando o mundo. O que na Catedral de Reims é verdade não é a Catedral nem o Reims, mas a majestade religiosa dos edifícios consagrados ao conhecimento da profundeza da alma humana. O que nos calções dos zuavos é eterno é a ficção colorida dos trajes, linguagem humana, criando uma simplicidade social que é em seu modo uma nova nudez. O que nas pronúncias locais é universal é o timbre caseiro das vozes de gente que vive espontânea, a diversidade dos seres juntos, a sucessão multicolor das maneiras, as diferenças dos povos, e a vasta variedade das nações.

Transeuntes eternos por nós mesmos, não há paisagem senão o que somos. Nada possuímos, porque nem a nós possuímos. Nada temos porque nada somos. Que mãos estenderei para que universo? O

universo não é meu: sou eu.

O homem perfeito do pagão era a perfeição do homem que há; o homem perfeito do cristão a perfeição do homem que não há; o homem perfeito do budista a perfeição de não haver o homem.

A natureza é a diferença entre a alma e Deus.

Tudo quanto o homem expõe ou exprime é uma nota à margem de um texto apagado de todo. Mais ou menos, pelo sentido da nota, tiramos o sentido que havia de ser o do texto; mas fica sempre uma dúvida, e os sentidos possíveis são muitos.

Muitos têm definido o homem, e em geral o têm definido em contraste com os animais. Por isso, nas definições do homem, é frequente o uso da frase "o homem é um animal..." e um adjetivo, ou "o homem é um animalque..." e diz-se o quê. "O homem é um animal doente", disse Rousseau, e em parte é verdade. "O homem é um animal racional", diz a Igreja, e em parte é verdade, "O homem é um animal que usa de ferramenta", diz Carlyle, e em parte é verdade. Mas estas definições, e outras como elas, são sempre imperfeitas e laterais. E a razão é muito simples: não é fácil distinguir o homem dos animais, não há critério seguro para distinguir o homem dos animais. As vidas humanas decorrem na mesma íntima inconsciência que as vidas dos animais. As mesmas leis profundas, que regem de fora os instintos dos animais, regem, também, de fora, a inteligência do homem, que parece não ser mais que um instinto em formação, cão inconsciente como todo instinto, menos perfeito porque ainda não formado.

"Tudo vem da sem-razão", diz-se na Antologia Grega. E, na verdade, tudo vem da sem-razão. Fora da matemática que não tem que ver senão com números mortos e fórmulas vazias, e por isso pode ser perfeitamente lógica, a ciência não é senão um jogo de crianças no crepúsculo, um querer apanhar sombras de aves e parar sombras de ervas ao vento.

E é curioso e estranho que, não sendo fácil encontrar palavras com que verdadeiramente se defina o homem como distinto dos animais, é todavia fácil encontrar maneira de diferençar o homem superior do homem vulgar.

Nunca me esqueceu aquela frase de Haeckel, o biologista, que li na infância da inteligência, quando se leem as divulgações científicas e as razões contra a religião. A frase é esta, ou quase esta: que muito mais

longe está o homem superior(um Kant ou um Goethe, creio que diz) do homem vulgar que o homem vulgar do macaco. Nunca esqueci a frase porque ela é verdadeira. Entre mim, que pouco sou na ordem dos que pensam, e um camponês de Loures vai, sem dúvida, maior distância que entre esse camponês e, já não digo um macaco, mas um gato ou um cão. Nenhum de nós, desde o gato até mim, conduz de fato a vida que lhe é imposta, ou o destino que lhe é dado; todos somos igualmente derivados de não sei quê, sombras de gestos feitos por outrem, efeitos encarnados, consequências que sentem. Mas entre mim e o camponês há uma diferença de qualidade, proveniente da existência em mim do pensamento abstracto e da emoção desinteressada; e entre ele e o gato não há, no espírito, mais que uma diferença de grau.

O homem superior difere do homem inferior, e dos animais irmãos deste, pela simples qualidade da ironia. A ironiaé o primeiro indício de que a consciência se tornou consciente. E a ironia atravessa dois estádios: o estádio marcado por Sócrates, quando disse "sei só que nada sei", e o estádio marcado por Sanches, quando disse "nem sei se nada sei". O primeiro passo chega àquele ponto em que duvidamos de nós dogmaticamente, e todo o homem superior o dá e atinge. O segundo passo chega àquele ponto em que duvidamos de nós e da nossa dúvida, e poucos homens o têm atingido na curta extensão já tão longa do tempo que, humanidade, temos visto o sol e a noite sobre a vária superfície da terra.

Conhecer-se é errar, e o oráculo que disse "Conhece-te" propôs uma tarefa maior que as de Hércules e um enigma mais negro que o da Esfinge. Desconhecer-se conscientemente, eis o caminho. E desconhecer-se conscienciosamente é o emprego ativo da ironia. Nem conheço coisa maior, nem mais própria do homem que é deveras grande, que a análise paciente e expressiva dos modos de nos desconhecermos, o registro consciente da inconsciência das nossas consciências, a metafísica das sombras autônomas, a poesia do crepúsculo da desilusão.

Mas sempre qualquer coisa nos ilude, sempre qualquer análise se nos embota, sempre a verdade, ainda que falsa, está além da outra esquina. E é isto que cansa mais que a vida, quando ela cansa, e de que o conhecimento e meditação dela, que nunca deixam de cansar.

Ergo-me da cadeira de onde, fincado distraidamente contra a mesa, me entretive a narrar para mim estas impressões irregulares. Ergo-me,

ergo o corpo nele mesmo, e vou até à janela, alta acima dos telhados, de onde posso ver a cidade ir a dormir num começo lento de silêncio. A lua, grande e de um branco branco, elucida tristemente as diferenças socalcadas da casaria. E o luar parece iluminar algidamente todo o mistério do mundo. Parece mostrar tudo, e tudo é sombras com misturas de luz má, intervalos falsos, desniveladamente absurdos, incoerências do visível. Não há brisa, e parece que o mistério é maior. Tenho náuseas no pensamento abstrato. Nunca escreverei uma página que me revele ou que revele alguma coisa. Uma nuvem muito leve paira vaga acima da lua, como um esconderijo. Ignoro como estes telhados. Falhei, como a natureza inteira.

Todo o dia, em toda a sua desolação de nuvens leves e mornas, foi ocupado pelas informações de que havia revolução. Estas notícias, falsas ou certas, enchem-me sempre de um desconforto especial, misto de desdém e de náusea física. Dói-me na inteligência que alguém julgue que altera alguma coisa agitando-se. A violência, seja qual for, foisempre para mim uma forma esbugalhada de estupidez humana. Depois, todos os revolucionários são estúpidos, como, em grau menor, porque menos incômodo, o são todos os reformadores.

Revolucionário ou reformador - o erro é o mesmo. Impotente para dominar e reformar a sua própria atitude para com a vida, que é tudo, ou o seu próprio ser, que é quase tudo, o homem foge para querer modificar os outros e o mundo externo. Todo o revolucionário, todo o reformador, é um evadido. Combater é não ser capaz de combater-se. Reformar é não ter emenda possível.

O homem de sensibilidade justa e reta razão, se se acha preocupado com o mal e a injustiça do mundo, busca naturalmente emendá-la, primeiro, naquilo em que ela mais perto se manifesta; e encontrará isso em seu próprio ser. Levar-lhe-á essa obra toda a vida.

Tudo para nós está em nosso conceito do mundo; modificar o nosso conceito do mundo é modificar o mundo para nós, isto é, modificar o mundo, pois ele nunca será, para nós, senão o que é para nós.

Aquela justiça íntima pela qual escrevemos uma página fluente e bela, aquela reformação verdadeira, pela qual tornamos viva a nossa sensibilidade morta - essas coisas são a verdade, a nossa verdade, a única verdade. O mais que há no mundo é paisagem, molduras que enquadram sensações nossas, encadernações do que pensamos. E é-o quer seja a paisagem colorida das coisas e dos seres - os campos, as

casas, os cartazes e os trajos -, quer seja a paisagem incolor das almas monótonas, subindo um momento à superfície em palavras velhas e gestos gastos, descendo outra vez ao fundo na estupidez fundamental da expressão humana.

Revolução? Mudança? O que eu quero deveras, com toda a intimidade da minha alma, é que cessem as nuvens átonas que ensaboam cinzentamente o céu; o que eu quero é ver o azul começar a surgir de entre elas, verdade certa e clara porque nada é nem quer.

Uma só coisa me maravilha mais do que a estupidez com que a maioria dos homens vive a sua vida: é a inteligência que há nessa estupidez.

A monotonia das vidas vulgares é, aparentemente, pavorosa. Estou almoçando neste restaurante vulgar, e olho, para além do balcão, para a figura do cozinheiro, e, aqui ao pé de mim, para o criado já velho que me serve, como há trinta anos, creio, serve nesta casa. Que vidas são as destes homens? Há quarenta anos que aquela figura de homem vive quase todo o dia numa cozinha; tem umas breves folgas; dorme relativamente poucas horas; vai de vezem quando à terra, de onde volta sem hesitação e sem pena; armazena lentamente dinheiro lento, que se não propõe gastar; adoeceria se tivesse que retirar-se da sua cozinha(definitivamente) para os campos que comprou na Galiza; está em Lisboa há quarenta anos e nunca foi sequer à Rotunda, nem a um teatro, e há um só dia de Coliseu - palhaços nos vestígios interiores da sua vida. Casou não sei como nem porquê, tem quatro filhos e uma filha, e o seu sorriso, ao debruçar-se de lá do balcão em direção a onde eu estou, exprime uma grande, uma solene, uma contente felicidade. E ele não disfarça, nem que razão para que disfarce. Se a sente é porque verdadeiramente a tem.

E o criado velho que me serve, e que acaba de depor ante mim o que deve ser o milionésimo café da sua deposição de café em mesas? Tem a mesma vida que a do cozinheiro, apenas com a diferença de quatro ou cinco metros - os que distam da localização de um na cozinha para a localização do outro na parte de fora da casa de pasto. No resto, tem dois filhos apenas, vai mais vezes à Galiza, já viu mais Lisboa que o outro, e conhece o Porto, onde esteve quatro anos, e é igualmente feliz.

Revejo, com um pasmo assustado, o panorama destas vidas, e descubro, ao ir ter horror, pena, revolta delas, que quem não tem nem horror, nem pena, nem revolta, são os próprios que teriam direito a

tê-las, são os mesmos que vivem essas vidas. E o erro central da imaginação literária: supor que os outros são nós e que devem sentir como nós. Mas, felizmente para a humanidade, cada homem é só quem é, sendo dado ao gênio, apenas, o ser mais alguns outros.

Tudo, afinal, é dado em relação àquilo em que é dado. Um pequeno incidente de rua, que chama à porta o cozinheiro desta casa, entretém-no mais que me entretém a mim a contemplação da ideia mais original, a leitura do melhor livro, o mais grato dos sonhos inúteis. E, se a vida é essencialmente monotonia, o fato é que ele escapou à monotonia mais do que eu. E escapa à monotonia mais facilmente do que eu. A verdade não está com ele nem comigo, porque não está com ninguém; mas a felicidade está com ele deveras.

Sábio é quem monotoniza a existência, pois então cada pequeno incidente tem um privilégio de maravilha. O caçador de leões não tem aventura para além do terceiro leão Para o meu cozinheiro monótono uma cena de bofetadas na rua temsempre qualquer coisa de apocalipse modesto. Quem nunca saiu de Lisboa viaja no infinito no carro até Benfica, e, se um dia vai a Sintra, sente que viajou até Marte. O viajante que percorreu toda a terra não encontra de cinco mil milhas em diante novidade, porque encontra só coisas novas; outra vez a novidade, a velhice do eterno novo, mas o conceito abstrato de novidade ficou no mar com a segunda delas.

Um homem pode, se tiver a verdadeira sabedoria, gozar o espetáculo inteiro do mundo numa cadeira, sem saber ler, sem falar com alguém, só com o uso dos sentidos e a alma não saber ser triste.

Monotonizar a existência, para que ela não seja monótona. Tornar anódino o quotidiano, para que a mais pequena coisa seja uma distração. No meio do meu trabalho de todos os dias, baço, igual e inútil, surgem-me visões de fuga, vestígios sonhados de ilhas longínquas, festas em áleas de parques de outras eras, outras paisagens, outros sentimentos, outro eu. Mas reconheço, entre dois lançamentos, que se tivesse tudo isso, nada disso seria meu. Mais vale, na verdade, o patrão Vasques que os Reis de Sonho; mais vale, na verdade, o escritório da Rua dos Douradores do que as grandes áleas dos parques impossíveis. Tendo o patrão Vasques, posso gozar o sonho dos Reis de Sonho; tendo o escritório da Rua dos Douradores, posso gozar a visão interior das paisagens que não existem. Mas se tivesse os Reis de Sonho, que me ficaria para sonhar? Se tivesse as paisagens impossíveis, que me

restaria de impossível?

A monotonia, a igualdade baça dos dias mesmos, a nenhuma diferença de hoje para ontem - isto me fique sempre, com a alma desperta para gozar da mosca que me distrai, passando casual ante meus olhos, da gargalhada que se ergue volúvel da rua incerta, a vasta libertação de serem horas de fechar o escritório, o repouso infinito de um dia feriado.

Posso imaginar-me tudo, porque não sou nada. Se fosse alguma coisa, não poderia imaginar. O ajudante de guarda-livros pode sonhar-se imperador romano; o Rei de Inglaterra não o pode fazer, porque o Rei de Inglaterra está privado de ser, em sonhos, outro rei que não o rei que é. A sua realidade não o deixa sentir.

Somos morte. Isto, que consideramos vida, é o sono da vida real, a morte do que verdadeiramente somos. Os mortos nascem, não morrem. Estão trocados, para nós, os mundos. Quando julgamos que vivemos, estamos mortos; vamos viver quando estamos moribundos.

Aquela relação que há entre o sono e a vida é a mesma que há entreo que chamamos vida e o que chamamos morte. Estamos dormindo, e esta vida é um sonho, não num sentido metafórico ou poético, num sentido verdadeiro.

Tudo aquilo que em nossas atividades consideramos superior, tudo isso participa da morte, tudo isso é morte. Que é o ideal senão a confissão de que a vida não serve? Que é a arte senão a negação da vida? Uma estátua é um corpo morto, talhado para fixar a morte, em matéria de incorrupção. O mesmo prazer, que tanto parece uma imersão na vida, é antes uma imersão em nós mesmos, uma destruição das relações entre nós e a vida, uma sombra agitada da morte.

O próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais na nossa vida que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela.

Povoamos sonhos, somos sombras errando através de florestas impossíveis, em que as árvores são casas, costumes, ideias, ideais e filosofias.

Nunca encontrar Deus, nunca saber, sequer, se Deus existe! Passar de mundo para mundo, de encarnação para encarnação, sempre na ilusão que acarinha, sempre no erro que afaga.

A verdade nunca, a paragem nunca! A união com Deus nunca! Nunca inteiramente em paz, mas sempre um pouco dela, sempre o desejo dela!

Imaginamos que isto seja o suficiente para nossa primeira cota de desassossego. Ainda retornaremos a Rua dos Douradores, mas antes talvez seja melhor explanar os ares, passear um pouco pelos campos abertos onde tudo o que há é Natureza...

3. Não sei o que é a Natureza: canto-a

Segundo Pessoa, "a obra de Alberto Caeiro representa uma reconstrução integral do paganismo, na sua essência absoluta, tal como nem os gregos nem os romanos que viveram nele e por isso o não pensaram, o puderam fazer". A seguir, alguns poemas selecionados do guardador de rebanhos, o mestre Caeiro...

O meu olhar é nítido como um girassol.

Tenho o costume de andar pelas estradas

Olhando para a direita e para a esquerda,

E de vez em quando olhando para trás...

E o que vejo a cada momento

É aquilo que nunca antes eu tinha visto,

E eu sei dar por isso muito bem...

Sei ter o pasmo essencial

Que tem uma criança se, ao nascer,

Reparasse que nascera deveras...

Sinto-me nascido a cada momento

Para a eterna novidade do Mundo...

Creio no Mundo como num malmequer,

Porque o vejo. Mas não penso nele

Porque pensar é não compreender...

O Mundo não se fez para pensarmos nele

(Pensar é estar doente dos olhos)

Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...

Se falo na Natureza não é porque saiba oque ela é,

Mas porque a amo, e amo-a por isso,

Porque quem ama nunca sabe o que ama

Nem sabe porque ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,

E a única inocência é não pensar...

Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do Mundo?

Sei lá o que penso do Mundo!

Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que ideia tenho eu das coisas?

Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?

Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma

E sobre a criação do Mundo?

Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos

E não pensar. É correr as cortinas

Da minha janela(mas ela não tem cortinas).

O mistério das coisas? Sei lá o que é mistério!

O único mistério é haver quem pense no mistério.

Quem está ao sol e fecha os olhos,

Começa a não saber o que é o Sol

E a pensar muitas coisas cheias de calor.

Mas abre os olhos e vê o Sol,

E já não pode pensar em nada,

Porque a luz do Sol vale mais que os pensamentos

De todos os filósofos e de todos os poetas.

A luz do Sol não sabe o que faz

E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores

A de serem verdes e copadas e de terem ramos

E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,

A nós, que não sabemos dar por elas.

Mas que melhor metafísica que a delas,

Que é a de não saber para que vivem

Nem saber que o não sabem?

"Constituição íntima das coisas"...

"Sentido íntimo do Universo"...

Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.

É incrível que se possa pensar em coisas dessas.

É como pensar em razões e fins

Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores

Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das coisas

É acrescentado, como pensar na saúde

Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das coisas

É elas não terem sentido íntimo nenhum.

Não acredito em Deus porque nunca o vi.

Se ele quisesse que eu acreditasse nele,

Sem dúvida que viria falar comigo

E entraria pela minha porta dentro

Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos

De quem, por não saber o que é olhar para as coisas,

Não compreende quem fala delas

Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores

E os montes e sol e o luar,

Então acredito nele,

Então acredito nele a toda a hora,

E a minha vida é toda uma oração e uma missa,

E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Masse Deus é as árvores e as flores

E os montes e o luar e o sol,

Para que lhe chamo eu Deus?

Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;

Porque, se ele se fez, para eu o ver,

Sol e luar e flores e árvores e montes,

Se ele me aparece como sendo árvores e montes

E luar e sol e flores,

É que ele quer que eu o conheça

Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,

(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),

Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,

Como quem abre os olhos e vê,

E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,

E amo-o sem pensar nele,

E penso-o vendo e ouvindo,

E ando com ele a toda a hora.

Num meio-dia de fim de Primavera

Tive um sonho como uma fotografia.

Vi Jesus Cristo descer à terra.

Veio pela encosta de um monte

Tornado outra vez menino,

A correr e a rolar-se pela erva

E a arrancar flores para as deitar fora

E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.

Era nosso demais para fingir

De segunda pessoa da Trindade.

No céu era tudo falso, tudo em desacordo

Com flores e árvores e pedras.

No céu tinha que estar sempre sério

E de vez em quando de se tornar outra vez homem

E subir para a cruz, e estar sempre a morrer

Com uma coroa toda à roda de espinhos

E os pés espetados por um prego com cabeça,

E até com um trapo à roda da cintura

Como os pretos nas ilustrações.

Nem sequer o deixavam ter pai e mãe

Como as outras crianças.

O seu pai era duas pessoas -

Um velho chamado José, que era carpinteiro,

E que não era pai dele;

E o outro pai era uma pomba estúpida,

A única pomba feia do mundo

Porque não era do mundo nem era pomba.

E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.

Não era mulher: era uma mala

Em que ele tinha vindo do céu.

E queriam que ele, que só nascera da mãe,

E nunca tivera pai para amar com respeito,

Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir

E o Espírito Santo andava a voar,

Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.

Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.

Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.

Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz

E deixou-o pregado na cruz que há no céu

E serve de modelo às outras.

Depois fugiu para o Sol

E desceu pelo primeiro raio que apanhou.

Hoje vive na minha aldeia comigo.

É uma criança bonita de riso e natural.

Limpa o nariz ao braço direito,

Chapinha nas poças de água,

Colhe as florese gosta delas e esquece-as.

Atira pedras aos burros,

Rouba a fruta dos pomares

E foge a chorar e a gritar dos cães.

E, porque sabe que elas não gostam

E que toda a gente acha graça,

Corre atrás das raparigas

Que vão em ranchos pelas estradas

Com as bilhas às cabeças

E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.

Ensinou-me a olhar para as coisas.

Aponta-me todas as coisas que há nas flores.

Mostra-me como as pedras são engraçadas

Quando a gente as tem na mão

E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.

Diz que ele é um velho estúpido e doente,

Sempre a escarrar no chão

E a dizer indecências.

A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.

E o Espírito Santo coça-se com o bico

E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.

Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.

Diz-me que Deus não percebe nada

Das coisas que criou -

"Se é que ele as criou, do que duvido." -

"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,

Mas os seres não cantam nada.

Se cantassem seriam cantores.

Os seres existem e mais nada,

E por isso se chamam seres."

E depois, cansado de dizer mal de Deus,

O Menino Jesus adormece nos meus braços

E eu levo-o ao colo para casa.

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.

Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.

Ele é o humano que é natural,

Ele é o divino que sorri e que brinca.

E por isso é que eu sei com toda a certeza

Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divina

É esta minha quotidiana vida de poeta,

E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.

E que o meu mínimo olhar

Me enche de sensação,

E o mais pequeno som, seja do que for,

Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo

Dá-me uma mão a mim

E a outra a tudo que existe

E assim vamos os três pelo caminho que houver,

Saltando e cantando e rindo

E gozando o nosso segredo comum

Que é o de saber por toda a parte

Que não há mistério no mundo

E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.

A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.

O meu ouvido atento alegremente a todos os sons

São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro

Na companhia de tudo

Que nunca pensamos um no outro,

Mas vivemos juntos e dois

Com um acordo íntimo

Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas

No degrau da porta de casa,

Graves como convém a um deus e a um poeta,

E como se cada pedra

Fosse todo um universo

E fosse porisso um grande perigo para ela

Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens

E ele sorri, porque tudo é incrível.

Ri dos reis e dos que não são reis,

E tem pena de ouvir falar das guerras,

E dos comércios, e dos navios

Que ficam fumo no ar dos altos mares.

Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade

Que uma flor tem ao florescer

E que anda com a luz do Sol

A variar os montes e os vales

E a fazer doer aos olhos os muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.

Levo-o ao colo para dentro de casa

E deito-o, despindo-o lentamente

E como seguindo um ritual muito limpo

E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma

E às vezes acorda de noite

E brinca com os meus sonhos.

Vira uns de pernas para o ar,

Põe uns em cima dos outros

E bate as palmas sozinho

Sorrindo para o meu sono.

Quando eu morrer, filhinho,

Seja eu a criança, o mais pequeno.

Pega-me tu ao colo

E leva-me para dentro da tua casa.

Despe o meu ser cansado e humano

E deita-me na tua cama.

E conta-me histórias, caso eu acorde,

Para eu tornar a adormecer.

E dá-me sonhos teus para eu brincar

Até que nasça qualquer dia

Que tu sabes qual é.

Esta é a história do meu Menino Jesus.

Por que razão que se perceba

Não há-de ser ela mais verdadeira

Que tudo quanto os filósofos pensam

E tudo quanto as religiões ensinam?

Se eu pudesse trincar a terra toda

E sentir-lhe um paladar,

E se a terra fosse uma coisa para trincar

Seria mais feliz um momento...

Mas eu nem sempre quero ser feliz.

É preciso ser de vez em quando infeliz

Para se poder ser natural...

Nem tudo é dias de sol,

E a chuva, quando falta muito, pede-se.

Por isso tomo a infelicidade com a felicidade

Naturalmente, como quem não estranha

Que haja montanhas e planícies

E que haja rochedos e erva...

O que é preciso é ser-se natural e calmo

Na felicidade ou na infelicidade,

Sentir como quem olha,

Pensar como quem anda,

E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,

E que o poente é belo e é bela a noite que fica...

Assim é e assim seja...

Li hoje quase duas páginas

Do livro dum poeta místico,

E ri como quem tem chorado muito.

Os poetas místicos são filósofos doentes,

E os filósofos são homens doidos.

Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem

E dizem que as pedras têm alma

E que os rios têm êxtases ao luar.

Mas as flores, se sentissem, não eram flores,

Eram gente;

E se as pedras tivessem alma, eram coisas vivas, não eram pedras;

E se osrios tivessem êxtases ao luar,

Os rios seriam homens doentes.

É preciso não saber o que são flores e pedras e rios

Para falar dos sentimentos deles.

Falar da alma das pedras, das flores, dos rios,

É falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos.

Graças a Deus que as pedras são só pedras,

E que os rios não são senão rios,

E que as flores são apenas flores.

Por mim, escrevo a prosa dos meus versos

E fico contente,

Porque sei que compreendo a Natureza por fora;

E não a compreendo por dentro

Porque a Natureza não tem dentro;

Senão não era a Natureza.

Se quiserem que eu tenha um misticismo, está bem, tenho-o.

Sou místico, mas só com o corpo.

A minha alma é simples e não pensa.

O meu misticismo é não querer saber.

É viver e não pensar nisso.

Não sei o que é a Natureza: canto-a.

Vivo no cimo dum outeiro

Numa casa caiada e sozinha,

E essa é a minha definição.

Bendito seja o mesmo sol de outras terras

Que faz meus irmãos todos os homens

Porque todos os homens, um momento no dia, o olham como eu,

E nesse puro momento

Todo limpo e sensível

Regressam lacrimosamente

E com um suspiro que mal sentem

Ao Homem verdadeiro e primitivo

Que via o Sol nascer e ainda o não adorava.

Porque isso é natural - mais natural

Que adorar o ouro e Deus

E a arte e a moral...

Antes o voo da ave, que passa e não deixa rasto,

Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão.

A ave passa e esquece, e assim deve ser.

O animal, onde já não está e por isso de nada serve,

Mostra que já esteve, o que não serve para nada.

A recordação é uma traição à Natureza,

Porque a Natureza de ontem não é Natureza.

O que foi não é nada, e lembrar é não ver.

Passa, ave, passa, e ensina-me a passar!

Deste modo ou daquele modo,

Conforme calha ou não calha,

Podendo às vezes dizer o que penso,

E outras vezes dizendo-o mal e com misturas,

Vou escrevendo os meus versos sem querer,

Como se escrever não fosse uma coisa feita de gestos,

Como se escrever fosse uma coisa que me acontecesse

Como dar-me o sol de fora.

Procuro dizer o que sinto

Sem pensar em que o sinto.

Procuro encostar as palavras à ideia

E não precisar dum corredor

Do pensamento para as palavras.

Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.

O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio anado

Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.

Procuro despir-me do que aprendi,

Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,

E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,

Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,

Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,

Mas um animal humano que a Natureza produziu.

E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer como um homem,

Mas como quem sente a Natureza, e mais nada.

E assim escrevo, ora bem, ora mal,

Ora acertando com o que quero dizer, ora errando,

Caindo aqui, levantando-me acolá,

Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso.

Ainda assim, sou alguém.

Sou o Descobridor da Natureza.

Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.

Trago ao Universo um novo Universo

Porque trago ao Universo ele-próprio.

Isto sinto e isto escrevo

Perfeitamente sabedor e sem que não veja

Que são cinco horas do amanhecer

E que o sol, que ainda não mostrou a cabeça

Por cima do muro do horizonte,

Ainda assim já se lhe veem as pontas dos dedos

Agarrando o cimo do muro

Do horizonte cheio de montes baixos.

Da mais alta janela da minha casa

Com um lenço branco digo adeus

Aos meus versos que partem para a humanidade.

E não estou alegre nem triste.

Esse é o destino dos versos.

Escrevi-os e devo mostrá-los a todos

Porque não posso fazer o contrário

Como a flor não pode esconder a cor,

Nem o rio esconder que corre,

Nem a árvore esconder que dá fruto.

Ei-los que vão já longe como que na diligência

E eu sem querer sinto pena

Como uma dor no corpo.

Quem sabe quem os lerá?

Quem sabe a que mãos irão?

Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.

Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.

Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.

Submeto-me e sinto-me quase alegre,

Quase alegre como quem se cansa de estar triste.

Ide, ide de mim!

Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.

Murcha a flor e o seu pó dura sempre.

Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.

Passo e fico, como o Universo.

Quando eu não te tinha

Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo.

Agora amo a Natureza

Como um monge calmo à Virgem Maria,

Religiosamente, a meu modo, como dantes,

Mas de outra maneira mais comovida e próxima...

Vejo melhor os rios quandovou contigo

Pelos campos até à beira dos rios;

Sentado a teu lado reparando nas nuvens

Reparo nelas melhor -

Tu não me tiraste a Natureza...

Tu mudaste a Natureza...

Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim,

Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma,

Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,

Por tu me escolheres para te ter e te amar,

Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente

Sobre todas as coisas.

Não me arrependo do que fui outrora

Porque ainda o sou.

Para além da curva da estrada

Talvez haja um poço, e talvez um castelo,

E talvez apenas a continuação da estrada.

Não sei nem pergunto.

Enquanto vou na estrada antes da curva

Só olho para a estrada antes da curva,

Porque não posso ver senão a estrada antes da curva.

De nada me serviria estar olhando para outro lado

E para aquilo que não vejo.

Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.

Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.

Se há alguém para além da curva da estrada,

Esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada.

Essa é que é a estrada para eles.

Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.

Por ora só sabemos que lá não estamos.

Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva

Há a estrada sem curva nenhuma.

Se, depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,

Não há nada mais simples.

Tem só duas datas - a da minha nascença e a da minha morte.

Entre uma e outra coisa todos os dias são meus.

Sou fácil de definir.

Vi como um danado.

Amei as coisas sem sentimentalidade nenhuma.

Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque nunca ceguei.

Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver.

Compreendi que as coisas são reais e todas diferentes umas das outras;

Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento.

Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas iguais.

Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.

Fechei os olhos e dormi.

Além disso, fui o único poeta da Natureza.

Medo da morte?

Acordarei de outra maneira,

Talvez corpo, talvez continuidade, talvez renovado,

Mas acordarei.

Se até os átomos não dormem, por que hei- de ser eu só a dormir?

Aceita o universo

Como to deram os deuses.

Se os deuses te quisessem dar outro

Ter-to-iam dado.

Se há outras matérias e outros mundos -

Haja.

Tu, místico, vês uma significação em todas as coisas.

Para ti tudo tem um sentido velado.

Há uma coisa oculta em cada coisa que vês.

O que vês, vê-lo sempre para veres outra coisa.

Para mim, graças a terolhos só para ver,

Eu vejo ausência de significação em todas as coisas;

Vejo-o e amo-me, porque ser uma coisa é não significar nada.

Ser uma coisa é não ser susceptível de interpretação.

Vive, dizes, no presente;

Vive só no presente.

Mas eu não quero o presente, quero a realidade;

Quero as coisas que existem, não o tempo que as mede.

O que é o presente?

É uma coisa relativa ao passado e ao futuro.

É uma coisa que existe em virtude de outras coisas existirem.

Eu quero só a realidade, as coisas sem presente.

Não quero incluir o tempo no meu esquema.

Não quero pensar nas coisas como presentes; quero pensar nelas como coisas.

Não quero separá-las de si próprias, tratando-as por presentes.

Eu nem por reais as devia tratar.

Eu não as devia tratar por nada.

Eu devia vê-las, apenas vê-las;

Vê-las até não poder pensar nelas,

Vê-las sem tempo, nem espaço,

Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê.

É esta a ciência de ver, que não é nenhuma.

Dizem que em cada coisa uma coisa oculta mora.

Sim, é ela própria, a coisa sem ser oculta,

Que mora nela.

Mas eu, com consciência e sensações e pensamento,

Serei como uma coisa?

Que há a mais ou a menos em mim?

Seria bom e feliz se eu fosse só o meu corpo -

Mas sou também outra coisa, mais ou menos que só isso.

Que coisa a mais ou a menos é que eu sou?

O vento sopra sem saber.

A planta vive sem saber.

Eu também vivo sem saber, mas sei que vivo.

Mas saberei que vivo, ou só saberei que o sei?

Nasço, vivo, morro por um destino em que não mando,

Sinto, penso, movo-me por uma força exterior a mim.

Então quem sou eu?

Sou, corpo e alma, o exterior de um interior qualquer?

Ou a minha alma é a consciência que a força universal

Tem do meu corpo por dentro, ser diferente dos outros?

No meio de tudo onde estou eu?

Morto o meu corpo,

Desfeito o meu cérebro,

Em consciência abstrata, impessoal, sem forma,

Já não sente o eu que eu tenho,

Já não pensa com o meu cérebro os pensamentos que eu sinto meus,

Já não move pela minha vontade as minhas mãos que eu movo.

Cessarei assim? Não sei.

Se tiver de cessar assim, ter pena de assim cessar,

Não me tomará imortal.

Ponham na minha sepultura:

Aqui jaz, sem cruz,

Alberto Caeiro

Que foi buscar os deuses...

Se os deuses vivem ou não isso é convosco.

A mim deixei que me recebessem.

4. O marinheiro

Esta foi a única peça teatral publicada em vida por Pessoa. Foi com ela, aliás,que ele estreou no primeiro número da revista "Orpheu", a publicação mais importante do modernismo em Portugal...

DRAMA ESTÁTICO EM UM QUADRO

A Carlos Franco

Um quarto que é sem dúvida num castelo antigo. Do quarto vê-se que é circular. Ao centro ergue-se, sobre uma essa, um caixão com uma donzela, de branco. Quatro tochas aos cantos. À direita, quase em frente a quem imagina o quarto, há uma única janela, alta e estreita, dando para onde só se vê, entre dois montes longínquos, um pequeno espaço de mar.

Do lado da janela velam três donzelas. A primeira está sentada em frente à janela, de costas contra a tocha de cima da direita. As outras duas estão sentadas uma de cada lado da janela.

É noite e há como que um resto vago de luar.

PRIMEIRA VELADORA - Ainda não deu hora nenhuma.

SEGUNDA - Não se pode ouvir. Não há relógio aqui perto. Dentro em pouco deve ser dia.

TERCEIRA - Não: o horizonte é negro.

PRIMEIRA - Não desejais, minha irmã, que nos entretenhamos contando o que fomos? É belo e é sempre falso...

SEGUNDA - Não, não falemos nisso. De resto, fomos nós alguma coisa?

PRIMEIRA - Talvez. Eu não sei. Mas, ainda assim, sempre é belo falar do passado... As horas têm caído e nós temos guardado silêncio. Por mim, tenho estado a olhar para a chama daquela vela. Às vezes treme, outras torna-se mais amarela, outras vezes empalidece. Eu não sei por que é que isso se dá. Mas sabemos nós, minhas irmãs, por que se dá qualquer coisa?...

(uma pausa)

A MESMA - Falar do passado - isso deve ser belo, porque é inútil e faz tanta pena...

SEGUNDA - Falemos, se quiserdes, de um passado que não tivéssemos tido.

TERCEIRA - Não. Talvez o tivéssemos tido...

PRIMEIRA - Não dizeis senão palavras. E tão triste falar! É um modo tão falso de nos esquecermos! ... Se passeássemos?...

TERCEIRA - Onde?

PRIMEIRA - Aqui, de um lado para o outro. As vezes isso vai buscar sonhos.

TERCEIRA - De quê?

PRIMEIRA - Não sei . Porque o havia eu de saber?

(uma pausa)

SEGUNDA - Todo este país é muito triste... Aquele onde eu vivi outrora era menos triste. Ao entardecer eu fiava, sentada à minha janela. A janela dava para o mar e às vezes havia uma ilha ao longe... Muitas vezes eu não fiava; olhava para o mar e esquecia-me de viver. Não sei se era feliz. Já não tornarei a ser aquilo que talvez eu nunca fosse...

PRIMEIRA -Fora de aqui, nunca vi o mar. Ali, daquela janela, que é a única de onde o mar se vê, vê-se tão pouco!... O mar de outras terras é belo?

SEGUNDA - Só o mar das outras terras é que é belo. Aquele que nós vemos dá-nos sempre saudades daquele que não veremos nunca...

(uma pausa)

PRIMEIRA - Não dizíamos nós que íamos contar o nosso passado?

SEGUNDA - Não, não dizíamos.

TERCEIRA - Por que não haverá relógio neste quarto?

SEGUNDA - Não sei... Mas assim, sem o relógio, tudo é mais afastado e misterioso. A noite pertence mais a si própria... Quem sabe se nós poderíamos falar assim se soubéssemos a hora que é?

PRIMEIRA - Minha irmã, em mim tudo é triste. Passo Dezembros na alma... Estou procurando não olhar para a janela.. Sei que de lá se veem, ao longe, montes... Eu fui feliz para além de montes, outrora... Eu era pequenina. Colhia flores todo o dia e antes de adormecer pedia que não mas tirassem... Não sei o que isto tem de irreparável que me dá vontade de chorar... Foi longe daqui que isto pôde ser... Quando virá o dia?...

TERCEIRA - Que importa? Ele vem sempre da mesma maneira... sempre, sempre, sempre...

(uma pausa)

SEGUNDA - Contemos contos umas às outras... Eu não sei contos nenhuns, mas isso não faz mal... Só viver é que faz mal... Não rocemos pela vida nem a orla das nossas vestes... Não, não vos levanteis. Isso seria um gesto, e cada gesto interrompe um sonho... Neste momento eu não tinha sonho nenhum, mas é-me suave pensar que o podia estar tendo... Mas o passado - por que não falamos nós dele?

PRIMEIRA - Decidimos não o fazer... Breve raiará o dia e

arrepender-nos-emos... Com a luz os sonhos adormecem... O passado não é senão um sonho... De resto, nem sei o que não é sonho.

Se olho para o presente com muita atenção, parece-me que ele já passou... O que é qualquer coisa? Como é que ela passa? Como é por dentro o modo como ela passa?... Ah, falemos, minhas irmãs falemos alto, falemos todas juntas... O silêncio começa a tomar corpo, começa a ser coisa... Sinto-o envolver-me como uma névoa... Ah, falai, falai!...

SEGUNDA - Para quê?... Fito-vos a ambas e não vos vejo logo... Parece-me que entre nós se aumentaram abismos... Tenho que cansar a ideia de que vos posso ver para poder chegar a ver-vos... Este ar quente é frio por dentro, naquela parte que toca na alma... Eu devia agora sentir mãos impossíveis passarem-me pelo cabelos -é o gesto com que falam das sereias...(Cruza as mãos sobre os joelhos. Pausa). Ainda há pouco, quando eu não pensava em nada, estava pensando no meu passado.

PRIMEIRA - Eu também devia ter estado a pensar no meu...

TERCEIRA - Eu já não sabia em que pensava... No passado dos outros talvez..., no passado de gente maravilhosa que nunca existiu... Ao pé da casa de minha mãe corria um riacho... Por que é que correria, e por que é que não correria mais longe, ou mais perto?... Há alguma razão para qualquer coisa ser o que é? Há para isso qualquer razão verdadeira e real como as minhas mãos?...

SEGUNDA - As mãos não são verdadeiras nem reais... São mistérios que habitam na nossa vida... às vezes, quando fito as minhas mãos, tenho medo de Deus... Não há vento que mova as chamas das velas, e olhai, elas movem-se... Para onde se inclinam elas?... Que pena se alguém pudesse responder!... Sinto-me desejosa de ouvir músicas bárbaras que devem agora estar tocando em palácios de outros continentes... É sempre longe na minha alma... Talvez porque, quando criança, corri atrás das ondas à beira-mar. Levei a vida pela mão entre rochedos, maré-baixa, quando o mar parece ter cruzado as mãos sobre o peito e ter adormecido como uma estátua de anjo para que nunca mais ninguém olhasse...

TERCEIRA - As vossas frases lembram-me a minha alma...

SEGUNDA - É talvez por não serem verdadeiras... Mal sei que as digo... Repito-as seguindo uma voz que não ouço que mas está segredando... Mas eu devo ter vivido realmente à beira-mar... Sempre que uma coisa ondeia, eu amo-a... Há ondas na minha alma... Quando ando

embalo-me... Agora eu gostaria de andar... Não o faço porque não vale nunca a pena fazer nada, sobretudo o que se quer fazer... Dos montes é que eu tenho medo... É impossível que eles sejam tão parados e grandes... Devem ter um segredo de pedra que se recusam a saber que têm... Se desta janela, debruçando-me, eu pudesse deixar de ver montes, debruçar-se-ia um momento da minha alma alguém em quem eu me sentisse feliz...

PRIMEIRA - Por mim, amo os montes... Do lado de cá de todos os montes é que a vida é sempre feia... Do lado de lá, onde mora minha mãe, costumávamos sentarmo-nos à sombra dos tamarindos e falar de ir ver outras terras... Tudo ali era longo e feliz como o canto de duas aves, uma de cada lado do caminho... A floresta não tinha outras clareiras senão os nossos pensamentos... E os nossos sonhos eram de que asárvores projetassem no chão outra calma que não as suas sombras... Foi decerto assim que ali vivemos, eu e não sei se mais alguém... Dizei-me que isto foi verdade para que eu não tenha de chorar...

SEGUNDA - Eu vivi entre rochedos e espreitava o mar... A orla da minha saia era fresca e salgada batendo nas minhas pernas nuas... Eu era pequena e bárbara... Hoje tenho medo de ter sido... O presente parece-me que durmo... Falai-me das fadas. Nunca ouvi falar delas a ninguém... O mar era grande de mais para fazer pensar nelas... Na vida aquece ser pequeno... Éreis feliz, minha irmã?

PRIMEIRA - Começo neste momento a tê-lo sido outrora... De resto, tudo aquilo se passou na sombra... As árvores viveram -no mais do que eu... Nunca chegou nem eu mal esperava... E vós irmã, por que não falais?

TERCEIRA - Tenho horror a de aqui a pouco vos ter já dito o que vos vou dizer. As minhas palavras presentes, mal eu as digo, pertencerão logo ao passado, ficarão fora de mim, não sei onde, rígidas e fatais... Falo, e penso nisto na minha garganta, e as minhas palavras parecem-me gente... Tenho um medo maior do que eu. Sinto na minha mão, não sei como, a chave de uma porta desconhecida. E toda eu sou um amuleto ou um sacrário que estivesse com consciência de si próprio. É por isto que me apavora ir, como por uma floresta escura, através do mistério de falar... E, afinal, quem sabe se eu sou assim e se é isto sem dúvida que sinto?...

PRIMEIRA - Custa tanto saber o que se sente quando reparamos em

nós!... Mesmo viver sabe a custar tanto quando se dá por isso... Falai, portanto, sem reparardes que existis... Não nos íeis dizer quem éreis?

TERCEIRA - O que eu era outrora já não se lembra de quem sou... Pobre da feliz que eu fui! ... Eu vivi entre as sombras dos ramos, e tudo na minha alma é folhas que estremecem. Quando ando ao sol a minha sombra é fresca. Passei a fuga dos meus dias ao lado de fontes, onde eu molhava, quando sonhava de viver, as pontas tranquilas dos meus dedos... Às vezes, à beira dos lagos, debruçava-me e fitava-me... Quando eu sorria, os meus dentes eram misteriosos na água... Tinham um sorriso só deles, independente do meu... Era sempre sem razão que eu sorria... Falai-me da morte, do fim de tudo, para que eu sinta uma razão para recordar...

PRIMEIRA - Não falemos de nada, de nada... Está mais frio, mas por que é queestá mais frio? Não há razão para estar mais frio. Não é bem mais frio que está... Para que é que havemos de falar?... É melhor cantar, não sei porquê... O canto, quando a gente canta de noite, é uma pessoa alegre e sem medo que entra de repente no quarto e o aquece a consolar-nos... Eu podia cantar-vos uma canção que cantávamos em casa de meu passado. Por que é que não quereis que vo-la cante?

TERCEIRA - Não vale a pena, minha irmã... quando alguém canta, eu não posso estar comigo. Tenho que não poder recordar-me. E depois todo o meu passado torna-se outro e eu choro uma vida morta que trago comigo e que não vivi nunca. É sempre tarde de mais para cantar, assim como é sempre tarde de mais para não cantar...

(uma pausa)

PRIMEIRA - Breve será dia... Guardemos silêncio... A vida assim o quer. Ao pé da minha casa natal havia um lago. Eu ia lá e assentava-me à beira dele, sobre um tronco de árvore que caíra quase dentro de água... Sentava-me na ponta e molhava na água os pés, esticando para baixo os dedos. Depois olhava excessivamente para as pontas dos pés, mas não era para os ver. Não sei porquê, mas parece-me deste lago que ele nunca existiu... Lembrar-me dele é como não me poder lembrar de nada... Quem sabe por que é que eu digo isto e se fui eu que vivi o que recordo?...

SEGUNDA - À beira-mar somos tristes quando sonhamos... Não podemos ser o que queremos ser, porque o que queremos ser queremo-lo sempre ter sido no passado... Quando a onda se espalha e a espuma chia, parece que há mil vozes mínimas a falar. A espuma só parece ser

fresca a quem a julga uma... Tudo é muito e nós não sabemos nada... Quereis que vos conte o que eu sonhava à beira-mar?

PRIMEIRA - Podeis contá-lo, minha irmã; mas nada em nós tem necessidade de que no-lo conteis... Se é belo, tenho já pena de vir a tê-lo ouvido. E se não é belo, esperai..., contai-o só depois de o alterardes...

SEGUNDA - Vou dizer-vo-lo. Não é inteiramente falso, porque sem dúvida nada é inteiramente falso. Deve ter sido assim... Um dia que eu dei por mim recostada no cimo frio de um rochedo, e que eu tinha esquecido que tinha pai e mãe e que houvera em mim infância e outros dias - nesse dia vi ao longe, como uma coisa que eu só pensasse em ver, a passagem vaga de uma vela. Depoisela cessou... Quando reparei para mim, vi que já tinha esse meu sonho... Não sei onde ele teve princípio... E nunca tornei a ver outra vela... Nenhuma das velas dos navios que saem aqui de um porto se parece com aquela, mesmo quando é lua e os navios passam longe devagar...

PRIMEIRA - Vejo pela janela um navio ao longe. É talvez aquele que vistes...

SEGUNDA - Não, minha irmã; esse que vedes busca sem dúvida um porto qualquer... Não podia ser que aquele que eu vi buscasse qualquer porto...

PRIMEIRA - Por que é que me respondestes?... Pode ser. . Eu não vi navio nenhum pela janela... Desejava ver um e falei-vos dele para não ter pena... Contai-nos agora o que foi que sonhastes à beira-mar...

SEGUNDA - Sonhava de um marinheiro que se houvesse perdido numa ilha longínqua. Nessa ilha havia palmeiras hirtas, poucas, e aves vagas passavam por elas... Não vi se alguma vez pousavam... Desde que, naufragado, se salvara, o marinheiro vivia ali... Como ele não tinha meio de voltar à pátria, e cada vez que se lembrava dela sofria, pôs-se a sonhar uma pátria que nunca tivesse tido: pôs-se a fazer ter sido sua uma outra pátria, uma outra espécie de país com outras espécies de paisagens, e outra gente, e outro feitio de passarem pelas ruas e de se debruçarem das janelas... Cada hora ele construía em sonho esta falsa pátria, e ele nunca deixava de sonhar, de dia à sombra curta das grandes palmeiras, que se recortava, orlada de bicos, no chão areento e quente; de noite, estendido na praia, de costas e não reparando nas estrelas.

PRIMEIRA - Não ter havido uma árvore que mosqueasse sobre as

minhas mãos estendidas a sombra de um sonho como esse!...

TERCEIRA - Deixai-a falar... Não a interrompais... Ela conhece palavras que as sereias lhe ensinaram... Adormeço para a poder escutar... Dizei, minha irmã, dizei... Meu coração dói-me de não ter sido vós quando sonháveis à beira-mar...

SEGUNDA - Durante anos e anos, dia a dia, o marinheiro erguia num sonho contínuo a sua nova terra natal... Todos os dias punha uma pedra de sonho nesse edifício impossível... Breve ele ia tendo um país que já tantas vezes havia percorrido. Milhares de horas lembrava-se já de ter passado ao longo de suas costas. Sabia de que cor soíam ser os crepúsculos numa baía do norte, e como era suave entrar, noite alta, e com a alma recostada no murmúrio da água que o navio abria, num grande porto do sul onde ele passara outrora, feliz talvez, das suas mocidades a suposta...(uma pausa)

PRIMEIRA - Minha irmã, por que é que vos calais?

SEGUNDA - Não se deve falar demasiado... A vida espreita-nos sempre... Toda a hora é materna para os sonhos, mas é preciso não o saber... Quando falo de mais começo a separar-me de mim e a ouvir-me falar. Isso faz com que me compadeça de mim própria e sinta demasiadamente o coração. Tenho então uma vontade lacrimosa de o ter nos braços para o poder embalar como a um filho... Vede: o horizonte empalideceu... O dia não pode já tardar... Será preciso que eu vos fale ainda mais do meu sonho?

PRIMEIRA - Contai sempre, minha irmã, contai sempre... Não pareis de contar, nem repareis em que dias raiam... O dia nunca raia para quem encosta a cabeça no seio das horas sonhadas... Não torçais as mãos. Isso faz um ruído como o de uma serpente furtiva... Falai-nos muito mais do vosso sonho. Ele é tão verdadeiro que não tem sentido nenhum. Só pensar em ouvir-vos me toca música na alma...

SEGUNDA -- Sim, falar-vos-ei mais dele. Mesmo eu preciso de vo-lo contar. À medida que o vou contando, é a mim também que o conto... São três a escutar...(De repente, olhando para o caixão, e estremecendo). Três não... Não sei... Não sei quantas...

TERCEIRA - Não faleis assim... Contai depressa, contai outra vez... Não faleis em quantos podem ouvir... Nós nunca sabemos quantas coisas realmente vivem e veem e escutam... Voltai ao vosso sonho... O marinheiro. O que sonhava o marinheiro?

SEGUNDA(mais baixo, numa voz muito lenta) - Ao princípio ele criou as paisagens, depois criou as cidades; criou depois as ruas e as travessas, uma a uma, cinzelando-as na matéria da sua alma - uma a uma as ruas, bairro a bairro, até às muralhas dos cais de onde ele criou depois os portos... Uma a uma as ruas, e a gente que as percorria e que olhava sobre elas das janelas... Passou a conhecer certa gente, como quem a reconhece apenas... Ia-lhes conhecendo as vidas passadas e as conversas, e tudo isto era como quem sonha apenas paisagens e as vai vendo... Depois viajava, recordando, através do país que criara... E assim foi construindo o seu passado... Breve tinha uma outra vida anterior... Tinha já, nessa nova pátria, um lugar onde nascera, os lugares onde passara a juventude, os portos onde embarcara... Ia tendo tido os companheiros da infância e depois os amigos e inimigos da sua idade viril... Tudo era diferente de como ele o tivera - nem o país, nem a gente,nem o seu passado próprio se pareciam com o que haviam sido... Exigis que eu continue?... Causa-me tanta pena falar disto!... Agora, porque vos falo disto, aprazia-me mais estar-vos falando de outros sonhos...

TERCEIRA - Continuai, ainda que não saibais porquê... Quanto mais vos ouço, mais me não pertenço...

PRIMEIRA - Será bom realmente que continueis? Deve qualquer história ter fim? Em todo o caso falai... Importa tão pouco o que dizemos ou não dizemos... Velamos as horas que passam... O nosso mister é inútil como a Vida...

SEGUNDA - Um dia, que chovera muito, e o horizonte estava mais incerto, o marinheiro cansou-se de sonhar... Quis então recordar a sua pátria verdadeira..., mas viu que não se lembrava de nada, que ela não existia para ele... Meninice de que se lembrasse, era a na sua pátria de sonho; adolescência que recordasse, era aquela que se criara... Toda a sua vida tinha sido a sua vida que sonhara... E ele viu que não podia ser que outra vida tivesse existido... Se ele nem de uma rua, nem de uma figura, nem de um gesto materno se lembrava... E da vida que lhe parecia ter sonhado, tudo era real e tinha sido... Nem sequer podia sonhar outro passado, conceber que tivesse tido outro, como todos, um momento, podem crer... Ó minhas irmãs, minhas irmãs... Há qualquer coisa, que não sei o que é, que vos não disse... Qualquer coisa que explicaria isto tudo... A minha alma esfria-me... Mal sei se tenho estado a falar... Falai-me, gritai-me, para que eu acorde, para que eu saiba que

estou aqui ante vós e que há coisas que são apenas sonhos...

PRIMEIRA(numa voz muito baixa) - Não sei que vos diga... Não ouso olhar para as coisas... Esse sonho como continua?...

SEGUNDA - Não sei como era o resto... Mal sei como era o resto... Por que haverá mais?...

PRIMEIRA - E o que aconteceu depois?

SEGUNDA - Depois? Depois de quê? Depois é alguma coisa?... Veio um dia um barco... Veio um dia um barco... - Sim, sim... só podia ter sido assim... - Veio um dia um barco, e passou por essa ilha, e não estava lá o marinheiro.

TERCEIRA - Talvez tivesse regressado à pátria... Mas a qual?

PRIMEIRA - Sim, a qual? E o que teriam feito ao marinheiro? Sabê-lo-ia alguém?

SEGUNDA - Por que é que mo perguntais? Há resposta para alguma coisa?

(uma pausa)

TERCEIRA - Será absolutamente necessário, mesmo dentro do vosso sonho, que tenha havido esse marinheiro e essa ilha?

SEGUNDA - Não, minha irmã; nada é absolutamentenecessário.

PRIMEIRA - Ao menos, como acabou o sonho?

SEGUNDA - Não acabou... Não sei... Nenhum sonho acaba... Sei eu ao certo se o não continuo sonhando, se o não sonho sem o saber, se o sonhá-lo não é esta coisa vaga a que eu chamo a minha vida?.. Não me faleis mais... Principio a estar certa de qualquer coisa, que não sei o que é... Avançam para mim, por uma noite que não é esta, os passos de um horror que desconheço... Quem teria eu ido despertar com o sonho meu que vos contei?... Tenho um medo disforme de que Deus tivesse proibido o meu sonho... Ele é sem dúvida mais real do que Deus permite... Não estejais silenciosas... Dizei-me ao menos que a noite vai passando, embora eu o saiba... Vede, começa a ir ser dia... Vede: vai haver o dia real... Paremos... Não pensemos mais... Não tentemos seguir nesta aventura interior... Quem sabe o que está no fim dela?... Tudo isto, minhas irmãs, passou-se na noite... Não falemos mais disto, nem a nós próprios... É humano e conveniente que tomemos, cada qual, a sua atitude de tristeza.

TERCEIRA - Foi-me tão belo escutar-vos... Não digais que não... Bem

sei que não valeu a pena... É por isso que o achei belo... Não foi por isso, mas deixai que eu o diga... De resto, a música da vossa voz, que escutei ainda mais que as vossas palavras, deixa-me, talvez só por ser música, descontente...

SEGUNDA - Tudo deixa descontente, minha irmã... Os homens que pensam cansam-se de tudo, porque tudo muda. Os homens que passam provam-no, porque mudam com tudo... De eterno e belo há apenas o sonho... Por que estamos nós falando ainda?...

PRIMEIRA - Não sei...(olhando para o caixão, em voz mais baixa) - Por que é que se morre?

SEGUNDA - Talvez por não se sonhar bastante...

PRIMEIRA - É possível... Não valeria então a pena fecharmo-nos no sonho e esquecer a vida, para que a morte nos esquecesse?...

SEGUNDA - Não, minha irmã, nada vale a pena...

TERCEIRA - Minhas irmãs, é já dia... Vede, a linha dos montes maravilha-se... Por que não choramos nós?... Aquela que finge estar ali era bela, e nova como nós, e sonhava também... Estou certa que o sonho dela era o mais belo de todos... Ela de que sonharia?...

PRIMEIRA - Falai mais baixo. Ela escuta-nos talvez, e já sabe para que servem os sonhos...

(uma pausa)

SEGUNDA - Talvez nada disto seja verdade... Todo este silêncio, e esta morta, e este dia que começa nãosão talvez senão um sonho... Olhai bem para tudo isto... Parece-vos que pertence à vida?...

PRIMEIRA - Não sei. Não sei como se é da vida... Ah, como vós estais parada! E os vossos olhos tão tristes, parece que o estão inutilmente...

SEGUNDA - Não vale a pena estar triste de outra maneira... Não desejais que nos calemos? É tão estranho estar a viver... Tudo o que acontece é inacreditável, tanto na ilha do marinheiro como neste mundo... Vede, o céu é já verde... O horizonte sorri ouro... Sinto que me ardem os olhos, de eu ter pensado em chorar...

PRIMEIRA - Chorastes, com efeito, minha irmã.

SEGUNDA - Talvez... Não importa... Que frio é isto?... Ah, é agora... é agora!... Dizei-me isto... Dizei-me uma coisa ainda... Por que não será a única coisa real nisto tudo o marinheiro, e nós e tudo isto aqui apenas um sonho dele?...

PRIMEIRA - Não faleis mais, não faleis mais... Isso é tão estranho que deve ser verdade. Não continueis... O que íeis dizer não sei o que é, mas deve ser de mais para a alma o poder ouvir... Tenho medo do que não chegastes a dizer... Vede, vede, é dia já... Vede o dia... Fazei tudo por reparardes só no dia, no dia real, ali fora... Vede-o, vede-o... Ele consola... Não penseis, não olheis para o que pensais... Vede-o a vir, o dia... Ele brilha como ouro numa terra de prata. As leves nuvens arredondam-se à medida que se coloram.. Se nada existisse, minhas irmãs?... Se tudo fosse, qualquer modo, absolutamente coisa nenhuma?... Porque olhastes assim?...

(Não lhe respondem. E ninguém olhara de nenhuma maneira.)

A MESMA - Que foi que dissestes e que me apavorou?... Senti-o tanto que mal vi o que era... Dizei-me o que foi, para que eu, ouvindo-o segunda vez, já não tenha tanto medo como dantes... Não, não... Não digais nada... Não vos pergunto isto para que me respondais, mas para falar apenas, para me não deixar pensar... Tenho medo de me poder lembrar do que foi... Mas foi qualquer coisa de grande e pavoroso como o haver Deus... Devíamos já ter acabado de falar... Há tempo já que a nossa conversa perdeu o sentido... O que é entre nós que nos faz falar prolonga-se demasiadamente... Há mais presenças aqui do que as nossas almas.. O dia devia ter já raiado.. Deviam já ter acordado... Tarda qualquer coisa... Tarda tudo... O que é que se está dando nas coisas de acordo com o nosso horror?... Ah, não me abandoneis... Falai comigo, falai comigo... Falai ao mesmo tempo do que eu paranão deixardes sozinha a minha voz... Tenho menos medo à minha voz do que à ideia da minha voz, dentro de mim, se for reparar que estou falando...

TERCEIRA - Que voz é essa com que falais?... É de outra... Vem de uma espécie de longe...

PRIMEIRA - Não sei... Não me lembreis isso... Eu devia estar falando com a voz aguda e tremida do medo... Mas já não sei como é que se fala... Entre mim e a minha voz abriu-se um abismo... Tudo isto, toda esta conversa e esta noite, e este medo - tudo isto devia ter acabado, devia ter acabado de repente, depois do horror que nos dissestes... Começo a sentir que o esqueço, a isso que dissestes, e que me fez pensar que eu devia gritar de uma maneira nova para exprimir um horror de aqueles...

TERCEIRA(para a SEGUNDA) - Minha irmã, não nos devíeis ter contado essa história. Agora estranho-me viva com mais horror. Contáveis e eu

tanto me distraía que ouvia o sentido das vossas palavras e o seu som separadamente. E parecia-me que vós, e a vossa voz, e o sentido do que dizíeis eram três entes diferentes, como três criaturas que falam e andam.

SEGUNDA - São realmente três entes diferentes, com vida própria e real. Deus talvez saiba porquê... Ah, mas por que é que falamos? Quem é que nos faz continuar falando? Por que falo eu sem querer falar? Por que é que já não reparamos que é dia?...

PRIMEIRA - Quem pudesse gritar para despertarmos! Estou a ouvir-me a gritar dentro de mim, mas já não sei o caminho da minha vontade para a minha garganta. Sinto uma necessidade feroz de ter medo de que alguém possa bater àquela porta. Por que não bate alguém à porta? Seria impossível e eu tenho necessidade de ter medo disso, de saber de que é que tenho medo... Que estranha que me sinto!... Parece-me já não ter a minha voz... Parte de mim adormeceu e ficou a ver... O meu pavor cresceu, mas eu já não sei senti-lo... Já não sei em que parte da alma é que se sente... Puseram ao meu sentimento do meu corpo uma mortalha de chumbo... Para que foi que nos contastes a vossa história?

SEGUNDA - Já não me lembro... Já mal me lembro que a contei... Parece ter sido já há tanto tempo!... Que sono, que sono absorve o meu modo de olhar para as coisas!... O que é que nós queremos fazer? O que é que nós temos ideia de fazer? - jánão sei se é falar ou não falar...

PRIMEIRA - Não falemos mais. Por mim, cansa-me o esforço que fazeis para falar... Dói-me o intervalo que há entre o que pensais e o que dizeis... A minha consciência boia à tona da sonolência apavorada dos meus sentidos pela minha pele... Não sei o que é isto, mas é o que sinto... Preciso de dizer frases confusas um pouco longas, que custem a dizer... Não sentis tudo isto como uma aranha enorme que nos tece de alma a alma uma teia negra que nos prende?

SEGUNDA - Não sinto nada... Sinto as minhas sensações como uma coisa que se sente... Quem é que eu estou sendo?... Quem é que está falando com a minha voz?... Ah, escutai...

PRIMEIRA e TERCEIRA - Quem foi?

SEGUNDA - Nada. Não ouvi nada... Quis fingir que ouvia para que vós supusésseis que ouvíeis e eu pudesse crer que havia alguma coisa a ouvir... Oh, que horror, que horror íntimo nos desata a voz da alma, e as sensações dos pensamentos, e nos faz falar e sentir e pensar quando

tudo em nós pede silêncio e o dia e a inconsciência da vida... Quem é a quinta pessoa neste quarto que estende o braço e nos interrompe sempre que vamos a sentir?

PRIMEIRA - Para quê tentar apavorar-me? Não cabe mais terror dentro de mim... Peso excessivamente ao colo de me sentir. Afundei-me toda no lodo morno do que suponho que sinto. Entra-me por todos os sentidos qualquer coisa que nos pega e nos vela. Pesam as pálpebras a todas as minhas sensações. Prende-se a língua a todos os meus sentimentos. Um sono fundo cola umas às outras as ideias de todos as meus gestos. Por que foi que olhastes assim?...

TERCEIRA(numa voz muito lenta e apagada) - Ah, é agora, é agora... Sim, acordou alguém... Há gente que acorda... Quando entrar alguém tudo isto acabará... Até lá façamos crer que todo este horror foi um longo sono que fomos dormindo... É dia já. Vai acabar tudo... E de tudo isto fica, minha irmã, que só vós sois feliz, porque acreditais no sonho...

SEGUNDA - Por que é que mo perguntais? Porque eu o disse? Não, não acredito...

Um galo canta. A luz, como que subitamente, aumenta. As três veladoras quedam-se silenciosas e sem olharem umas para as outras.

Não muito longe, por uma estrada, um vago carro geme e chia.

5. Isso é belo demais para que esteja perto da morte

Onde trazemos mais quatro peças e diálogos semiconcluídos. Shakespeare, Platão, Budae Epicteto mandam lembranças...

A MORTE DO PRÍNCIPE

- Todo este universo é um livro em que cada um de nós é uma frase. Nenhum de nós, por si mesmo, faz mais que um pequeno sentido, ou uma parte de sentido; só no conjunto do que se diz se percebe o que cada um verdadeiramente quer dizer. Uns são frases que como se erguem do texto a determinar o sentido de todo um capítulo, ou de toda uma intenção, e a esses denominamos gênios; outros são simples palavras, contendo uma frase em si mesmas, ou adjetivos definindo grandemente, destacadas aqui ou ali, mas sem dizer o que importa ao conjunto, e são esses os homens de talento; uns são as frases de pergunta e resposta, pelas quais se forma a vida do diálogo, e esses são os homens de ação; outros são frases que aliviam o diálogo, tornando-o lento para depois se sentir mais rápido, pontuações verbais do discurso, e esses são os homens de inteligência. A maioria são as frases feitas,

quase iguais umas às outras, sem cor nem relevo, que servem todavia de ligar as intenções das metáforas, de estabelecer a continuidade do discurso, de permitir que os relevos tenham relevo, existindo, aparentemente, só para que esses possam existir. De resto, não somos nós feitos, como a frase, de palavras comuns(e estas de sílabas simples) de substância constante, diversamente misturada, da humanidade vulgar? Não é o nosso amor o amor de todos e o nosso choro as lágrimas em si mesmas? Mas cada um de nós ama e chora ele, que não outro: há um objetivo de dentro que o indefine(dissolve) e determina.

Isto que te estou dizendo é sem dúvida delírio, porque não sei por que te o digo; mas, porque o digo sem saber, é também sem dúvida verdade.

E as figuras de xadrez e as das cartas de jogar ou adivinhar - seremos nós mais que elas onde a vida é vida?

Quando eu era menino beijava-me nos espelhos: era um sinal antecipado de que nunca haveria de amar. Tinha por mim, em adivinha de negação, a ternura que me nunca haveria de ser dada.

Por que não será tudo uma verdade inteiramente diferente, sem deuses, nem homens, nem razões? Por que não será tudo qualquer coisa que não podemos sequer conceber, que não concebemos - um mistério de outro mundo inteiramente? Por que não seremos nós - homens, deuses, e mundo - sonhos que alguém sonha, pensamentos que alguém pensa, postos fora sempre do que existe? E por que não será esse alguém que sonha ou pensa alguém quenem sonha nem pensa, súbdito ele mesmo do abismo e da ficção? Por que não será tudo outra-coisa, e coisa nenhuma, e o que não é a única coisa que existe? Em que parte estou que vejo isto como coisa que pode ser? Em que ponte passo que por baixo de mim, que estou tão alto, estão as luzes de todas as cidades do mundo e do outro mundo, e as nuvens das verdades desfeitas que pairam acima e a elas todas buscam, como se buscassem o que se pode cingir?

Tenho febre sem sono, e estou vendo sem saber o que vejo. Há grandes planícies tudo à roda, e os rios ao longe, e montanhas... Mas ao mesmo tempo não há nada disto, e estou com o princípio dos deuses e com um grande horror de partir ou ficar, e de onde estar e de que ser. E também este quarto onde te ouço olhar-me é uma coisa que conheço e como que vejo; e todas estas coisas estão juntas, e estão separadas, e nenhuma delas é o que é outra coisa que estou a ver se vejo.

Para que me deram um reino que ter se não terei melhor reino que esta hora que estou entre o que não fui e o que não serei?

P - Senta-te ali, aos pés da cama aonde eu quase que te não veja, e fala-me de coisas impossíveis...

Vou morrer.

X - Não, meu Senhor...

P - Sim, vou... Já tudo começa a ter outro aspecto e a falar aos meus olhos numa outra voz... Parece que não sou eu que estou cansado de existir, mas as coisas que se cansam de eu as ver... Começo a morrer nas coisas... O que se apaga de mim começa a apagar-se no céu, nas árvores, no quarto, nos cortinados deste leito... Depois, pouco a pouco, ir-se-á apagando pelo meu corpo dentro até que fizer noite mesmo ao pé das janelas da minha alma.

X - Isso é belo de mais para que possais estar perto da morte...

P - É belo demais para que possa lembrar à vida... A curva dos montes, lá muito ao longe, torna-se, não mais indecisa mas mais indecisa de outra maneira... As árvores esbatem-se em sombras mas as folhas parecem-me extraordinariamente nítidas, evidentes de mais... A seda dos cortinados deste leito é uma outra espécie de seda... Afundo-me pouco a pouco... Não te entristeças... Eu era real de mais para poder reinar algum dia... O único trono que mereço é a morte... Não dizes nada?

X - Senhor, não morrereis...P - Sinto um ruído qualquer... Ah, como parece ser o arranjarem-me as vestes para a minha coroação no meu melhor Reino!... Sinto tinir espadas e isso lembra-me o ver cair neve... Lembras-te de antigamente?... Eu era muito pequeno, e quando o silêncio da neve descia sobre a terra, íamo-nos sentar para a lareira do castelo a falar nas coisas que nunca aconteceriam... Quantas princesas amei no futuro que nunca tive!... Lembras-te - não te lembras? - de como eu ficava cansado pelos combates em que nunca havia de entrar...

X - Para vós, Senhor, só havia na vida amanhã...

P - Talvez porque o meu corpo sabia que eu teria que morrer cedo... Mas não era amanhã nunca para mim, era sempre depois de amanhã... Eu sonhava sempre com um futuro que estava sempre um pouco ao lado do futuro que teria...

X - Às vezes eu contava histórias de fadas...

P - Sim... Eram todas diferentes... Na minha terra toda a gente é

igual... Cansa tanto olhar para gente!... Nas festas do palácio havia sempre grupos que segredavam do meu silêncio... Eu via-lho nos olhos... Eu ficava a um canto, sempre não vendo aquilo para que olhava... Via sempre coisas diferentes daqueles entre quem eu estava... Nas salas do palácio, os meus olhos estavam nos bosques e a minha ânsia de estender os braços com a frescura das ervas e a maciez das pétalas e a paisagem das fontes...(...) Eu nunca fui feliz... Quando, nas ameias do meu novo castelo, eu olhar debruçado a confusão pequenina do mundo, eu serei feliz completamente... Talvez nem mesmo assim seja feliz... Mas que todo o meu encanto seria estar aonde não estou para de lá poder desejar onde estar...

X - Não serão todos assim?

P - Quem são todos? Para mim todos são só um... Eu nunca conheci ninguém. Distinguia as pessoas como quem distingue pedras... Nunca me deram a impressão de serem reais, especialmente quando falavam... Diziam todas as mesmas coisas, todas tinham amores e ódios, alegrias e dores, ânsias e cansaços... Se alguma me falava de qualquer coisa, eu, se fechava os olhos, tinha sempre diante de mim o Homem. Não, há em toda a gente uma só pessoa que não existe... Que vago... Que vago...

X - Vago, o quê, meu senhor?

P - Tudo... O horizonte está muito longe, muito longe... Ainda assim... não sei... não está... Sinto-o muito mais longe, mas não o vejo muito mais longe... Não sei bem o que vejo ou o que sinto... Talvez que as minhas sensações é que me sintama mim... Parece-me que as coisas é que me sentem e que eu não existo senão porque as coisas me veem e me sentem... Era bom se assim fosse... Não sei por que seria bom... Talvez por ser outra coisa... Como os reposteiros são estranhos...

X - Estranhos? Estranhos, meu senhor?

P - Demasiadamente ali... Tenho vontade de ter medo de os estar vendo assim... Que estranho, que estranho tudo!... A janela é uma coisa muito outra! Parece saber que veem através dela... Parece ver também... Parece que ela é que vê as coisas que nós vemos por ela. . . E a almofada, a almofada?

X - Que almofada, senhor? Essa. . .? Não a podeis ver. . .

P - Esta, esta... Não sei se a vejo... É enorme... Tem toda a extensão da vida!... Mergulho nela como num mar de que ainda na minha carne saibam a sonhos... As minhas mãos, ao tocar nas roupas do meu leito,

sentem-lhes coisas que antes não lhes poderiam sentir, significações seguras, frescuras, renúncias tímidas de linho... Ah, mas que estranho! Mas que estranho! Não sei bem onde estás... As coisas em torno a mim são de tamanhos que não deviam ter... O meu leito é imenso como o repouso de um mendigo... As minhas mãos têm um fulgor a incertas... Como que vejo por dentro os perfis e os contornos das coisas... Não te sei dizer o que sinto... Não te sei dizer o que sinto... Todas as coisas tomam aspectos atentos... Todas as coisas se tornam heráldicas de mistério... Já não há cores... Já não há cores... Ah! o que é isto que as cores são agora?... O que é isto... Não são elas... São sonhos de outras coisas... São aproximações de coisas que vão a chegar à terra do espaço... Devo ter muito medo... Devo ter muito medo...

X - Aquietai-vos, Senhor, aquietai-vos. Eis de viver... Este fim de dia é tão belo que não pode morrer alguém nele... Vede como os restos do sol são roxos e cinzentos no ocidente! Deveis viver, para viver... Espera-vos o amor e a lida...

P - Nunca agi certo.

X - Senhor, não penseis nisso...

P - Tratai-me antes de Senhora... Sou uma princesa de quem se esqueceram quando buscaram rainha... Ah que horror, que horror!

X - Que tendes, Senhor? Que tendes?

P - Oh como tudo está mais estranho ainda! Não há já formas -- oh meu Deus, oh meu Deus - não há já formas... Transbordaram as coisas umas para dentro das outras... No ar há só restos delinhas... Tudo é um fumo de lugares... Poeira, poeira... Tudo em poeira...(...) Tudo é cinza de tudo... Tudo é cinza de tudo... Há em mim labirintos de não poder ver... A janela? Onde está a janela... É uma coisa que brilha extraordinariamente mas em parte nenhuma do espaço... Tudo é cinzas de um fumo...(...) Onde estás tu? Onde estás tu?

X - Aqui, Senhor, aqui!...

P - Não sei se te não vejo... Não sei o que é que vejo... Já não há coisa nenhuma...(Numa voz lenta e calma) O que é isto tudo? Não sei de que lado está a vida... O espaço está ao contrário... Não me sinto eu no meu mundo... Que estranho! Que estranho! Onde é que está dando horas por dentro?...(...) Ah, vejo, vejo... Vejo agora! Vejo agora!

X - Que vedes, Senhor, que vedes? Acalmai, acalmai! Que vedes?

P - Vejo, vejo... Vejo através das coisas... As coisas escondiam... As

coisas não eram senão um véu... Ergue-se o pano, ergue-se o pano do teatro... Tenho medo, tenho medo... Ah vejo, vejo enfim... Vejo enfim tudo... Olhai... Olhai... Agora vejo... Vejo as coisas reais, vejo as coisas que existem... Vede que surgem...(...) Vejo através das coisas como através dos meus olhos... As cidades sonhadas é que eram... Reais... As coisas são apenas a visão trêmula delas refletidas nas águas do meu olhar... Só o que nunca se tornou real é que existe realmente... O que acontece é o que Deus deita fora... O que parece não é real, é as costas das mãos de Deus, a Sombra dos seus gestos... As princesas que eu sonhei é que existem... As da terra são apenas as bonecas com que as outras brincam, vestindo-as, corpo e alma, a seu modo...

P - No além, floresço em corpo e para fora numa roseira com rosas brancas, e para dentro e em alma num outro universo, meu - numa outra paisagem minha. O corpo da minha vida real é uma roseira branca no Além; a alma da minha vida real é um universo interior no Além, um universo de dentro com montes com o perfil da minha ânsia, prados da extensão dos meus desejos.

P - Oh que horror, que inesperado horror! Que complexo! Que complexo! Sou a mesma roseira, mas estou vendo para dentro de mim... Tenho um reino, reino externo que sou eu além, tenho um universo meu - uma terra, uns céus... Vede... Vede quem eu sou! Sinto-me roseira no escuro, mas olhando para dentro de mim vejo paisagens... Que paisagens amontoadas... Que contornos vagos! Que mistério estranho! Cada coisaé um universo para dentro... Cada coisa no além é um universo perfeito olhando do seu corpo para a sua alma... Oh! Oh! Já me não vejo. Sinto-me roseira toda perfumada... O corpo da minha realidade no além é uma roseira, que sinto mas não vejo... Os meus olhos esvaíram-se para a alma... Floriram para dentro as melhores flores do meu ser do além!...

X - Senhor! Senhor! Senhor! Já nem sequer me amas, já nem sequer me amas!

P - Que paisagem é esta que é uma roseira branca nas noites do além! Que(...) montes! Que linha estranha que têm estes montes! Que vales tão aluindo-se.

P - Qual foi aquela batalha em que eu ia na frente dos meus corcéis, de pluma branca ondeando ao vento.

X - Não houve essa batalha, senhor. Não entraste nunca em combate...

P - Então por que me recordo tão bem disso? Eu ia indo e, não sei como, via-me longe. Eu era belo como não pode ser. A batalha durou muito tempo em que não se via nada. Ah, então essa foi uma derrota, uma derrota... Pobre de mim, que até os meus exércitos na guerra não podem vencer nem regressar...

P - É tudo as paredes de um grande poço a que não vejo o fundo... Que fundo, oh que fundo! De que lado é que é o negro? Aonde é por cima e por baixo? Onde é que está o lugar onde eu estou? Ah, não sei onde está o espaço... Está tudo errado, tudo vazio de dentro para fora... Não tenho esquerda nem direita... Nem há lado nem posição... Ah, o que é isto tudo, o que é isto tudo? Tenho medo(...) Fecha-me na vida... Não me deixes sair da vida... Isto aqui é tão estranho!

P - O silêncio das coisas faz-me gestos que me apavoram. Onde estão as coisas... Já não há coisas... É tudo negro, tudo negro... Não, Não... Tudo como se fosse negro. São gente... Ah, vede, vede... São figuras que passam... Não há coisas, há gente. Sobem dos abismos como exalações... Já não há cima nem baixo nas coisas.

Tudo é já Diverso - mesmo o modo de se ser diverso.

X - Vede, senhor, vede, estais melhor... Já vedes coisas e antes víeis só sonhos.

P - Não, não... Passei atrás de Deus para o outro lado da ilusão...(...) Agora ouço-te: és uma figura num sonho... Amo-te com compaixão porque te julgas real... A tua alma e o teu corpo são uma só coisa, mal sabes tu o que eles te encobrem...

X - Acalmai-vos,senhor... Acostai-vos no leito... Tudo isso é sonho... Amanhã estareis melhor.

P -(numa voz calma e lenta) Ouço um ruído de fonte... Que grande noite! Que grande paz cabe no haver esta noite... É outra espécie de noite... É a própria paz... Mas que lugar tão estranho... Todo fresco de tanto abismo... Por onde é que eu vou andando?...

X - Não andais, senhor...

P - Ouvi um ruído qualquer... Que grande paisagem de abismos...(...) No fundo de um desses abismos deve estar Que calma espera nos contornos invisíveis dos rochedos? Que sossego se abisma nas profundezas!... Já estou esquecido de novo... Para onde vamos nós? Não ouço caminhar... É como se estivesse a dormir enfim... Cada passo é sereno , cada passo é calmo como ter já chegado.. . Como estou calmo.

Vai raiar a aurora. . .

X - Anoitece, meu senhor, anoitece...

P - Vede, vede... Os exércitos que eu comandei... Os cavaleiros do meu séquito... Vencedores ao longe... Vencedores ao longe... Todos eles sou eu... Vede, vede... Chegam ao castelo... Que grande castelo todo do poente! Chegam ao castelo... Ah, o que é isto? Como tudo se alarga! Como tudo se aviva... Ah! O castelo está em chamas, está em chamas! Assim é que ele devia estar... Assim... Assim... Ondeia em chamas, alastra-se no fumo... É maior ardendo, é mais antigo ardendo... É mais meu ardendo... Cresce tudo, cresce tudo... Que deslumbramento... Há fogo nas eiras... Há fogo nas eiras... Os pinheirais estão em chama... O céu é um mar imenso em marés furiosas de fogo... Tudo transborda lume... Queima-se em mim todo o universo... Arde todo ali fora... No lume cresceu tudo para dentro... Tudo floresceu em chamas...

Vejo demais... Há coisas a mais no espaço... Há coisas demais em cada coisa... Há muito em tudo... Está tudo errado, pra mais... Já vai mudar tudo... O fogo é já de outra cor... Ah... Tudo é negro... Tudo é negro... Tudo é negro outra vez... Há ruídos de grandes quedas; há choques de exércitos na noite... Ninguém sabe se vence... Tropéis de cavalos no longe... Onde está o mundo? Onde está o mundo? Onde há coisas? Onde há coisas? Onde há coisas?

X - Meu senhor, meu senhor...

P - Já não sei nada...(...) Fala-me... Fala-me... Fala-me... De que lado da minha alma é que soa a tua voz?

DIÁLOGO NO JARDIM DO PALÁCIO

A. O nosso pai e a nossa mãe foram os mesmos. Nós somos portanto a mesma coisa; somos um só, ainda que pareçamos dois? Ou não somos - e o que interveio entre nossospais e nós para que pudéssemos ser diversos? O que é que me separa de ti? Estendo a mão e toco-te e não sei o que é tocar-te... Olho-te e não percebo o que é ver-te. Para mim és mais real do que eu própria porque te vejo todo, porque te posso ver as costas e não a mim... Para mim existo apenas de um lado... Oh, se eu pudesse compreender o que estou dizendo!

B. Que vês tu de mim? O meu corpo. Tu à minha alma não vês.

A. Mas nem a minha vejo, e ao meu corpo mal o vejo. Não o vejo como um corpo se deve ver para parecer real. Olho para baixo para ele, não olho para diante como para ver o teu. Se ao menos eu me sentisse

sentindo meu corpo! Mas não me sinto dentro nem fora. Nem sou nem existo, o meu corpo. São - corpo e alma - qualquer coisa que eu não possuo.(Pausa) Ah! e quando nos espelhos que me refletem me vejo de costas, andando, ou me vejo de lado - encho-me do terror do meu mistério. Sinto-me horrorosamente coexistir comigo . Ando atada a um meu sonho que sou eu. Quando me vejo de costas nos espelhos parece que tenho um outro ser, que sou outra coisa. Estranho-me por fora... Que horror que não possamos ver mais do que um lado do nosso corpo de cada vez. Que se passará do lado que não estamos vendo quando nós o não estamos vendo?(...) Reparaste já que não podemos ver mais do que dois lados do palácio ao mesmo tempo? Que Deus se estará pousando sempre do lado para que não podemos olhar? Se tu soubesses como a minha vida é pensar nisto!

B. Ah, tudo isso não me perturba tanto como a minha voz, quando soa de mim e eu penso que não a criei, nem sei o que ela é, e a trago comigo como uma coisa minha. Falo e reparo nas palavras e no mistério de elas significarem. Nunca te escutaste? Tu nunca te escutaste? Mais do que ver-me de fora, o que os teus espelhos, ainda assim, te conseguem, eu queria ouvir-me de fora! Tapo os ouvidos às vezes, para ouvir a minha voz dentro de mim, e ouço apenas um sussurro, como se estivesse mais perto de mim, e começasse já a conhecer de quem é a voz que é minha. E tenho um medo que não me deixa continuar...

A. Ah, e os outros sentidos! A quem te sabes tu na tua boca? Quecheiras tu quando não cheiras nada? E quando tocas com uma mão no teu braço ou na tua face - pensaste já que a tua mão é que toca na tua face e não a tua face na tua mão, mantém a tua face sob a tua mão e será sempre a tua mão que toca, e a tua face a que é tocada.

B. Mesmo o tocar nas coisas - que estranho. Se eu tiver aquela pedra na mão, daí a pouco não a sinto já - parece que pertence ao corpo. Que mistério que é tudo! Andamos a dormir para nós próprios. Quanta alma durará o nosso sono?

(Uma pausa)

A. Às vezes, quando penso muito adentro, sabe-me a que corpo e alma são uma coisa só... Parece-me então que realmente vemos as coisas de dois lados, que a alma das coisas é aquilo que nos parece que não vemos delas... Não, não é isto que eu te quero dizer... Vê, não sei pensar o meu pensamento!

B. Sim, compreendo o que não disseste. Mas o corpo não existe,

talvez: é a alma vista pela de si própria.

A. Não. Não é assim. Não é assim. Mas eu não sei como é.

B. Vamos jogar, se quiseres, um jogo novo. Joguemos a que somos um só. Talvez Deus nos ache graça e nos perdoe ter-nos criado... Senta-te aqui, defronte de mim e chegada a mim. Encosta os teus joelhos aos meus joelhos e toma as minhas mãos nas tuas... Assim... Agora fecha os olhos. Fecha-os bem e pensa... E pensa... Em que deverás pensar? Não, não penses em nada. Trata de não pensar em nada, de não querer sentir, de não saber que ouves ou que podes ver, ou que podes sentir as mãos, se quiseres pensar que elas existem... Assim, amor... Não movas nem o corpo nem a alma...

(Uma pausa)

B. O que sentiste?

A. Primeiro nada... Foi um espanto de ti e de mim... Depois que me esqueci de tudo, meu corpo cessou. Quis abrir os olhos mas tive um grande medo de os abrir. Depois cessei ainda mais... Fui pouco a pouco nem tendo alma. Encontrei-me sendo um grande abismo em forma poço, sentindo vagamente que o universo com os seus corpos e as suas almas estavam muito longe. Esse poço não tinha paredes mas eu sentia-o poço, sentia-o estreito, circular e profundo. Comecei então a sentir o grande horror - ah, já não poder senti-lo! - é que esse poço era um poço para dentro de si próprio, para dentronão do meu ser nem do meu ser poço, mas para dentro de si próprio, nem sei como.(...)

B.(numa voz muito apagada) Depois? Depois?

A. Depois desci... Encontrei no pensamento uma dimensão desconhecida por onde fiz o meu caminho... É como se se abrisse no escuro um vácuo. O súbito pavor de uma Porta... Assim no meu pensamento uno, vácuo abstrato, uma porta se abriu, um Poço por onde fui descendo. Compreendes bem, não compreendes? Foi no pensamento todo abstrato e sem diferenças nem fins, nem ideias, nem ser, que um Poço se abriu... E eu desci, ao contrário do que se desce - ao contrário por dentro do ao contrário...

(Pausa)

B. Continua, continua...

A. Desci mais, sempre mais... e sempre nessa nova direção. Mas...(ajuda-me a poder dizer isto!)(...)

A. Oh, que horror! Que horror o que estou sentindo! Arrancam-me a alma como os olhos para não ver! Sabes o que eu sinto?(...)

Sinto-o como se o visse - como se o visse e aquilo nem pensar se pode! Ah, agarra-me, tem-me nos teus braços! Aperta-me! Aperta-me tanto que o teu braço me magoe(...).

B. Não quero, não quero... Tu não sabes o que senti!

A. Não ouso querer não o ouvir... Mas tenho medo...

2.ª O nosso amor é parecido com o sonho porque não é senão a superfície do amor: O meu amor é impossível como realidade, possível só com amor.(...) Cada uma de nós, no nosso amor, não ama senão a si, no amor; sonha em voz alta e é ouvida. Sonha com o corpo, com os beijos, com os braços.

1.ª Dir-lhe-ei que o não amo. Que melhor amante que tu? És mulher como eu e amando-te é a mim que me posso amar.

2.ª Realizar o amor é desiludir-se. Quanto não desiludir-se é acostumar-se. Acostumar-se é morrer. Por mim só amei na minha vida, e amo, a um estrangeiro de quem não vi mais do que o perfil, a um cair de tarde, quando estávamos numa multidão.

1.ª Mas ele sabe que o amas? Se ele não sabe que tu o amas de que serve amá-lo?

2.ª O meu amor é o meu e está em mim e não nele. Que tem ele comigo senão o amo? Se eu o conhecesse a nossa primeira palavra seria a nossa primeira desilusão...(...) Valerá a pena amar o que podemos ter? Amar é querer e não ter. Amar é não ter. O que temos, temos, não amamos.

A. Se, apesar de tudo, nós nos amássemos!

B. Não, agora já não podeser. Descobrimos num momento o que os felizes atravessaram a vida sem descobrir, e os mais infelizes levam muito tempo a achar. Descobrimos que somos dois e que por isso não nos podemos amar. Descobrimos que não se pode amar mas só supor que se ama.

A. Ah mas eu amo-te tanto, tanto! Tu se dizes isso é porque não imaginas quanto eu te amo.

B. Não, é porque sei quanto tu me não podes amar...

Escuta-me. O nosso erro foi pensar no amor. Devíamos ter pensado apenas um no outro. Assim, descobrimo-nos, despimo-nos da ilusão para

vermos bem como éramos e vimos que éramos apenas como a ilusão nos fizera. No fundo não somos nada senão Dois. No fundo somos uma epopeia eterna - o Homem e a Mulher...(...)

A. Oh, meu amor, não pensemos mais, não pensemos mais. Amemos sem pensar. Maldito seja o pensamento! Se não pensássemos seríamos sempre felizes... Que tem quem ama com o saber que ama, com pensar amor, com o que é o amor?...

B. Não podemos deixar de querer compreender.(...) Quanto mais penso em tudo, mais tudo se me resolve em oposições, em divisões, em conflitos! Mataste de todo a minha felicidade! Agora mesmo que eu quisesse sonhar, nem isso podia fazer. O mundo é absurdo como um quarto sem porta nenhuma... Que alegria se não pensássemos, e que horror o havermos pensado!

A. Agora podemos sonhar... Vem. E não penses mais, não olhes mais para o amor.

B. Não... Agora é impossível. Podemos não pensar, mas não esquecer que pensamos... Sejamos fortes e separemo-nos agora para sempre. Oxalá nos possamos esquecer e esquecer que sonhamos o amor e vimos que ele era uma estátua vã... Olha, tolda-se o céu... Levanta-se o vento. Vai chover...

A. Já não ouso dizer-te que te amo, mas amar-te-ei sempre. Tu não me devias ter amado... Tu...

B. Nada devia ser comigo é... Fomos infelizes, mais nada. A curva desta estrada foi tal que dela vimos o amor e não pudemos amar mais.

A. Tu não me amaste nunca. Se tu me tivesses amado, tu não podias dizer isso. Se tu me tivesses amado tu não pensavas no amor, pensavas em mim. Sim, agora está tudo acabado, mas porque entre nós nunca houve senão o meu amor. Amaste-me talvez porque pensaste que eu te amava ou que te devia amar. Não sei porque me amaste, mas não foi por me teres amor... Porque me olhas assim tão diferente e alheado?

B. Porque reparo agora em quão pouco sabemos do que somos, do que pensamos, do que nos leva.Subiu-me agora à compreensão o que tudo isto é de complexo e absurdo. Não nos podemos compreender. Entre alma e alma há um abismo enorme. O que nós descobrimos afinal foi isso: eu vejo-o e tu não o queres ver. Mas eu descobri mais, ao reparar que não sei o que devo fazer - é que entre nós e mim próprio se abre um abismo também. Andamos como sonâmbulos numa terra de

abismo(...).

A. Adeus, sê feliz e esquece-me. Não te demores que chove mais. Na curva da estrada há uma árvore grande onde te abrigares.(...) Vai depressa, vai depressa. Chove mais.

(Fica parada a dizer-lhe de vez em quando adeus com a mão, num pranto apagado e tímido)

B. Assim, separados, amar-nos-emos sempre. A ponte entre nós será a curva do céu, e assim o nosso amor será eterno. Possuir-te era já o caminho de perder-te. Viver contigo era a maneira de te ir esquecendo.

O que concluir de tudo isto? Nada. Dissemos muitas verdades mas elas contradizem-se umas às outras.

Os sonhos quando passam na água são repuxos também porque a gente pode senti-los do mesmo modo. Quanto a gente os sente, se depois fechar os olhos, aquilo que se sente transforma-se em repuxos que a gente vê. Eu acho que muito a explorar nas nossas sensações. Há grandes interiores de continentes dentro de nós, com mistérios a desvendar. Quem sabe, amor, se raças diferentes das nossas habitarão esses sítios desconhecidos(inexplorados)? Habituei-me sempre a olhar para as minhas sensações como para uma coisa exterior.

- De que havemos de falar?

- De qualquer coisa. Do mistério das coisas e das formas das flores. São coisas iguais quando a medida é Deus. O mistério das coisas(...) E as formas das flores foram os primeiros contos de fadas.

- Às vezes, quando acordo de noite, sinto parar de repente, para que eu não vá ouvi-lo, o ruído das mãos que estão tecendo o meu destino. Vejo no ar fragmentos do meu futuro, rápidas sombras, e tendo uma vaga intuição da unidade divina do meu ser. Eu sou uma frase divina com um sentido que me escapa.

***

- Para onde te viraste tu?

- Não me virei para parte nenhuma.

- Viraste-te... Um arrepio pela minha espinha sentiu que te viravas... Percebi logo que o fazias... Viraste-te para o lado donde sempre está chegando Deus...

- De que lado é que Deus está sempre chegando?

- De todos e de nenhum... Por isso quando te viraste para lánão fizeste

movimento nenhum com o corpo...

- Como soubeste então que eu me tinha virado?

- Deus é que soube; não fui eu.

***

B. Ah, compreendo-te, compreendo-te. Tu é que me não amas. Amas em mim o teu filho futuro.

A. Não, tu é que me não compreendes, tu não compreendes a mulher. Amo-te e amo em ti o pai do meu filho futuro. São duas coisas que eu amo em ti. Se não tivéssemos filhos eu não deixaria de te amar. Como queres compreender as mulheres se te julgas superior a elas?(...)

B. Ah, mas tu não me amas por uma razão pura. O que tu amas é o lar que eu te darei - eu, o marido, o filho que vier, a casa, o arranjo da casa, a companhia que faremos um ao outro, os amigos que, casal, teremos...(...) Vê como somos diferentes! Tu amas-me porque precisas de mim; eu amo-te porque me não és precisa. Amas-me com amor baixo com que se amam as coisas essenciais, eu amo-te com o alto amor com que se amam as coisas supérfluas.

A. Supérfluas! Que(...) me não podes amar! Ai de ti se eu te amasse como tu julgas(...) e alto. Ai dos homens se nós amássemos assim! O supérfluo é o que se pode deitar fora. Ninguém pensa em levar o supérfluo para o céu... Quando uma mulher ama, o homem que ama

SAKYAMUNI

SAKYAMUNI - Quantas vezes, antes de a verdade ter em mim a sua aurora, eu, já na antemanhã da revelação, quando a alma em mim pressentia a ilusão do mundo, dizia, dentro do meu coração, para o Mestre escondido que se aproximava: Deixa que ainda um momento eu descanse à sombra da árvore do esquecimento, e um momento mais me banhe nas águas do rio da Aparência. Suaves são as flores, e são falsas; doce, pela tarde de todos os estios, o canto morno das aves, e elas são aparência apenas. É quente ter pai ou mãe, e ter esposa e filhos, e tudo isso eu sei que não é mais, no Todo Imanente, que a sombra que a árvore lança no chão, e não o chão nem a árvore, do que o vento que passa e esquece, e não é o ar onde passa nem as árvores em que mexe, nem as flores cujo perfume leva para longe, entre cicios.

SEMICORO - Boddhisattva, todos são tentados e à passagem de todas as portas alguma cousa nos quer fazer olhar para o lado. Mas o sábio caminhasem olhar para o lado, porque à Direita está a Verdade falsa, e à

Esquerda a Mentira verdadeira; uma e outra filhas do Lado e do Desvio, fruto sombrio da árvore do Aniquilamento.

SEMICORO - Os raios do sol não são o sol, nem o trigo o pão que há de ser. Tudo, porém, é uma só coisa.

Sete são as portas da Iniciação e todas as portas são a mesma Porta. Sete são os desejos que prendem o homem à terra e à ilusão, sete as libertações; sete, também, as renúncias com que a alma se liberta. Fazei por que a Morte guarde os portais do teu Desejo e a Peste caia por sobre as cidades da tua Ambição. Filho, as horas regulares medem o tempo para os homens, como os desejos e as esperanças marcam o tempo para as almas; mas as horas, como os desejos, são frutos da Árvore da Morte, a que damos o nome a Árvore da Vida.

Boddhisattva, quem passa as sete portas, que lhe não doa deixar tanto amor? A mãe que velou a nossa infância, e o pai a quem confiamos os nossos primeiros cuidados, o irmão com quem nos sentávamos à porta, a irmã que vinha chamar-nos ao jardim; aquela que amamos e foi nossa esposa, e de quem são filhos os nossos filhos e irmãs as esperanças que temos na sua fortaleza e na sua sabedoria; os nossos filhos, que são a nossa sombra na carne, a nossa esperança feita Vida - tudo isto devemos nós considerar como o fumo que no silêncio da tarde deixa devagar os cimos das casas e se perde no ar como o voo das aves que não voltam nunca? Tivemos amigos, a quem demos aquela metade da nossa alma que é a confiança, e discípulos que quiseram receber da nossa mão a ciência, aquela esmola que não dá orgulho a quem a dá, e que não faz humildade em quem a recebe. Quisemos que os que eram nossos sócios na vida fossem felizes, que os propínquos nos amassem como a pais, e que os homens da nossa terra dissessem: ele foi entre nós como a sombra no estio e como a lareira no inverno; ele passou, ficando no exemplo e no nosso amor. Tudo isso, ó Boddhisattva, valerá tão pouco que hajamos de o pôr de lado como um fardo inútil, ou que passar por cima dele como por cima do riacho que atravessa o caminho?

Tudo quanto vimos somos nós, e tudo quanto amamos somos nós. A tua mãe e o teu pai és tu, a tuaesposa és tu, e és tu os teus próprios filhos. O que desejaste e o que amaste é o corpo do teu desejo, feito não da terra, mas da alma, não do barro das horas, mas do limo humilde das afeições. Se houvéssemos só de deixar aquilo que não amamos, que mais valeríamos ante o Invisível que os animais do campo, que fogem ao

que temem, e abandonam o que não querem? Matai o desejo, e ao amor crucificai-o, para que ao terceiro dia da Renúncia suba ao céu e assente à mão direita da Primeira Encarnação do Invisível. Todos os laços são cadeias, e ergástulos todos os lares. Sobe, Discípulo, o caminho estreito; busca perder-te para te encontrares, abdica-te de ti para seres tu; entra na noite para encontrares o dia. Tudo é o contrário e a sombra cerca-nos. Dorme para a ilusão do Mundo.

A. Boddhisattava, estás agora quase no princípio e no fim do caminho(sem fim nem princípio). Ouvem-se já os teus passos para além do Grande Limiar. Breve, sem tempo em que seja breve, teu vulto sem corpo florirá a libertação final. A veste esplêndida que torna invisível a Personalidade cairá, ó Senhor, sobre os teus ombros. Bendito sejas tu que, pelo teu grande amor, ganhaste a Altura e a Redenção!

B. Bendito sejas, que chorando cegaste até veres, e sofrendo te rojaste até ao Cimo. Bendito, que vais vestir como um manto régio a negação positiva do Universo! Bendito que viveste o puro Amor, sem limites nem margens, e agora és o oceano de ti próprio, a hora absoluta do teu compassivo meditar!

A. Teus pés, Boddhisattva, rasgaram-se nas pedras de todos os caminhos da piedade, tuas mãos sangraram com todas as durezas da misericórdia, teus olhos secaram de terem chorado por todas as angústias, teus ouvidos não ouviram senão os gemidos. Agora teu amor chegou ao limiar de seres o mesmo que o Todo sem nome. Vais entrar para o sossego imenso de ti próprio, absoluto idêntico com todos os absolutos, pessoa infinita de todos os universos.

B. Bendito e exaltado sejas! Tanto amaste, que hoje és tu próprio em abstrato e divino. Tanto choraste que és hoje a lágrima suprema, a queda misericordiosa e sublime no abismo impessoal do teu Amor. Tanto desejaste todos os teus bens para todos os homens, tanto amaste Tudo em todos, tanto benzeste de auxílio e de carinho todos em Tudo, que hoje entrarás para Ti pela porta todas-as-portas, chegarás a ti pela negação absoluta de ti próprio. Bendito sejas!

O NIRVANA Repousa no meu seio, que és tu, na minha certeza, queé que o atingiste em ti. Na minha noite não há escuridão nem luz, e no meu sossego não há descanso nem paz. Dorme de todo o teu amor pelos outros na minha recompensa sem estrelas.

SAKYAMUNI - Onde pus o meu amor ele está ainda. Onde amei, amo. Onde chorei, ainda choro. Onde consolei, consolo. Que será de mim se

entrar para a paz, se o mundo não tem a paz? Que será de mim se entrar para Mim, com toda a Mágoa fora de mim e toda a imperfeição abandonada como um filho. A tua paz suprema é uma tentação sem forma; a tua recompensa é o sossego que eu não quero... Não me abras os braços, ó Nirvana!...

NIRVANA - Suaves são os meus braços de sombra e os meus cabelos de esquecimento - em torno à tua alma absoluta eles se enrolarão como a Verdade Eterna. Embalar-te-á sem movimento, para sempre além de sempre, o meu colo sem fundo nem lugar, e o teu sono será o amor que tiveste, e bondade que derramaste, e as lágrimas(...) do mundo.

SAKYAMUNI - Ai dos que sofrem, que sofrem ainda! Ai dos que gemem que gemem sempre! Ai dos tristes e dos oprimidos, que eu deixaria ao desamparo na tua noite em que nada lembra - nem os rios do meu amor nem as areias do meu carinho.

Tu não tens poder para me tentar. Sete, e dentro de sete, sete vezes sete, foram as tentações do meu caminho. Chamaram por mim as coisas da terra, com vozes de filho que chamam a mãe. Choraram por mim como

Passei para além de tudo como o rio, que flui para o mar, e que, se não vai pela direita, é pela esquerda, e vai sempre, e o mar espera-o ao longe.

SAKYAMUNI - Ó olhos da Ciência, ó Braços da Compaixão!

Encarnarei em mim todo o mal do mundo - o mal passado e o mal presente e o mal futuro. Assim me tornarei o Mal Absoluto. E como o mal é o nome positivo da Negação, tornado que eu seja o Mal Absoluto, estarei tornado o Nada Absoluto, e, logo, extinto completamente morto de todo, sem passado em que houvesse sido, ou futuro em que venha a ser, ou presente, mesmo, em que seja mesmo o Nada em que me haja tornado. Serei o Único Morto, a Morte Toda. E, fora de Mim, o Ser Puro; o Universo liberto do mal e da negação, será Deus em todas as eternidades.

- E de ti, ó Sol do Amor, queserá? Poderás tu escolher o Nada e o Mal e a Morte só para ti? Ousarás tu querer esse sacrifício da estatura do Infinito? Tu, que te afastaste do Mal, como poderás tu dar-te a ele até seres o seu corpo? Tu, que negaste a negação, poderás tu transformar-te nela? Poderás tu ser Deus com o Corpo da sombra e da maldade?

- Tudo é possível ao Amor. Ele, que na sua humana forma humana

constrói pontes sobre os abismos, e abre estradas de impossível para impossível, em mim, tornado absoluto, será o Fogo sem Chama ascendendo todo o Universo.

B - A carne do meu corpo é a dor universal, corre nas veias da minha vida o sangue das lágrimas dos homens.

N - Grande é o repouso do meu seio de sonhos. A minha noite não tem o cansaço e a angústia de ter um dia depois dela,(ó Venerável) Arhat, os meus braços são de Vida e Esquecimento...

B - Grande é aquele que, não querendo possuir, também não quer esquecer. Todas as mães são a minha mãe que chora, todas as filhas são as minhas filhas que me chamam. A tua porta aberta está fechada dentro do meu amor.

o meu ser compassivo torna-se o ser universal. O manto da minha compaixão cairá sobre as coisas e elas terão o repouso de não verem a luz da ilusão.

Eu próprio, pelo meu grande amor, serei o Nirvana. Terão repouso e fim na carne da minha alma todas as almas que sofrem.

N - Arhat, o rio não volta à nascente, nem

SEMICORO - A. Tornado a Negação Absoluta, extinguir-te-ás de todo, ó Boddhisattva. O único Nada serás tu. O resto será o grande e puro, limpo e uno Universo. A tua Morte será a vida de tudo. Tornado a Diversidade Absoluta, o Abismo Puro, morrerás de ti próprio. E tudo será o Nirvana atingido, e o Fim da Estrada. O resto é o nada onde tu és a morte sem nada seres. O teu sacrifício não tem Deus. A tua Renúncia é um universo - o universo-abismo, o abismo do abismo, o Nada não em si mas em Nada.

B. Mas que é feito de ti, Senhor, quando assim for? Tu, Bem, por o seres te tenta o Mal Absoluto. Tu, o Tudo, te tenta o Nada.

Vede como nesse futuro sem tempo, todo o Universo dos Universos se ergue uno e divino. O mal, tornado mal absoluto, torna-se o puro Nada, e, assim, para sempre desaparece. Tu, Senhor, por teu amor sem limite nem prêmio,tu te tornaste o puro Nada para que o mundo pudesse ser Tudo; tu te tornaste a Única Morte, a Morte...

A. Agora que renunciaste para sempre, que te condenaste eternamente à dor eterna; agora que, sem lar nem mesmo em ti próprio, sem mãe mesmo no teu carinho, te arrastas puro de dor, pelo erro doloroso do mundo - agora que será de ti, ó Senhor da Compaixão? Sofre

o mundo ainda, embora o alivies, morre a vida ainda, embora a ames? Tens mais que matar em ti, para que o mundo viva? Pára, não ouses mais mágoas e mais dores. Há mais dores, acaso, que tu ouses? Há mais mágoas que atentes contra ti? Derrama eternamente, homem eterno, o bálsamo do teu carinho sobre as cousas. Rocio, amacia de brilhantes o verde matutino das ervas, e de luzes de sol agora limpa a superfície nítida das flores. Corre, suave sussurro, nos rios para todos os mares .

Renunciaste à vida pessoal, ó Boddhisattva, e renunciaste à vida impessoal. Que mais alturas te matas?

- Renunciarei agora a toda a Vida, morrerei de todo no mundo. Que vale essa frase sem lugar que enche de sombra e de medo os olhos inúmeros do mundo?

- Senhor, tu vais ser todos os crimes, todos os vícios, todos os males, Senhor, vais ser todas as algemas e todos os algemadores. Como podes tu querer ser o Mal, como podes tu querer ser a limitação?

- Tornado uno com o mal, com a imperfeição e com a mágoa, impersonalizá-los-ei em mim. E o mundo dividido e diverso, o universo múltiplo e sucessivo, tornado impessoal em mim, deixará de ser dividido para ser uno, deixará de ser imperfeito para ser a Perfeição Suprema.

- E tu, Senhor, que serás?

- Tornado o Puro Mal, o Puro Imperfeito, deixarei de todo de ser. Encarnará em Mim o Nada Absoluto e eu tornado o Abstracto

CORO - Benditos sejam os prados, porque não serão mais os prados, e os bosques porque não serão mais os bosques, e o correr dos rios, porque não será mais de rios, nem será correr. Tudo será como era, e a Perfeição.

- O SER SEM SER - Só eu sou.

Tudo é uno e tudo não é uno. Nada é e tudo é. E tudo isto é nada. Só eu sou.

Além de tudo está tudo, e aquém de nada, nada. Só eu sou.

Tudo é o ser, e tudo é o não ser. Só eu sou.

Sem ser nem não ser, só eu sou.

CORO -Todo este futuro sem tempo é o meu passado. Só eu sou. Para sempre de sempre num lugar sem espaço, num futuro sem tempo, Senhor!

2.° - Quem sabe se ele, tornado o Nada, não foi um Todo para outro

Deus, de quem este seja a diferença ou o sonho? Quem sabe se ele não é o Todo por ter morrido(para) Tudo?

Nota do autor:

As três renúncias de Sakyamuni:

a) a renúncia à vida terrena, à vida das emoções, a renúncia à vida da personalidade.

b) a renúncia à vida nirvânica, a recusa a vestir a veste de Nirmanakaya.

c) a renúncia à vida impessoal, à vida pura e grande, para se tornar humano e interior às coisas do mundo, esgotando através de si todo o mal que no mundo existe.

NO JARDIM DE EPICTETO

O aprazível de ver estes frutos, e a frescura que sai d'estas árvores frondosas, são - disse o Mestre, - outras tantas solicitações da natureza para que nos entreguemos às melhores delícias de um pensamento sereno. Não há melhor hora para a meditação da vida, ainda que seja inútil, do que esta em que, sem que o sol esteja no ocaso, já a tarde perde o calor do dia e parece que sobe vento do arrefecimento dos campos.

São muitas as questões em que nos ocupamos, e grande é o tempo que perdemos em descobrir que nada podemos nelas. Pô-las de parte, como quem passa sem querer ver, fora muito para homem e pouco para deus; entregarmo-nos a elas, como a um senhor, fora vender o que não temos.

Sossegai comigo à sombra das árvores verdes, em que não pesa mais pensamento que o secarem-lhes as folhas quando vem o outono, ou esticarem múltiplos dedos hirtos para o céu frio do inverno passageiro. Sossegai comigo e meditai quanto o esforço é inútil, a vontade estranha; e a própria meditação, que fazemos, nem mais útil que o esforço, nem mais nossa que a vontade. Meditai também que uma vida que não quer nada não pode pesar no decurso das coisas, mas uma vida que quer tudo também não pode pesar no decurso das coisas, porque não pode obter tudo. E o obter menos que tudo não é digno das almas que solicitam a verdade.

Mais vale, filhos, a sombra de uma árvore do que o conhecimento da verdade, porque a sombra da árvore é verdadeira enquanto dura, e o conhecimento da verdade é falso no próprio conhecimento. Mais vale,

para um justo entendimento, o verdor das folhas que um grande pensamento, pois o verdor das folhas, podeis mostrá-lo aos outros, enunca podereis mostrar aos outros um grande pensamento. Nascemos sem saber falar e morremos sem ter sabido dizer. Passa-se nossa vida entre o silêncio de quem está calado e o silêncio de quem não foi entendido, e em torno d'isto, como uma abelha em torno de onde não há flores, paira incógnito um inútil destino.6. Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio

Onde é dada a palavra a Ricardo Reis: epicurista, estoico, monarquista(expatriou-se ao Brasil espontaneamente, fugindo da República, em 1919), neopagão, poeta e amigo das nereidas...

Seguro assento na coluna firme

Dos versos em que fico.

Aquele agudo interno movimento

Por quem os fiz pensados

Passa, e eu, outro já que o fator deles,

Póstumo substituo-me.

Chegada a hora, eu próprio serei todo

Menos que essas palavras

E papel, ou papiro escrito e morto

Será mais eu que eu mesmo.

A obra imortal excede o autor da obra;

E é menos dono dela

Quem a fez do que o tempo em que perdura.

Morre a obra a vida nossa.

Durar, sentir, só os altos deuses unem.

Nós não somos inteiros.

Assim os deuses esta nossa regem

Mortal e imortal vida;

Assim o Fado rege que assim rejam.

Mas se assim é, é assim.

As Rosas amo dos jardins de Adônis,

Essas volucres amo, Lídia, rosas,

Que em o dia em que nascem,

Em esse dia morrem.

A luz para elas é eterna, porque

Nascem nascido já o sol, e acabam

Antes que Apolo deixe

O seu curso visível.

Assim façamos nossa vida um dia,

Inscientes, Lídia, voluntariamente

Que há noite antes e após

O pouco que duramos.

Prazer, Mas devagar,

Lídia, que a sorte àqueles não é grataQue lhe das mãos arrancam.

Furtivos retiremos do horto mundo

Os depredandos pomos.

Não despertemos, onde dorme, a Erínis

Que cada gozo trava.

Corno um regato, mudos passageiros,

Gozemos escondidos.

A sorte inveja, Lídia. Emudeçamos.

Cuidas, ínvio, que cumpres, apertando

Teus infecundos, trabalhosos dias

Em feixes de hirta lenha,

Sem ilusão a vida.

A tua lenha é só peso que levas

Para onde não tens fogo que te aqueça,

Nem sofrem peso aos ombros

As sombras que seremos.

Para folgar não folgas; e, se legas,

Antes legues o exemplo, que riquezas,

De como a vida basta

Curta, nem também dura.

Pouco usamos do pouco que mal temos.

A obra cansa, o ouro não é nosso.

De nós a mesma fama

Ri-se, que a não veremos

Quando, acabados pelas Parcas, formos,

Vultos solenes, de repente antigos,

E cada vez mais sombras,

Ao encontro fatal -

O barco escuro no soturno rio,

E os novos abraços da frieza stígia

E o regaço insaciável

Da pátria de Plutão.

O deus Pã não morreu,

Cada campo que mostra

Aos sorrisos de Apolo

Os peitos nus de Ceres -

Cedo ou tarde vereis

Por lá aparecer

O deus Pã, o imortal.

Não matou outros deuses

O triste deus cristão.

Cristo é um deus a mais,

Talvez um que faltava.

Pã continua a dar

Os sons da sua flauta

Aos ouvidos de Ceres

Recumbente nos campos.

Os deuses são os mesmos,

Sempre claros e calmos,

Cheios de eternidade

E desprezo por nós,

Trazendo o dia e a noite

E as colheitas douradas

Sem ser para nos dar

O dia e a noite e o trigo

Mas por outro e divino

Propósito casual.

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.

Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos

Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.

(Enlacemos as mãos)

Depois pensemos, crianças adultas, quea vida

Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,

Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,

Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.

Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.

Mais vale saber passar silenciosamente

E sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,

Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,

Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,

E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,

Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e caricias,

Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro

Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as

No colo, e que o seu perfume suavize o momento -

Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,

Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois

Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,

Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos

Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,

Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.

Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio,

Pagã triste e com flores no regaço.

Não tenhas nada nas mãos

Salvo uma memória na alma

Que quando te puserem

Nas mãos o óbolo último

Nada terás deixado.

Tu serás só tu próprio

Não poderão roubar-te

O que nunca tiveste.

Que trono te querem dar

Que Atropos to não tire?

Que Coroa que não fane

No arbítrio de Minos?

Que horas que não te tornem

Da estatura da sombra

Que serás quando fores

O fim da tua estrada?

Colhe as flores. Abdica

E sê Rei de ti próprio.

Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo,

E ao beber nem recorda

Que já bebeu na vida,

Para quem tudo é novo

E imarcescível sempre.

Coroem-no pâmpanos, ou heras, ou rosas volúveis,

Ele sabe que a vida

Passa por ele e tantoCorta a flor como a ele

De Átropos a tesoura.

Mas ele sabe fazer que a cor do vinho esconda isto,

Que o seu sabor orgíaco

Apague o gosto ás horas,

Como a uma voz chorando

O passar das bacantes.

E ele espera, contente quase e bebedor tranquilo,

E apenas desejando

Num desejo mal tido

Que a abominável onda

O não molhe tão cedo.

Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.

Não florescem no Inverno os arvoredos,

Nem pela Primavera

Têm branco frio os campos.

À noite, que entra, não pertence, Lídia,

O mesmo ardor que o dia nos pedia.

Com mais sossego amemos

A nossa incerta vida.

À lareira, cansados não da obra

Mas porque a hora é a hora dos cansaços,

Não forcemos a voz

Acima de um segredo,

E casuais, interrompidas sejam

Nossas palavras de reminiscência

(Não para mais nos serve

A negra ida do sol)

Pouco a pouco o passado recordemos

E as histórias contadas no passado

Agora duas vezes

Histórias, que nos falem

Das flores que na nossa infância ida

Com outra consciência nós colhíamos

E sob uma outra espécie

De olhar lançado ao mundo.

E assim, Lídia, à lareira, como estando,

Deuses lares, ali na eternidade

Como quem compõe roupas

O outrora compúnhamos

Nesse desassossego que o descanso

Nos traz às vidas quando só pensamos

Naquilo que já fomos,

E há só noite lá fora.

Só esta liberdade nos concedem

Os deuses: submetermo-nos

Ao seudomínio por vontade nossa.

Mais vale assim fazermos

Porque só na ilusão da liberdade

A liberdade existe.

Nem outro jeito os deuses, sobre quem

O eterno fado pesa,

Usam para seu calmo e possuído

Convencimento antigo

De que é divina e livre a sua vida.

Nós, imitando os deuses,

Tão pouco livres como eles no Olimpo,

Como quem pela areia

Ergue castelos para encher os olhos,

Ergamos nossa vida

E os deuses saberão agradecer-nos

O sermos tão como eles.

Tirem-me os deuses

Em seu arbítrio

Superior e urdido às escondidas

O Amor, gloria e riqueza.

Tirem, mas deixem-me,

Deixem-me apenas

A consciência lúcida e solene

Das coisas e dos seres.

Pouco me importa

Amor ou glória.

A riqueza é um metal, a gloria é um eco

E o amor uma sombra.

Mas a concisa

Atenção dada

Às formas e as maneiras dos objetos

Tem abrigo seguro.

Seus fundamentos

São todo o mundo,

Seu amor é o plácido Universo.

Sua riqueza a vida.

A sua glória

É a suprema

Certeza da solene e clara posse

Das formas dos objetos.

O resto passa,

E teme a morte.

Só nada teme ou sofre a visão clara

E inútil do Universo.

Essa a si basta,

Nada deseja

Salvo o orgulho de ver sempre claro

Até deixar de ver.

Não a ti, Cristo, odeio ou te não quero.

Em ti como nos outros creio deuses mais velhos.

Só te tenho por não mais nem menos

Do que eles, mas mais novo apenas.

Odeio-os sim, e a esses com calma aborreço,

Que te querem acima dos outros teus iguais deuses.

Quero-te onde tu estás, nem mais alto

Nem mais baixo que eles, tu apenas.

Deus triste, preciso talvez porque nenhum havia

Como tu, um a mais no Panteão e no culto,

Nada mais, nem mais alto nem mais puro

Porque para tudo havia deuses, menos tu.

Cura tu, idólatra exclusivo de Cristo, que a vida

É múltipla e todos os dias são diferentes dos outros,

E só sendo múltiplos como elesEstaremos com a verdade e sós.

Com que vida encherei os poucos breves

Dias que me são dados? Será minha

A minha vida ou dada

A outros ou a sombras?

À sombra de nós mesmos quantos homens

Inconscientes nos sacrificamos,

E um destino cumprimos

Nem nosso nem alheio!

Ó deuses imortais, saiba eu ao menos

Aceitar sem querê-lo, sorridente,

O curso áspero e duro

Da estrada permitida.

Porém nosso destino é o que for nosso,

Que nos deu a sorte, ou, alheio fado,

Anônimo a um anônimo,

Nos arrasta a corrente.

Enquanto eu vir o sol luzir nas folhas

E sentir toda a brisa nos cabelos

Não quererei mais nada.

Que me pode o Destino conceder

Melhor que o lapso sensual da vida

Entre ignorâncias destas?

Pomos a dúvida onde há rosas. Damos

Quase tudo do sentido a entendê-lo

E ignoramos, pensantes.

Estranha a nós a natureza extensa

Campos ondula, flores abre, frutos

Cora, e a morte chega.

Terei razão, se a alguém razão é dada,

Quando me a morte conturbar a mente

E já não veja mais

Que à razão de saber porque vivemos

Nós nem a achamos nem achar se deve,

Impropícia e profunda.

Sábio deveras o que não procura,

Que, procurando, achara o abismo em tudo

E a dúvida em si mesmo.

O sono é bom pois despertamos dele

Para saber que é bom. Se a morte é sono

Despertaremos dela;

Se não, e não é sono,

Conquanto em nós é nosso a refusemos

Enquanto em nossos corpos condenados

Dura, do carcereiro,

A licença indecisa

Lídia, a vida mais vil antes que a morte,

Que desconheço, quero; e as flores colho

Que te entrego,votivas

De um pequeno destino.

Tudo que cessa é morte, e a morte é nossa

Se é para nós que cessa. Aquele arbusto

Fenece, e vai com ele

Parte da minha vida.

Em tudo quanto olhei fiquei em parte.

Com tudo quanto vi, se passa, passo,

Nem distingue a memória

Do que vi do que fui.

Quando, Lídia, vier o nosso Outono

Com o Inverno que há nele, reservemos

Um pensamento, não para a futura

Primavera, que é de outrem,

Nem para o Estio, de quem somos mortos,

Senão para o que fica do que passa -

O amarelo atual que as folhas vivem

E as torna diferentes.

Sereno aguarda o fim que pouco tarda.

Que é qualquer vida? Breves sóis e sono.

Quanto pensas emprega

Em não muito pensares.

Ao nauta o mar obscuro e a rota clara.

Tu, na confusa solidão da vida,

A ti mesmo te elege

(Não sabes de outro) o porto.

Nada fica de nada. Nada somos.

Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos

Da irrespirável treva que nos pesa

Da úmida terra imposta.

Leis feitas, estátuas altas, odes findas -

Tudo tem cova sua. Se nós, carnes

A que um íntimo sol dá sangue, temos

Poente, porque não elas?

O que fazemos é o que somos. Nada

Nos cria, nos governa e nos acaba.

Somos contos contando contos, cadáveres

Adiados que procriam.

Para ser grande, sê inteiro: nada

Teu exagera ou exclui.

Sê todo em cada coisa. Põe quanto és

No mínimo que fazes.

Assim em cada lago a lua toda

Brilha, porque alta vive.

Quero ignorado, e calmo

Por ignorado, e próprio

Por calmo, encher meus dias

De não querer mais deles.

Aos que a riqueza toca

O ouro irrita a pele.

Aosque a fama bafeja

Embacia-se a vida.

Aos que a felicidade

É sol, virá a noite.

Mas ao que nada espera

Tudo que vem é grato.

Cada dia sem gozo não foi teu:

Foi só durares nele. Quanto vivas

Sem que o gozes, não vives.

Não pesa que amas, bebas ou sorrias:

Basta o reflexo do sol ido na água

De um charco, se te é grato.

Feliz o a quem, por ter em coisas mínimas

Seu prazer posto, nenhum dia nega

A natural ventura!

Uns, com os olhos postos no passado,

Veem o que não veem; outros, fitos

Os mesmos olhos no futuro, veem

O que não pode ver-se.

Porque tão longe ir pôr o que está perto -

A segurança nossa? Este é o dia,

Esta é a hora, este o momento, isto

É quem somos, e é tudo.

Perene flui a interminável hora

Que nos confessa nulos. No mesmo hausto

Em que vivemos, morreremos. Colhe

O dia, porque és ele.

Coroa ou tiara

É só peso posto

Na fronte antes limpa.

Coroa de rosas,

Coroa de louros,

De nada nos servem.

Que o vento nos possa

Tocar nos cabelos,

Coroar-nos a fronte!

Que a fronte despida

Possa reclinar-se,

Serena, onde durma.

Cloe! Não conheço

Melhor alegria

Que esta fronte limpa.

Sob a leve tutela

De deuses descuidosos,

Quero gastar as concedidas horas

Desta fadada vida.

Nada podendo contra

O ser que me fizeram,

Desejo ao menos que me haja o Fado

Dado a paz por destino.

Da verdade não quero

Mais que a vida; que os deuses

Dão vida e não verdade, nem talvez

Saibam qual a verdade.

Sob estas árvores ou aquelas árvores

Conduzi a dança,

Conduzi a dança, ninfas singelas

Até ao amplo gozo

Que tomais da vida. Conduzi a dança

E sê quase humanas

Com o vosso gozo derramado em ritmos

Em ritmos solenes

Que a nossa alegria torna maliciososPara nossa triste

Vida que não sabe sob as mesmas árvores

Conduzir a dança...

Os estoicos comparavam nossa vida a vida de um cão atrelado por uma coleira a uma carroça que, a qualquer instante, pode se colocar em movimento.

O comprimento da correia é tal que nos permite certa liberdade de movimento, porém, não nos permite ir aonde bem quisermos...

A carroça hoje está parada, de modo que podemos vaguear um tanto por aqui e acolá. Mas é preciso estar atento e preparado: se ela seguir viagem, se quiser nos levar a outro reino, de nada adiantará lutar contra a coleira - o máximo que conseguiremos é sermos arrastados pela estrada, à força!

Sêneca(filósofo estoico) explicava que "ao lutar contra o laço, o cão o aperta mais... Qualquer cabresto apertado irá machucar menos o animal se ele se mover com ele do que se lutar contra ele. Somente a capacidade de resistência e a submissão à necessidade proporcionam o alívio para o que é esmagador".

Nesta realidade de formas impermanentes, o cão que se adéqua ao cumprimento da própria correia, e se preocupa em passear somente onde lhe é possível passear, é tão humilde quanto uma folha de grama.

A grama, constantemente açoitada pelo vento, mas que não obstante, tem sempre perdurado, junto a suas irmãs, por todas as planícies do mundo...

Que importa se o vento é ameaçador? Enquanto houver um tanto de terra fértil no reino, o sol estará resplandecendo a toda nova manhã, e alimentando a grama, que lhe retribuí com o verde.

Toda manhã traz um novo alento e um novo espírito. Deixemos que a carroça nos conduza seguindo pelos velhos sulcos da terra.

Que importa se o vento é ameaçador? É o vento quem anuncia a chuva que virá... E enquanto houver chuva, haverá planícies verdejantes, haverá este inefável perfume de grama, haverá vida, haverá eternidade!

(isto é um trecho de outro livro organizado e comentado por mim, "Rumi, a dança da alma", que achei que caberia aqui - afinal, os poetas místicos são todos parentes; de fato, todos o somos)

7. Deus é a alma de tudo

Onde, conforme o prometido, retornamos ao diário metafísico do guarda-livros de Lisboa...

Penso às vezes, com um deleite triste, que se um dia, num futuro a que eu já não pertença, estas frases, que escrevo, durarem com louvor, terei enfim a gente que me compreenda, os meus, a família verdadeira para nela nascer e ser amado. Mas, longe de eu nela ir nascer, eu já tereimorrido há muito. Serei compreendido só em efígie, quando a afeição já não compense a quem morreu a só desafeição que teve, quando vivo.

Um dia talvez compreendam que cumpri, como nenhum outro, o meu dever-nato de intérprete de uma parte de um século; e, quando o compreendam, há de escrever que na minha época fui incompreendido, que infelizmente vivi entre desafeições e friezas, e que é pena que tal me acontecesse. E o que escrever isto será, na época em que o escrever, incompreendedor, como os que me cercam, do meu análogo daquele tempo futuro. Porque os homens só aprendem para uso dos seus bisavós, que já morreram. Só aos mortos sabemos ensinar as verdadeiras regras de viver.

Na tarde em que escrevo, o dia de chuva parou. Uma alegria do ar é fresca de mais contra a pele. O dia vai acabando não em cinzento, mas em azul-pálido. Um azul vago reflete-se, mesmo, nas pedras das ruas. Dói viver, mas é de longe. Sentir não importa. Acende-se uma ou outra montra. E uma outra janela alta há gente que vê acabarem o trabalho. O mendigo que roça por mim pasmaria, se me conhecesse.

No azul menos pálido e menos azul, que se espelha nos prédios, entardece um pouco mais a hora indefinida.

Cai leve, fim do dia certo, em que os que creem e erram se engrenam

no trabalho do costume, e têm, na sua própria dor, a felicidade da inconsciência. Cai leve, onda de luz que cessa, melancolia da tarde inútil, bruma sem névoa que entra no meu coração. Cai leve, suave, indefinida palidez lúcida e azul da tarde aquática - leve, suave, triste sobre a terra simples e fria. Cai leve, cinza invisível, monotonia magoada, tédio sem torpor.

A praia pequena, formando uma baía pequeníssima, excluída do mundo por dois promontórios em miniatura, era, naquelas férias de três dias, o meu retiro de mim mesmo. Descia-se para a praia por uma escada tosca, que começava, em cima, em escada de madeira, e a meio se tornava em recorte de degraus na rocha, com corrimão de ferro ferrugento. E, sempre que eu descia a escada velha, e sobretudo da pedra aos pés para baixo, saía da minha própria existência, encontrando-me.

Dizem os ocultistas, ou alguns deles, que há momentos supremos da alma em que ela recorda, com a emoção ou com parte da memória, um momento, ou um aspecto, ou uma sombra, de uma encarnação anterior. E então, como regressa a um tempo que está mais próximo que o seu presente da origem e do começo das coisas, sente, em certo modo,uma infância e uma libertação.

Dir-se-ia que, descendo aquela escada pouco usada agora, e entrando lentamente na praia pequena sempre deserta, eu empregava um processo mágico para me encontrar mais próximo da mônada possível que sou. Certos modos e feições da minha vida cotidiana - representados no meu ser constante por desejos, repugnâncias, preocupações - sumiam-se de mim como emboscados da ronda, apegavam-se nas sombras até se não perceber o que eram, e eu atingia um estado de distância íntima em que se me tornava difícil lembrar-me de ontem, ou conhecer como o meu ser que em mim está vivo todos os dias. As minha emoções de constantemente, os meus hábitos regulares irregulares, as minhas falas com outros, as minhas adaptações à constituição social do mundo - tudo isso parecia coisas lidas algures, páginas inertes de uma biografia impressa, pormenores de um romance qualquer, naqueles capítulos intervalares que lemos pensando em outra coisa, e o fio da narrativa se esbambeia até cobrejar pelo chão.

Então, na praia rumorosa só das ondas próprias, ou do vento que passava alto, como um grande avião inexistente, entregavam-me a uma nova espécie de sonhos - coisas informes e suaves, maravilhas da

impressão profunda, sem imagens, sem emoções, limpas como o céu e as águas, e soando, como as volutas desrendando-se do mar alçante, do fundo de uma grande verdade; tremulamente de um azul oblíquo ao longe, esverdeando na chegada com transparências de outros tons verde-sujos, e, depois de quebrar, chiando, os mil braços desfeitos, e os desalongar em areia amorenada e espuma desbabada, congregando em si todas as ressacas, os regressos à liberdade da origem, as saudades divinas, as memórias, como esta que informemente me não doía, de um estado anterior, ou feliz por bom ou por outro, um corpo de saudade com alma de espuma, o repouso, a morte, o tudo ou nada que cerca como um grande mar a ilha de náufragos que é a vida.

E eu dormia sem sono, desviado já do que via a sentir, crepúsculo de mim mesmo, som de água entre árvores, calma dos grandes rios, frescura das tardes tristes, lento arfar do peito branco do sono da infância da contemplação.

Atrás dos primeiros menos-calores do estio findo vieram, nos acasos das tardes, certos coloridos mais brandos do céu amplo, certos retoques de brisa fria que anunciavam o outono. Não era ainda o desverde da folhagem, ou o desprenderem-se das folhas, nem aquela vaga angústia que acompanha a nossa sensação da morte externa, porque o há de ser também a nossa. Era como um cansaço do esforço existente, umvago sono sobrevindo aos últimos gestos de agir. Ah, são tardes de uma tão magoada indiferença, que, antes que comece nas coisas, começa em nós o outono.

Cada outono que vem é mais perto do último outono que teremos, e o mesmo é verdade do verão ou do estio; mas o outono lembra, por o que é, o acabamento de tudo, e no verão ou no estio é fácil, de olhar, que o esqueçamos. Não é ainda o outono, não está ainda no ar o amarelo das folhas caídas ou a tristeza úmida do tempo que vai ser inverno mais tarde. Mas há um resquício de tristeza antecipada, uma mágoa vestida para a viagem, no sentimento em que somos vagamente atentos à difusão colorida das coisas, ao outro tom do vento, ao sossego mais velho que se alastra, se a noite cai, pela presença inevitável do universo.

Sim, passaremos todos, passaremos tudo. Nada ficará do que usou sentimentos e luvas, do que falou da morte e da política local. Como é a mesma luz que ilumina as faces dos santos e as polainas dos transeuntes, assim será a mesma falta de luz que deixará no escuro o nada que ficar de uns terem sido santos e outros usadores de polainas.

No vasto redemoinho, como o das folhas secas, em que jaz indolentemente o mundo inteiro, tanto faz os remos como os vestidos das costureiras, e as tranças das crianças louras vão no mesmo giro mortal que os cetros que figuraram impérios. Tudo é nada, e no átrio do Invisível, cuja porta aberta mostra apenas, defronte, uma porta fechada, bailam, servas desse vento que as remexe sem mãos, todas as coisas, pequenas e grandes, que formaram, para nós e em nós, o sistema sentido do universo. Tudo é sombra e pó mexido, nem há voz senão a do som que faz o que vento ergue e arrasta, nem silêncio senão do que o vento deixa. Uns, folhas leves, menos presas de terra por mais leves, vão altas do rodopio do Átrio e caem mais longe que o círculo dos pesados. Outros, invisíveis quase, pó igual, diferente só se o víssemos de perto, faz cama a si mesmo no redemoinho. Outros ainda, miniaturas de troncos, são arrastados à roda e cessam aqui e ali. Um dia, no fim do conhecimento das coisas, abrir-se-á a porta do fundo e tudo o que fomos - lixo de estrelas e de almas - será varrido para fora da casa, para que o que há recomece.

Meucoração dói-me como um corpo estranho. Meu cérebro dorme tudo quanto sinto. Sim, é o princípio do outono que traz ao ar e à minha alma aquela luz sem sorriso que vai orlando de amarelo morto o arredondamento confuso das poucas nuvens do poente. Sim, é o princípio do outono, e o conhecimento claro, na hora límpida, da insuficiência anônima de tudo. O outono, sim, o outono, o que há ou o que vai haver, e o cansaço antecipado de todos os gestos, a desilusão antecipada de todos os sonhos. Que posso eu esperar e de quê? Já, no que penso de mim, vou entre as folhas e os pós do átrio, na órbita sem sentido de coisa nenhuma, fazendo som de vida nas lajes limpas que um sol angular doura de fim não sei onde.

Tudo quanto pensei, tudo quanto sonhei, tudo quanto fiz ou não fiz - tudo isso irá no outono, como os fósforos gastos que juncam o chão em diversos sentidos, ou os papéis amarrotados em bolas falsas, ou os grandes impérios, as religiões todas, as filosofias com que brincaram, fazendo-as, as crianças sonolentas do abismo. Tudo quanto foi minha alma, desde tudo a que aspirei à casa vulgar em que moro, desde os deuses que tive ao patrão Vasques que também tive, tudo vai no outono, tudo no outono, na ternura indiferente do outono. Tudo no outono, sim, tudo no outono...

Nuvens... Hoje tenho consciência do céu, pois há dias em que o não

olho mas sinto, vivendo na cidade e não na natureza que a inclui. Nuvens... São elas hoje a principal realidade, e preocupam-me como se o velar do céu fosse um dos grandes perigos do meu destino. Nuvens... Passam da barra para o Castelo, de ocidente para oriente, num tumulto disperso e despido, branco às vezes, se vão esfarrapadas na vanguarda de não sei quê; meio-negro outras, se, mais lentas, tardam em ser varridas pelo vento audível; negras de um branco sujo, se, como se quisessem ficar, enegrecem mais da vinda que da sombra o que as ruas abrem de falso espaço entre as linhas fechadoras da casaria.

Nuvens... Existo sem que o saiba e morrerei sem que o queira. Sou o intervalo entre o que sou e o que não sou, entre o que sonho e o que a vida fez de mim, a média abstrata e carnal entre coisas que não são nada, sendo eu nada também. Nuvens... Que desassossego se sinto, que desconforto se penso, que inutilidade se quero! Nuvens... Estão passando sempre, umas muito grandes,parecendo, porque as casas não deixam ver se são menos grandes que parecem, que vão a tomar todo o céu; outras de tamanho incerto, podendo ser duas juntas ou uma que se vai partir em duas, sem sentido no ar alto contra o céu fatigado; outras ainda, pequenas, parecendo brinquedos de poderosas coisas, bolas irregulares de um jogo absurdo, só para um lado, num grande isolamento, frias.

Nuvens... Interrogo-me e desconheço-me. Nada tenho feito de útil nem farei de justificável. Tenho gasto a parte da vida que não perdi em interpretar confusamente coisa nenhuma, fazendo versos em prosa às sensações intransmissíveis com que torno meu o universo incógnito. Estou farto de mim, objetiva e subjetivamente. Estou farto de tudo, e do tudo de tudo. Nuvens... São tudo, desmanchamentos do alto, coisas hoje só elas reais entre a terra nula e o céu que não existe; farrapos indescritíveis do tédio que lhes imponho; névoa condensada em ameaças de cor ausente; algodões de rama sujos de um hospital sem paredes. Nuvens... São como eu, uma passagem desfeita entre o céu e a terra, ao sabor de um impulso invisível, trovejando ou não trovejando, alegrando brancas ou escurecendo negras, ficções do intervalo e do descaminho, longe do ruído da terra e sem ter o silêncio do céu. Nuvens... Continuam passando, continuam sempre passando, passarão sempre continuando, num enrolamento descontínuo de meadas baças, num alongamento difuso de falso céu desfeito.

Quantas coisas, que temos por certas ou justas, não são mais que os

vestígios dos nossos sonhos, o sonambulismo da nossa incompreensão! Sabe acaso alguém o que é certo ou justo? Quantas coisas, que temos por belas, não são mais que o uso da época, a ficção do lugar e da hora? Quantas coisas, que temos por nossas, não são mais que aquilo de que somos perfeitos espelhos, ou invólucros transparentes, alheios no sangue à raça da sua natureza!

Quanto mais medito na capacidade, que temos, de nos enganar mais se me esvai entre os dedos lassos a areia fina das certezas desfeitas. E todo o mundo me surge, em momentos em que a meditação se me torna um sentimento, e com isso a mente se me obnubila, como uma névoa feita de sombra, um crepúsculo dos ângulos e das arestas, uma ficção do interlúdio, uma demora da antemanhã. Tudo se me transforma em um absoluto morto de ele mesmo, numa estagnação de pormenores. E os mesmos sentidos, com que transfiro a meditação para esquecê-la, são uma espécie de sono, qualquer coisa de remoto e de sequaz, interstício, diferença, acaso dassombras e da confusão.

Nesses momentos, em que compreenderia os ascetas e os retirados, se houvesse em mim poder de compreender os que se empenham em qualquer esforço com fins absolutos, ou em qualquer crença capaz de produzir um esforço, eu criaria, se pudesse, toda uma estética da desconsolação, uma rítmica íntima de balada de berço, coada pelas ternuras da noite em grandes afastamentos de outros lares.

Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se haviam zangado um com o outro. Cada um me contou a narrativa de porque se haviam zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as suas razões. Ambos tinham razão. Ambos tinham toda a razão. Não era que um via uma coisa e o outro outra, ou que um via um lado das coisas e outro um lado diferente. Não: cada um via as coisas exatamente como se haviam passado, cada um as via com um critério idêntico ao do outro, mas cada um via uma coisa diferente, e cada um, portanto, tinha razão.

Fiquei confuso desta dupla existência da verdade.

Tudo se me evapora. A minha vida inteira, as minhas recordações, a minha imaginação e o que contém, a minha personalidade, tudo se me evapora. Continuamente sinto que fui outro, que senti outro, que pensei outro. Aquilo a que assisto é um espetáculo com outro cenário. E aquilo a que assisto sou eu.

Encontro às vezes, na confusão vulgar das minhas gavetas literárias,

papéis escritos por mim há dez anos, há quinze anos, há mais anos talvez. E muitos deles me parecem de um estranho; desreconheço-me neles. Houve quem os escrevesse, e fui eu. Senti-os eu, mas foi como em outra vida, de que houvesse agora despertado como de um sono alheio.

É frequente eu encontrar coisas escritas por mim quando ainda muito jovem - trechos dos dezessete anos, trechos dos vinte anos. E alguns têm um poder de expressão que me não lembro de poder ter tido nessa altura da vida. Há em certas frases, em vários períodos, de coisas escritas a poucos passos da minha adolescência, que me parecem produto de tal qual sou agora, educado por anos e por coisas. Reconheço que sou o mesmo que era. E, tendo sentido que estou hoje num progresso grande do que fui, pergunto onde está o progresso se então era o mesmo que hoje sou.

Há nisto um mistério que me desvirtua e me oprime.

Ainda há dias sofri uma impressão espantosa com um breve escrito do meu passado. Lembro-me perfeitamente de que o meu escrúpulo, pelo menos relativo, pela linguagem data de há poucos anos. Encontrei numa gavetaum escrito meu, muito mais antigo, em que esse mesmo escrúpulo estava fortemente acentuado. Não me compreendi no passado positivamente. Como avancei para o que já era? Como me conheci hoje o que me desconheci ontem? E tudo se me confunde num labirinto onde, comigo, me extravio de mim.

Devaneio com o pensamento, e estou certo que isto que escrevo já o escrevi. Recordo. E pergunto ao que em mim presume de ser se não haverá no platonismo das sensações outra anamnese mais inclinada, outra recordação de uma vida anterior que seja apenas desta vida...

Meu Deus, meu Deus, a quem assisto? Quantos sou? Quem é eu? O que é este intervalo que há entre mim e mim?

Quem quisesse fazer um catálogo de monstros, não teria mais que fotografar em palavras aquelas coisas que a noite traz às almas sonolentas que não conseguem dormir. Essas coisas têm toda a incoerência do sonho sem a desculpa incógnita de se estar dormindo. Pairam como morcegos sobre a passividade da alma, ou vampiros que suguem o sangue da submissão.

São larvas do declive e do desperdício, sombras que enchem o vale, vestígios que ficam do destino. Umas vezes são vermes, nauseantes à

própria alma que os afaga e cria; outras vezes são espectros, e rondam sinistramente coisa nenhuma; outras vezes, ainda, emergem cobras dos recôncavos absurdos das emoções perdidas.

Lastro do falso, não servem senão para que não sirvamos. São dúvidas do abismo, deitadas na alma, arrastando dobras sonolentas e frias. Duram fumos, passam rastros, e não há mais que o haverem sido na substância estéril de ter tido consciência deles. Um ou outro é como uma peça íntima de fogo de artifício: faísca-se um tempo entre sonhos, e o resto é a inconsciência da consciência com que o vimos.

Nastro desatado, a alma não existe em si mesma. As grandes paisagens são para amanhã, e nós já vivemos. Falhou a conversa interrompida. Quem diria que a vida havia de ser assim?

Perco-me se me encontro, duvido se acho, não tenho se obtive. Como se passeasse, durmo, mas estou desperto. Como se dormisse, acordo, e não me pertenço. A vida, afinal, é, em si mesma, uma grande insônia, e há um estremunhamento lúcido em tudo quanto pensamos e fazemos.

Seria feliz se pudesse dormir. Esta opinião é deste momento, porque não durmo. A noite é um peso imenso por detrás do afogar-me com o cobertor mudo do que sonho. Tenho uma indigestão na alma.

Sempre, depois de depois, virá o dia, mas será tarde, como sempre. Tudo dorme eé feliz, menos eu. Descanso um pouco, sem que ouse que durma. E grandes cabeças de monstros sem ser emergem confusas do fundo de quem sou. São dragões do Oriente do abismo, com línguas encarnadas de fora da lógica, com olhos que fitam sem vida a minha vida morta que os não fita.

A tampa, por amor de Deus, a tampa! Concluam-me a inconsciência e vida! Felizmente, pela janela fria, de portas desdobradas para trás, um fio triste de luz pálida começa a tirar a sombra do horizonte. Felizmente, o que vai raiar é o dia. Sossego, quase, do cansaço do desassossego. Um galo canta, absurdo, em plena cidade. O dia lívido começa no meu vago sono. Alguma vez dormirei. Um ruído de rodas faz carroça. Minhas pálpebras dormem, mas não eu. Tudo, enfim, é o Destino.

Mais que uma vez, ao passear lentamente pelas ruas da tarde, me tem batido na alma, com uma violência súbita e estonteante, a estranhíssima presença da organização das coisas. Não são bem as coisas naturais que tanto me afetam, que tão poderosamente me trazem esta sensação: são antes os arruamentos, os letreiros, as

pessoas vestidas e falando, os empregos, os jornais, a inteligência de tudo. Ou, antes, é o fato de que existem arruamentos, letreiros, empregos, homens, sociedade, tudo a entender-se e a seguir e a abrir caminhos.

Reparo no homem diretamente, e vejo que é tão inconsciente como um cão ou um gato; fala por uma inconsciência de outra ordem; organiza-se em sociedade por uma inconsciência de outra ordem, absolutamente inferior à que empregam as formigas e as abelhas na sua vida social. E então, tanto ou mais que da existência de organismos, tanto ou mais que da existência de leis físicas rígidas e intelectuais, se me revela por uma luz evidente a inteligência que cria e impregna o mundo.

Bate-me então, sempre que assim sinto, a velha frase de não sei que escolástico: Deus est anima brutorum, Deus é a alma dos brutos. Assim entendeu o autor a frase, que é maravilhosa, explicar a certeza com que o instinto guia os animais inferiores, em que se não divisa inteligência, ou mais que um esboço dela. Mas todos somos animais inferiores - falar e pensar são apenas novos instintos, menos seguros que os outros porque novos. E a frase do escolástico, tão justa em sua beleza, alarga-se, e digo, Deus é a alma de tudo.

Nunca compreendi que quem uma vez considerou este grande fato da relojoaria universal pudesse negar o relojoeiro em que o mesmo Voltaire não descreu. Compreendo que, atendendo a certos fatos aparentemente desviadosde um plano(e era preciso saber o plano para saber se são desviados), se atribua a essa inteligência suprema algum elemento de imperfeição. Isso compreendo, se bem que o não aceite. Compreendo ainda que, atendendo ao mal que há no mundo, se não possa aceitar a bondade infinita dessa inteligência criadora. Isso compreendo, se bem que o não aceite também. Mas que se negue a existência dessa inteligência, ou seja, de Deus, é coisa que me parece uma daquelas estupidezes que tantas vezes afligem, num ponto da inteligência, homens que, em todos os outros pontos dela, podem ser superiores; como os que erram sempre as somas, ou, ainda, e pondo já no jogo a inteligência da sensibilidade, os que não sentem a música, ou a pintura, ou a poesia.

Não aceito, disse, nem o critério do relojoeiro imperfeito nem o do relojoeiro sem benevolência. Não aceito o critério do relojoeiro imperfeito porque aqueles pormenores do governo e ajustamento do

mundo, que nos parecem lapsos ou sem-razões, não podem, como tal, ser verdadeiramente dados sem que saibamos o plano. Vemos claramente um plano em tudo; vemos certas coisas que nos parecem sem razão, mas é de ponderar que, se há em tudo uma razão, haverá nisso também a mesma razão que há em tudo. Vemos a razão, porém não o plano; como diremos, então, que certas coisas estão fora do plano que não sabemos o que é? Assim como um poeta de ritmos subtis pode intercalar um verso arrítmico para fins rítmicos, isto é, para o próprio fim de que parece afastar-se, e um crítico mais purista do retilíneo que do ritmo chamará errado esse verso, assim o Criador pode intercalar o que nossa estreita considera arritmias no decurso majestoso do seu ritmo metafísico.

Nem aceito, disse, o critério do relojoeiro sem benevolência. Concordo que é um argumento de mais difícil resposta, mas é-o só aparentemente. Podemos dizer que não sabemos bem o que é o mal, não podendo por isso afirmar se uma coisa é má ou boa. O certo, porém, é que uma dor, ainda que para nosso bem, é em si mesma um mal, e basta isso para que haja mal no mundo. Basta uma dor de dentes para fazer descrer na bondade do Criador. Ora o erro essencial deste argumento parece residir no nosso completo desconhecimento do plano de Deus, e nosso igual desconhecimento do que possa ser, como pessoa inteligente, o Infinito Intelectual. Uma coisa é a existência do mal, outra a razão dessa existência. A distinção é talvez subtil ao ponto de parecer sofística, mas o certo é que é justaA existência do mal não pode ser negada, mas a maldade da existência do mal pode não ser aceite. Confesso que o problema subsiste, mas subsiste porque subsiste a nossa imperfeição.

Tive sempre uma repugnância quase física pelas coisas secretas - intrigas, diplomacia, sociedades secretas, ocultismo. Sobretudo me incomodaram sempre estas duas últimas coisas - a pretensão, que têm certos homens, de que, por entendimentos com Deuses ou Mestres ou Demiurgos, sabem - lá entre eles, exclusos todos nós outros - os grandes segredos que são os caboucos do mundo.

Não posso crer que isso seja assim. Posso crer que alguém o julgue assim. Por que não estará essa gente toda doida, ou iludida? Por serem vários? Mas há alucinações coletivas.

O que sobretudo me impressiona, nesses mestres e sabedores do invisível, é que, quando escrevem para nos contar ou sugerir os seus

mistérios, escrevem todos mal. Ofende-me o entendimento que um homem seja capaz de dominar o Diabo e não seja capaz de dominar a língua portuguesa. Por que há o comércio com os demônios ser mais fácil que o comércio com a gramática? Quem, através de longos exercícios de atenção e de vontade, consegue, conforme diz, ter visões astrais, por que não pode, com menor dispêndio de uma coisa e de outra, ter a visão da sintaxe? Que há no dogma e ritual da Alta Magia que impeça alguém de escrever, já não digo com clareza, pois pode ser que a obscuridade seja da lei oculta, mas ao menos com elegância e fluidez, pois no próprio abstruso as pode haver? Por que há de gastar-se toda a energia da alma no estudo da linguagem dos Deuses, e não há de sobrar um reles bocado com que se estude a cor e o ritmo da linguagem dos homens?

Desconfio dos mestres que o não podem ser primários. São para mim como aqueles poetas estranhos que são incapazes de escrever como os outros. Aceito que sejam estranhos; gostara, porém, que me provassem que o são por superioridade ao normal e não por impotência dele.

Dizem que há grandes matemáticos que erram adições simples; mas aqui a comparação não é com errar, mas com desconhecer. Aceito que um grande matemático some dois e dois para dar cinco: é um ato de distração, e a todos nós pode suceder. O que não aceito é que não saiba o que é somar, ou como se soma. E é este o caso dos mestres do oculto, na sua formidável maioria.

Estou quase convencido de que nunca estou desperto. Não seise não sonho quando vivo, se não vivo quando sonho, ou se o sonho e a vida não são em mim coisas mistas, interseccionadas, de que meu ser consciente se forme por interpenetração.

Às vezes, em plena vida ativa, em que, evidentemente, estou tão claro de mim como todos os outros, vem até à minha suposição uma sensação estranha de dúvida; não sei se existo, sinto possível o ser um sonho de outrem, afigura-se-me, quase carnalmente, que poderei ser personagem de uma novela, movendo-me, nas ondas longas de um estilo, na verdade feita de uma grande narrativa.

Tenho reparado, muitas vezes, que certas personagens de romance tomam para nós um relevo que nunca poderiam alcançar os que são nossos conhecidos e amigos, os que falam conosco e nos ouvem na vida visível e real. E isto faz com que sonhe a pergunta se não será tudo neste total de mundo uma série entreinserta de sonhos e romances,

como caixinhas dentro de caixinhas maiores - umas dentro de outras e estas em mais -, sendo tudo uma história com histórias, como as Mil e Uma Noites, decorrendo falsa na noite eterna.

Se penso, tudo me parece absurdo; se sinto, tudo me parece estranho; se quero, o que quer é qualquer coisa em mim. Sempre que em mim há ação, reconheço que não fui eu. Se sonho, parece que me escrevem. Se sinto, parece que me pintam. Se quero, parece que me põem num veículo, como a mercadoria que se envia, e que sigo com um movimento que julgo próprio para onde não quis que fosse senão depois de lá estar.

Que confusão é tudo! Como ver é melhor que pensar, e ler melhor que escrever! O que vejo, pode ser que me engane, porém não o julgo meu. O que leio, pode ser que me pese, mas não me perturba o tê-lo escrito. Como tudo dói se o pensamos como conscientes de pensar, como seres espirituais em quem se deu aquele segundo desdobramento da consciência pelo qual sabemos que sabemos! Embora o dia esteja lindíssimo, não posso deixar de pensar assim... Pensar ou sentir, ou que coisa terceira entre os cenários postos de parte? Tédios do crepúsculo e do desalinho, leques fechados, cansaço de ter tido que viver...

Cada vez que viajo, viajo imenso. O cansaço que trago comigo de uma viagem de comboio até Cascais é como se fosse o de ter, nesse pouco tempo, percorrido as paisagens de campo e cidade de quatro ou cinco países.

Cadacasa por que passo, cada chalé, cada casita isolada caiada de branco e de silêncio - em cada uma delas num momento me concebo vivendo, primeiro feliz, depois tediento, cansado depois; e sinto que tendo-a abandonado, trago comigo uma saudade enorme do tempo em que lá vivi. De modo que todas as minhas viagens são uma colheita dolorosa e feliz de grandes alegrias, de tédios enormes, de inúmeras falsas saudades.

Depois, ao passar diante de casas, de vilas, de chalés, vou vivendo em mim todas as vidas das criaturas que ali estão. Vivo todas aquelas vidas domésticas ao mesmo tempo. Sou o pai, a mãe, os filhos, os primos, a criada e o primo da criada, ao mesmo tempo e tudo junto, pela arte especial que tenho de sentir ao mesmo várias sensações diversas, de viver ao mesmo tempo - e ao mesmo tempo por fora, vendo-as, e por dentro sentindo-as - as vidas de várias criaturas.

Criei em mim várias personalidades. Crio personalidades constantemente. Cada sonho meu é imediatamente, logo ao aparecer

sonhado, encarnado numa outra pessoa, que passa a sonhá-lo, e eu não.

Para criar, destruí-me; tanto me exteriorizei dentro de mim, que dentro de mim não existo senão exteriormente. Sou a cena viva onde passam vários atores representando várias peças.

Uma das minhas preocupações constantes é o compreender como é que outra gente existe, como é que há almas que não sejam a minha, consciências estranhas à minha consciência que, por ser consciência, me parece ser a única. Compreendo bem que o homem que está diante de mim, e me fala com palavras iguais às minhas, e me faz gestos que são como eu faço ou poderia fazer, seja de algum modo meu semelhante. O mesmo, porém, me sucede com as gravuras que sonho das ilustrações, com as personagens que vejo dos romances, com as pessoas dramáticas que no palco passam' através dos atores que as figuram.

Ninguém, suponho, admite verdadeiramente a existência real de outra pessoa. Pode conceder que essa pessoa seja viva, que sinta e pense como ele; mas haverá sempre um elemento anônimo de diferença, uma desvantagem materializada. Há figuras de tempos idos, imagens espíritos em livros, que são para nós realidades maiores que aquelas indiferenças encarnadas que falam conosco por cima dos balcões, ou nos olham por acaso nos elétricos, ou nos roçam, transeuntes, no acaso morto das ruas. Os outros não são para nós mais que paisagem, e,quase sempre, paisagem invisível de rua conhecida.

Tenho por mais minhas, com maior parentesco e intimidade, certas figuras que estão escritas em livros, certas imagens que conheci de estampas, do que muitas pessoas, a que chamam reais, que são dessa inutilidade metafísica chamada carne e osso. E "carne e osso", de fato, as descreve bem: parecem coisas cortadas postas no exterior marmóreo de um talho, mortes sangrando como vidas, pernas e costeletas do Destino.

Não me envergonho de sentir assim porque já vi que todos sentem assim. O que parece haver de desprezo entre homem e homem, de indiferente que permite que se mate gente sem que se sinta que se mata, como entre os assassinos, ou sem que se pense que se está matando, como entre os soldados, é que ninguém presta a devida atenção ao fato, parece que abstruso, de que os outros são almas também.

Em certos dias, em certas horas, trazidas até mim por não sei que brisa, abertas a mim por o abrir de não sei que porta, sinto de repente que o merceeiro da esquina é um ente espiritual, que o marçano, que neste momento se debruça à porta sobre o saco de batatas, é, verdadeiramente, uma alma capaz de sofrer.

Quando ontem me disseram que o empregado da tabacaria se tinha suicidado, tive uma impressão de mentira. Coitado, também existia! Tínhamos esquecido isso, nós todos, nós todos que o conhecíamos do mesmo modo que todos que o não conheceram. Amanhã esquecê-lo-emos melhor. Mas que havia alma, havia, para que se matasse. Paixões? Angústias? Sem dúvida... Mas a mim, como à humanidade inteira, há só a memória de um sorriso parvo por cima de um casaco de mescla, sujo, e desigual nos ombros. É quanto me resta, a mim, de quem tanto sentiu que se matou de sentir, porque, enfim, de outra coisa se não deve matar alguém... Pensei uma vez, ao comprar-lhe cigarros, que encalveceria cedo. Afinal não teve tempo para encalvecer. E uma das memórias que me restam dele. Que outra me haveria de restar se esta, afinal, não é dele mas de um pensamento meu?

Tenho subitamente a visão do cadáver, do caixão em que o meteram, da cova, inteiramente alheia, a que o haviam de ter levado. E vejo, de repente, que o caixeiro da tabacaria era, em certo modo, casaco torto e tudo, a humanidade inteira.

Foi só um momento. Hoje, agora, claramente, como homemque sou, ele morreu. Mais nada.

Sim, os outros não existem... É para mim que este poente estagna, pesadamente alado, as suas cores nevoentas e duras. Para mim, sob o poente, treme, sem que eu veja que corre, o grande rio. Foi feito para mim este largo aberto sobre o rio cuja maré chega. Foi enterrado hoje na vala comum o caixeiro da tabacaria? Não é para ele o poente de hoje. Mas, de o pensar, e sem que eu queira, também deixou de ser para mim...

Saber não ter ilusões é absolutamente necessário para se poder ter sonhos.

Atingirás assim o ponto supremo da abstenção sonhadora, onde os senti-los se mesclam, os sentimentos se extravasam, as ideias se interpenetram. Assim como as cores e os sons sabem uns a outros, os ódios sabem a amores, e as coisas concretas a abstratas, e as abstratas a concretas. Quebram-se os laços que, ao mesmo tempo que ligavam

tudo, separavam tudo, isolando cada elemento. Tudo se funde e confunde.

Nunca durmo: vivo e sonho, ou antes, sonho em vida e a dormir, que também é vida. Não há interrupção em minha consciência: sinto o que me cerca se não durmo ainda, ou se não durmo bem; entro logo a sonhar desde que deveras durmo. Assim, o que sou é um perpétuo desenrolamento de imagens, conexas ou desconexas, fingindo sempre de exteriores, umas postas entre os homens e a luz, se estou desperto, outras postas entre os fantasmas e a sem-luz que se vê, se estou dormindo. Verdadeiramente, não sei como distinguir uma coisa da outra, nem ouso afirmar se não durmo quando estou desperto, se não estou a despertar quando durmo.

A vida é um novelo que alguém emaranhou. Há um sentido nela, se estiver desenrolada e posta ao comprido, ou enrolada bem. Mas, tal como está, é um problema sem novelo próprio, um embrulhar-se sem onde.

Sinto isto, que depois escreverei, pois que vou já sonhando as frases a dizer, quando, através da noite de meio-dormir, sinto, junto com as paisagens de sonhos vagos, o ruído da chuva lá fora, a tornarmos mais vagos ainda. São adivinhas do vácuo, trêmulas de abismo, e através delas se escoa, inútil, a plangência externa da chuva constante, minúcia abundante da paisagem do ouvido. Esperança? Nada. Do céu invisível desce em som a mágoa água que vento alça. Continuo dormindo.

Era, sem dúvida, nas alamedas do parque que se passou a tragédia de que resultoua vida. Eram dois e belos e desejavam ser outra coisa; o amor tardava-lhes no tédio do futuro, e a saudade do que haveria de ser vinha já sendo filha do amor que não tinham tido. Assim, ao luar dos bosques próximos, pois através deles se coava a lua, passeavam, mãos dadas, sem desejos nem esperanças, através do deserto próprio das áleas abandonadas. Eram crianças inteiramente, pois que o não eram em verdade. De álea em álea, silhuetas entre árvore e árvore, percorriam em papel recortado aquele cenário de ninguém. E assim se sumiram para o lado dos tanques, cada vez mais juntos e separados, e o ruído da vaga chuva que cessa é o dos repuxos de para onde iam. Sou o amor que eles tiveram e por isso os sei ouvir na noite em que não durmo, e também sei viver infeliz.

Nada pesa tanto como o afeto alheio - nem o ódio alheio, pois que o ódio é mais intermitente que o afeto; sendo uma emoção desagradável,

tende, por instinto de quem a tem, a ser menos frequente. Mas tanto o ódio como o amor nos oprime; ambos nos buscam e procuram, nos não deixam sós.

O meu ideal seria viver tudo em romance, repousando na vida ler as minhas emoções, viver o meu desprezo delas. Para quem tenha a imaginação à flor da pele, as aventuras de um protagonista de romance são emoção própria bastante, e mais, pois que são dele e nossas. Não há grande aventura como ter amado Lady Macbeth, com amor verdadeiro e direto; que tem que fazer que assim amou senão, por descanso, não amar nesta vida ninguém?

Não sei que sentido tem esta viagem que fui forçado a fazer, entre uma noite e outra noite, na companhia do universo inteiro. Sei que posso ler para me distrair. Considero a leitura como o modo mais simples de entreter esta, como outra, viagem; e, de vez em quando, ergo os olhos do livro onde estou sentindo verdadeiramente, e vejo, como estrangeiro, a paisagem que foge - campos, cidades, homens e mulheres, afeições e saudades -, e tudo isso não é mais para mim do que um episódio do meu repouso, uma distração inerte em que descanso os olhos das páginas demasiado lidas.

Só o que sonhamos é o que verdadeiramente somos, porque o mais, por estar realizado, pertence ao mundo e a toda a gente. Se realizasse algum sonho, teria ciúmes dele, pois me haveria traídocom o ter-se deixado realizar. Realizei tudo quanto quis, diz o débil, e é mentira; a verdade é que sonhou profeticamente tudo quanto a vida realizou dele. Nada realizamos. A vida atira-nos como uma pedra, e nós vamos dizendo no ar, "Aqui me vou mexendo".

Seja o que for este interlúdio mimado sob o projetor do sol e as lantejoulas das estrelas, não faz mal decerto saber que ele é um interlúdio; se o que está para além das portas do teatro é a vida, viveremos; se é a morte, morreremos, e a peça nada tem com isso.

Por isso nunca me sinto tão próximo da verdade, tão sensivelmente iniciado, como quando nas raras vezes que vou ao teatro ou ao circo: sei então que enfim estou assistindo à perfeita figuração da vida. E os atores e as atrizes, os palhaços e os prestidigitadores são coisas importantes e fúteis, como o sol e a lua, o amor e a morte, a peste, a fome, a guerra na humanidade. Tudo é teatro. Ah, quero a verdade? Vou continuar o romance...

Não sei o que é o tempo. Não sei qual a verdadeira medida que ele

tem, se tem alguma. A do relógio sei que é falsa: divide o tempo espacialmente, por fora. A das emoções sei também que é falsa: divide, não o tempo, mas a sensação dele. A dos sonhos é errada; neles roçamos o tempo, uma vez prolongada- mente, outra vez depressa, e o que vivemos é apressado ou lento conforme qualquer coisa do decorrer cuja natureza ignoro.

Julgo, às vezes, que tudo é falso, e que o tempo não é mais do que uma moldura para enquadrar o que lhe é estranho. Na recordação, que tenho da minha vida passada, os tempos estão dispostos em níveis e planos absurdos, sendo eu mais jovem em certo episódio dos quinze anos solenes que em outro da infância sentada entre brinquedos.

Emaranha-se-me a consciência se penso nestas coisas. Pressinto um erro em tudo isto; não sei, porém, de que lado está. É como se assistisse a uma sorte de prestidigitação, onde, por ser tal, me soubesse enganado, porém não concebesse qual a técnica, ou a mecânica, do engano.

Chegam-me, então, pensamentos absurdos, que não consigo todavia repelir como absurdos de todo. Penso se um homem que medita devagar dentro de um carro que segue depressa está indodepressa ou devagar. Penso se serão iguais as velocidades idênticas com que caem no mar o suicida e o que se desequilibrou na esplanada. Penso se são realmente sincrônicos os movimentos, que ocupam o mesmo tempo, em os quais fumo um cigarro, escrevo este trecho e penso obscuramente.

De duas rodas no mesmo eixo podemos pensar que há sempre uma que estará mais adiante, ainda que seja frações de milímetro. Um microscópio exageraria este deslocamento até o tornar quase inacreditável, impossível se não fosse real. E por que não há o microscópio de ter razão contra a má vista? São considerações inúteis? Bem o sei. São ilusões da consideração? Concedo. Que coisa, porém, é esta que nos mede sem medida e nos mata sem ser? E é nestes momentos, em que nem sei se o tempo existe, que o sinto como uma pessoa, e tenho vontade de dormir.

A vida é a hesitação entre uma exclamação e uma interrogação. Na dúvida, há um ponto final.

Desde que, conforme posso, medito e observo, tenho reparado que em nada os homens sabem a verdade, ou estão de acordo, que seja realmente supremo na vida ou útil ao vivê-la. A ciência mais exata é a matemática, que vive na clausura das suas próprias regras e leis; serve,

sim, de, por aplicação, elucidar outras ciências, mas elucida o que estas descobrem, não as ajuda a descobrir. Nas outras ciências não é certo e aceite senão o que nada pesa para os fins supremos da vida. A física sabe bem qual é o coeficiente da dilatação do ferro; não sabe qual é a verdadeira mecânica da constituição do mundo. E quanto mais subimos no que desejaríamos saber, mais descemos no que sabemos. A metafísica, que seria o guia supremo porque é ela e só ela que se dirige aos fins supremos da verdade e da vida - essa nem é teoria científica, senão somente um monte de tijolos formando, nestas mãos ou naquelas, casas de nenhum feitio que nenhuma argamassa liga.

Reparo, também, que entre a vida dos homens e a dos animais não há outra diferença que não a da maneira como se enganam ou a ignoram. Não sabem os animais o que fazem: nascem, crescem, vivem, morrem sem pensamento, reflexo ou verdadeiramente futuro. Quantos homens, porém, vivem de modo diferente do dos animais? Dormimos todos, e a diferença está só nos sonhos, e no grau e qualidade de sonhar. Talvez a morte nosdesperte, mas a isso também não há resposta senão a da fé, para quem crer é ter, a da esperança, para quem desejar é possuir, a da caridade, para quem dar é receber.

Chove, nesta tarde fria de inverno triste, como se houvesse chovido, assim monotonamente, desde a primeira página do mundo. Chove, e meus sentimentos, como se a chuva os vergasse, dobram seu olhar bruto para a terra da cidade, onde corre uma água que nada alimenta, que nada lava, que nada alegra. Chove, e eu sinto subitamente a opressão imensa de ser um animal que não sabe o que é, sonhando o pensamento e a emoção, encolhido, como num tugúrio, numa região espacial do ser, contente de um pequeno calor como de uma verdade eterna.

Passei entre eles estrangeiro porém nenhum viu que eu o era. Vivi entre eles espião, e ninguém, nem eu, suspeitou que eu o fosse. Todos me tinham por parente: nenhum sabia que me haviam trocado à nascença. Assim fui igual aos outros sem semelhança, irmão de todos sem ser da família.

Vinha de prodigiosas terras, de paisagens melhores que a vida, mas das terras nunca falei, senão comigo, e das paisagens, vistas se sonhava, nunca lhes dei notícia. Meus passos eram como os deles nos soalhos e nas lajes, mas o meu coração estava longe, ainda que batesse perto, senhor falso de um corpo desterrado e estranho.

Ninguém me conheceu sob a máscara da igualha, nem soube nunca que era máscara, porque ninguém sabia que neste mundo há mascarados. Ninguém supôs que ao pé de mim estivesse sempre outro, que afinal era eu. Julgaram-me sempre idêntico a mim.

Abrigaram-me as suas casas, as suas mãos apertaram a minha, viram-me passar na rua como se eu lá estivesse; mas quem sou não esteve nunca naquelas salas, quem vivo não tem mãos que outros apertem, quem me conheço não tem ruas por onde passe, a não ser que sejam todas as ruas, nem que nelas o veja, a não ser que ele mesmo seja todos os outros.

Vivemos todos longínquos e anônimos; disfarçados, sofremos desconhecidos. A uns, porém, esta distância entre um ser e ele mesmo nunca se revela; para outros é de vez em quando iluminada, de horror ou de mágoa, por um relâmpago sem limites; mas para outros ainda é essa a dolorosa constância e quotidianidade da vida.

Saber bem quem somos não éconosco, que o que pensamos ou sentimos é sempre uma tradução, que o que queremos o não quisemos, nem porventura alguém o quis - saber tudo isto a cada minuto, sentir tudo isto em cada sentimento, não será isto ser estrangeiro na própria alma, exilado nas próprias sensações?

Mas a máscara, que estive fitando inerte, que falava à esquina com um homem sem máscara nesta noite de fim de Carnaval, por fim estendeu a mão e se despediu rindo. O homem natural seguiu à esquerda, pela travessa a cuja esquina estava. A máscara - dominó sem graça - caminhou em frente, afastando-se entre sombras e acasos de luzes, numa despedida definitiva e alheia ao que eu estava pensando. Só então reparei que havia mais na rua que os candeeiros acesos, e, a turvar onde eles não estavam, um lugar vago, oculto, mudo, cheio de nada como a vida...

Viajar? Para viajar basta existir. Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do meu corpo, ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes, como, afinal, as paisagens são.

Se imagino, vejo. Que mais faço eu se viajo? Só a fraqueza extrema da imaginação justifica que se tenha que deslocar para sentir.

"Qualquer estrada, esta mesma estrada de Entepfuhl, te levará até ao fim do mundo". Mas o fim do mundo, desde que o mundo se consumou

dando-lhe a volta, é o mesmo Entepfuhl de onde se partiu. Na realidade, o fim do mundo, como o princípio, é o nosso conceito do mundo. É em nós que as paisagens têm paisagem. Por isso, se as imagino, as crio; se as crio, são; se são, vejo-as como às outras. Para quê viajar? Em Madrid, em Berlim, na Pérsia, na China, nos Pólos ambos, onde estaria eu senão em mim mesmo, e no tipo e gênero das minhas sensações?

A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos.

O homem não deve poder ver a sua própria cara. Isso é o que há de mais terrível. A Natureza deu-lhe o dom de não a poder ver, assim como de não poder fitar os seus próprios olhos.

Só na água dos rios e dos lagos ele podia fitar seu rosto. E a postura, mesmo, que tinha de tomar, era simbólica. Tinha de se curvar, de se baixar para cometera ignomínia de se ver.

O criador do espelho envenenou a alma humana.

Em qualquer espírito, que não seja disforme, existe a crença em Deus. Em qualquer espírito, que não seja disforme, não existe crença em um Deus definido. É qualquer ente, existente e impossível, que rege tudo; cuja pessoa, se a tem, ninguém pode definir; cujos fins, se deles usa, ninguém pode compreender. Chamando-lhe Deus dizemos tudo, porque, não tendo a palavra Deus sentido algum preciso, assim o afirmamos sem dizer nada. Os atributos de infinito, de eterno, de onipotente, de sumamente justo ou bondoso, que por vezes lhe colamos, descolam-se por si como todos os adjetivos desnecessários quando o substantivo basta. E Ele, a que, por indefinido, não podemos dar atributos, é, por isso mesmo, o substantivo absoluto.

A mesma certeza e o mesmo vago existem quanto à sobrevivência da alma. Todos nós sabemos que morremos; todos nós sentimos que não morreremos. Não é bem um desejo, nem uma esperança, que nos traz essa visão no escuro de que a morte é um mal-entendido: é um raciocínio feito com as entranhas, que repudia

Tenho construído em passeio frases perfeitas, de que depois me não lembro em casa. A poesia inefável dessas frases - não sei se será toda do que foram, se parte de não terem nunca sido.

Tenho pensamentos, que se pudesse revelá-los e fazê-los viver, acrescentariam nova luminosidade às estrelas, nova beleza ao mundo e

maior amor ao coração dos homens .

Nota do organizador: o último parágrafo não pertence ao "Livro do Desassossego", porém achei que casaria bem aqui; espero que me perdoem.

Sossego enfim. Tudo quanto foi vestígio e desperdício some-se-me da alma como se não fora nunca. Fico só e calmo. A hora que passo é como aquela em que me convertesse a uma religião. Nada porém me atrai para o alto, ainda que nada já me atraia para baixo. Sinto-me livre, como se deixasse de existir, conservando a consciência disso.

Sossego, sim, sossego. Uma grande calma, suave como uma inutilidade, desce em mim ao fundo do meu ser. As páginas lidas, os deveres cumpridos, os passos e os acasos de viver - tudo isso se me tornou numa vaga penumbra, num halo mal visível, que cerca qualquer coisa tranquila que não sei o que é. O esforço, em que pus, uma ou outra vez, o esquecimento da alma; o pensamento,em que pus, uma vez ou outra, o esquecimento da ação - ambos se me volvem numa espécie de ternura sem sentimento, de compaixão fruste e vazia.

Não é o dia lento e suave, nublado e brando. Não é a aragem imperfeita, quase nada, pouco mais do que o ar que já se sente. Não é a cor anônima do céu aqui e ali azul, frouxamente. Não. Não, porque não sinto. Vejo sem intenção nem remédio. Assisto atento a espetáculo nenhum. Não sinto alma, mas sossego. As coisas externas, que estão nítidas e paradas, ainda as que se movem, são para mim como para o Cristo seria o mundo, quando, da altura de tudo, Satã o tentou. São nada, e compreendo que o Cristo se não tentasse. São nada, e não compreendo como Satã, velho de tanta ciência, julgasse que com isso tentaria.

Corre leve, vida que se não sente, riacho em silêncio móbil sob árvores esquecidas! Corre branda, alma que se não conhece, murmúrio que se não vê para além de grandes ramos caídos! Corre inútil, corre sem razão, consciência que o não é de nada, vago brilho ao longe, entre clareiras de folhas, que não se sabe de onde vem nem onde vai! Corre, corre, e deixa-me esquecer!

Vago sopro do que não ouso viver, hausto mudo do que não pôde sentir, murmúrio inútil do que não quis pensar, vai lento, vai frouxo, vai em torvelinhos que tens que ter e em declives que te dão, vai para a sombra ou para a luz, irmão do mundo, vai para a glória ou para o abismo, filho do Caos e da Noite, lembrando ainda, em qualquer recanto

teu, de que os Deuses vieram depois, e de que os Deuses passam também.

Epílogo

Na introdução lhes disse que gostaria de crer que a maioria de vocês já tinha ideia de quem foi Fernando Pessoa. Pois bem: eu estava sendo irônico - nem eu sei quem foi Fernando Pessoa, nem os acadêmicos, nem os poetas, e provavelmente nem ele mesmo soube. Pessoa escreveu sobre a alma humana, este é todo o seu misticismo; e conforme tantos outros poetas da alma, para saber realmente quem foram, quem são, teríamos antes de saber quem somos, em nossa essência mais profunda, inefável, transcendente... Teríamos, como os Rumi, as Teresa D'Ávila, os Tagore, os Gibran e os Pessoa, de haver conhecido a Alma face a face.

A Rua dos Douradores não existe em Portugal nem em canto algum, mas existe sempre. Tudo o que foi imaginado existe. E tudo o quefoi imaginado no Reino da Alma existe eternamente, existe sempre. Isto que estou a falar não pode ser falado - isto é mitologia pura.

Há aquele elogio que Schiller fez aos deuses gregos, que citarei aqui:

"Naqueles dias do belo acordar das forças espirituais, os sentidos e o espírito não tinham, com rigor, domínios separados. Por mais alto que a razão subisse, arrastava sempre consigo, amorosa, a matéria, e por finas e nítidas que fossem as suas distinções, nada ela mutilava. Embora decompusesse a natureza humana para projetá-la, aumentada em suas partes, no maravilhoso círculo dos deuses, não o fazia rasgando-a em pedaços, mas sim compondo-a de maneiras diversas, já que em deus algum faltava a humanidade inteira. Quão outra é a situação entre nós mais novos. Eternamente acorrentado a uma pequena partícula do todo, o homem só pode formar-se enquanto partícula".

Cartas sobre a educação estética da humanidade(trecho da carta VI), Friedrich Schiller

Ora, também na mitologia pessoana, em nenhum de seus heterônimos ou semi-heterônimos faltava a humanidade inteira. O que Pessoa conseguiu foi, na medida do possível, olhar o mundo com o olhar do outro, sentir como o outro, imaginar como o outro. Isto só se consegue com muita empatia, mas nem sempre nos leva para caminhos agradáveis...

Bernardo Soares, o ajudante de guarda-livros de Lisboa, é o

personagem que dá conta da descrição da maior parte deste desassossego de ser muitos ao mesmo tempo em que se sabe que se é um só:

"O meu semi-heterônimo Bernardo Soares aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades do raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterônimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afetividade."

Carta ao casal Monteiro(trechos), Fernando Pessoa

A essência de todo desassossego humano é sentir-se mero fantoche de vontades alheias, sem haver encontrado a sua própria. É viver-se como "cadáver adiado", como sombra de paisagens de sonhos esquecidos, como animal sonolento, ou nem mesmo como isso...

Neste sentido, o guarda-livros traz em si um pouco de todos nós, um pouco de toda a depressão da humanidade. Mas é preciso atenção para a mensagem oculta que Pessoa estava a querer passar(não se sabe se conscientemente ou não):

"Pesa-me, realmente me pesa, como uma condenação a conhecer, esta noção repentina da minha individualidade verdadeira, dessa que andou sempre viajando sonolentamente entre o que sente e o que vê.

É tão difícil descrever o que se sente quando se sente que realmente se existe, e que aalma é uma entidade real, que não sei quais são as palavras humanas que possa defini-lo. Não sei se estou com febre, como sinto, se deixei de ter a febre de ser dormidor da vida. Sim, repito, sou como um viajante que de repente se encontre numa vila estranha, sem saber como ali chegou; e ocorrem-me esses casos dos que perdem a memória, e são outros durante muito tempo.

Fui outro durante muito tempo - desde a nascença e a consciência -, e acordo agora no meio da ponte, debruçado sobre o rio, e sabendo que existo mais firmemente do que fui até aqui. Mas a cidade é-me incógnita, as ruas novas, e o mal sem cura. Espero, pois, debruçado sobre a ponte, que me passe a verdade, e eu me restabeleça nulo e fictício, inteligente e natural.

Foi um momento, e já passou. Já vejo os móveis que me cercam, os desenhos do papel velho das paredes, o sol pelas vidraças poeirentas. Vi a verdade um momento. Fui um momento, com consciência, o que os

grandes homens são com a vida. Com a vida? Recordo-lhes os atos e as palavras, e não sei se não foram também tentados vencedoramente pelo Demônio da Realidade".

Livro do Desassossego(trechos), Fernando Pessoa

Todos os heterônimos de Pessoa parecem se aperceber, num momento ou noutro, que são meros personagens, meros atores da imaginação de um escritor(ainda que seja um grande escritor). Isto tudo, no entanto, também indica a inquietação do próprio Pessoa ante a possibilidade(ou realidade?) de ser ele próprio um mero personagem de algum outro Escritor. Um personagem que, para que possa passar a escrever as próprias linhas de sua vida, ou ao menos alguma parte delas, precisa saber renascer; precisa compreender que, para viver uma nova vida, e um novo mundo, é preciso antes aceitar a morte da antiga vida, o fim do mundo, o apocalipse do ser:

"Sim, vou... Já tudo começa a ter outro aspecto e a falar aos meus olhos numa outra voz... Parece que não sou eu que estou cansado de existir, mas as coisas que se cansam de eu as ver... Começo a morrer nas coisas... O que se apaga de mim começa a apagar-se no céu, nas árvores, no quarto, nos cortinados deste leito... Depois, pouco a pouco, ir-se-á apagando pelo meu corpo dentro até que fizer noite mesmo ao pé das janelas da minha alma.

A curva dos montes, lá muito ao longe, torna-se, não mais indecisa mas mais indecisa de outra maneira... As árvores esbatem-se em sombras mas as folhas parecem-me extraordinariamente nítidas, evidentes demais... A seda dos cortinados deste leitoé uma outra espécie de seda... Afundo-me pouco a pouco... Não te entristeças... Eu era real demais para poder reinar algum dia... O único trono que mereço é a morte".

A morte do príncipe(trechos), Fernando Pessoa

Todos os símbolos da mitologia, afinal, dizem respeito a você: Você enfrentou aos deuses monstruosos de sua própria alma? Você venceu e apaziguou os seus demônios interiores? Você despertou de sua vida de sonolência animal para uma nova vida onde pode ver, finalmente, que há só uma única Alma que está em tudo, e que você mesmo é também uma pequena parte dela?

"Deus é a alma de tudo" - concluiu o próprio guarda-livros num de seus lampejos de consciência desperta... Em nossa essência mais

profunda, somos como heterônimos de algum Escritor oculto, somos um com o ser transcendente.

Mas isto que quero tentar dizer não foi dito aqui, e nem em qualquer parte da obra pessoana. Pois isto não se diz com palavras, com cascas de sentimento... Para isto existe a poesia, que diz alguma coisa, sem realmente haver dito.

Este meu translado pela mitologia pessoana foi apenas o querer dizer alguma coisa, e não haver dito nada. Para aqueles que já conheciam a obra de Pessoa, estas seleções talvez tenham trazido algumas boas recordações. Para aqueles que nunca o leram antes, quero crer que estas seleções lhes sirvam como uma "introdução mística" ao seu pensamento. A única coisa que este livro não é, nem pretendeu ser, é um livro acadêmico. Notas de rodapé vocês encontrarão aos montes em outras seleções(nada contra as notas de rodapé nem contra as outras seleções, muitas delas muito superiores a esta, que é apenas uma pequena declaração de amor ao poeta que foi muitos)...

Ah sim, e já ia me esquecendo, faltou ainda esta breve conversa com uma das nereidas:

UM CONTO SOBRE AS ALMAS E SUAS MÁSCARAS

"Ora, faz o que bem quiser" - diz-me Ligea sempre que venho propor mais uma de nossas conversas a beira de seu lago. Não é sempre que consigo achá-la em casa, pois sua morada é distante - alguns séculos no passado - e somente podemos chegar até lá nos raros momentos em que há esta distinta paz na alma. Ligea é bela e gosta de conversar sobre tudo, menos sobre a acusação de que ela e as irmãs exigiram um sacrifício...

"Há de ser toda a Lei: que não fiquem inventando mitos sobre nós! Deixem-nos cuidar das águas, cuidem de sobreviver que nós cuidamos de viver" - é quando ela fala isso que consigo sentir que, apesar de meio-deusa, ela é ainda tão mortal quanto nós. Dizem quea linguagem é sempre uma ficção, e que nada que pode ser descrito por palavras corresponde à realidade. Ora, mas isso é óbvio, me surpreende que as pessoas creiam que mitos tratem da realidade em que sobrevivemos - não, eles tratam de heterônimos, de máscaras para as almas.

Pessoa também foi amigo de Ligea(embora a chamasse Lídia), mas se despediu lá pelo passado e não pôde mais se defender nem se explicar... Dizem que inventou tantos heterônimos que ele próprio era um

desconhecido de si mesmo, uma mitologia feita pessoa. Dizem que tudo o que há de real em Pessoa é sua poesia, e isso basta. Ora, mas ele fica muito agradecido, só não entende como podem ter vasculhado toda sua obra e ter convenientemente esquecido de publicar exatamente a parte em que ele fala de si mesmo. Pessoa vivia uma vida oculta, apenas isso - "está tudo lá explicado" - ele dizia a Ligea...

A linguagem trata sempre de dois mundos, o transitório e exposto, e o oculto e permanente. O mundo oculto não possuí movimento algum, apenas essência, e por isso empresta seus mitos ao mundo transitório, onde cada grão se move e vibra em turbilhão, onde absolutamente tudo está catapultado rumo a imensidão. Todos os heterônimos de Pessoa falavam sobre isso, e eram todos mitos de um homem só, de uma só essência... Depois que se compreende, é simples.

Mas eu sempre trago a questão das disputas religiosas e anti-religiosas para Ligea. E ela sempre me diz mais ou menos assim: "Deixem que se digladiem pelos seus espantalhos de mitos, nós aqui não temos nada a ver com isso... No fim, tudo se resume a questão da sobrevivência sobre a vivência. São como símios que precisam impor-se ante seu pequeno grupo, mas ocorre que ninguém poderá jamais domar o pensamento alheio; ao menos não o pensamento que se encontra livre, do tipo que ainda consegue enxergar a essência por detrás de todas essas máscaras..."

"O amor, o amor é o que importa, o que nos une a todos em uma teia de luz" - ela geralmente completa... E são nesses momentos que percebo que sua beleza não está na superfície, na menina de seus olhos, mas bem mais aprofundada, como pequenos cristais de calcário capazes de refletir ao Sol mesmo lá debaixo, por dentre todo o lodo de seu lago.

Eu tenho visitado e conhecido esses mitos, essas almas... Tudo o que há são almas - algumas puras em sua ignorância, outras que se comprazem na própria ignorância e insistem em caminhar em círculos; ainda outras que sofreram já o suficiente, deixando o rastro de seu sangue emdiversos espinhos da floresta. E existem as bem-aventuradas, que evitam espinhos e sangue, e chegam tão mais depressa na margem do lago das nereidas.

O amor sob a vontade, a vida sobre a sobrevivência, o dar sobre o receber, o buscar sobre o encontrar, a máscara sob a alma - "Não, não é necessária mais essa máscara, agora você já pode nos ver como sempre temos lhe visto" - este é mais ou menos o caminho que leva a casa de

Ligea. Tenho passado boas temporadas por lá...

Rafael Arrais, 2010

Apêndice

Isto são, sobretudo, textos de Pessoa relacionados a filosofia, a metafísica, ao misticismo e ao ocultismo, que entretanto carecem de terem sido elaborados como parte de uma prosa ou poesia mais grandiosa, mais mitológica... Somente por isso trago eles aqui, ao final, como forma de lhes convidar a um breve passeio pela profundidade espiritual da mente do grande poeta do Fado...

DA CLASSIFICAÇÃO DOS SISTEMAS FILOSÓFICOS

Na classificação dos sistemas filosóficos temos a considerar duas coisas: a constituição do espírito e a natureza da ideação metafísica.

O espírito humano, por sua própria natureza de duplamente - interiormente e exteriormente - percipiente, nunca pode pensar senão em termos de um dualismo qualquer; mesmo que chegue a uma concepção monística, dentro dessa concepção monística há um dualismo, mesmo que dos dois elementos constitutivos da Experiência - matéria e espírito - se negue a realidade a um, não se lhe nega a existência como irrealidade, como aparência - o que transforma o dualismo espírito-matéria em dualismo realidade-aparência; mas realidade-aparência é, para o pensamento, um dualismo.

O gênero de dualismo, porém, depende de, e é condicionado por, o que se considera a Realidade Absoluta. O espírito não pode admitir duas realidades absolutas: realidade envolve unidade. Mesmo, portanto, que o espírito admita dois princípios igualmente e objetivamente reais, é forçado a admitir que um desses princípios é de qualquer modo superior em realidade ao outro. Temos pois que todo o sistema filosófico envolve um dualismo e um monismo. A constituição do espírito impõe-lhe que pense dualisticamente; a noção de realidade obriga-o a pensar monisticamente. O espírito não pode construir um sistema puramente monista; e um sistema puramente dualista não seria um sistema filosófico.

Ao tentar o monismo de todo o sistema filosófico, o espírito apoia-se a um princípio qualquer. Apoia-se a um de três: ou a matéria, ou o espírito, ou qualquer outra coisa, necessariamente inconcebida em si, mas só como diversa de espírito e matéria. Por matéria entendemos o conjunto de fenômenos que só pode ser considerado como no tempo e no espaço.

Por espírito o conjunto de fenômenos que diretamente éconsiderado como passando-se no tempo simplesmente.

Nascem daqui três sistemas: o materialismo, o espiritualismo e o transcendentalismo.

O espiritualismo caracteriza-se por duas coisas: pelo seu caráter dualista - a sua admissão de uma dupla realidade - corpo e alma, natureza e Deus; e pela sua centralização na alma humana, por ter a alma humana - e daí, o espírito em geral - por ponto de apoio, por centro de seu sistema.

Destes dois elementos surge um terceiro elemento característico: que a realidade-espírito(alma-humana, espírito divino) é considerada superior à realidade-matéria(corpo humano, natureza). Entendamo-nos bem: o espiritualista tem o corpo e a natureza por tão reais(no sentido totalmente abstrato do termo) como o espírito e Deus; mas a realidade do espírito e de Deus é uma realidade permanente, ao passo que a realidade do corpo e da natureza é uma realidade contingente e transitória. - O espiritualismo opõe-se, por um lado, ao materialismo; por outro, ao transcendentalismo. Quanto ao idealismo, exceto o transcendental - esse é, como mostraremos, apenas uma forma superior da essencial doutrina espiritualista. - O materialismo tem de comum com o espiritualismo o ser dualista; diverge dele em que o ponto central do seu sistema é, não o espírito, mas a matéria; e diverge, portanto, na dedução final, porque, em oposição à doutrina espiritualista, logicamente estabelece a realidade exterior como de gênero superior à realidade interior. O materialismo é dualista porque admite, precisamente como o espiritualismo, duas realidades - matéria e espírito - espírito, é claro, no sentido de atividade psíquica. O materialista não nega - pois isso não se pode negar - que haja fenômenos psíquicos, que tenhamos sensações, pensamentos, sentimentos; o que nega - porque estabelece no Exterior e não no Interior o centro do seu sistema - é que o espírito, a consciência, seja mais do que uma função, um acompanhamento da matéria - tomando matéria no sentido de realidade exterior, de tudo que é concebível como por natureza contido no tempo e no espaço.

O(transcendentalista) admite, como o materialista e o espiritualista, uma dualidade(o espírito humano, por sua própria natureza de duplamente interiormente e exteriormente - percipiente, nunca pode pensar senão em termos de um dualismo qualquer), mas essa dualidade

não é a da matéria e do espírito; não é a dualidade corpo-alma, matéria-espírito. É, como(conforme veremos) a do espiritualista absoluto, a dualidade Aparência-Realidade; mas, ao passo que, para o espiritualista absoluto, a Aparência é a Matéria e a Realidade o Espírito, para o transcendentalista tanto a matéria como o espírito são a Aparência: a Realidade é qualquer coisa que a ambos transcende, e de que ambos são ou manifestação, ou símbolo, ou(...) Istoé, o ponto central, o eixo do sistema transcendentalista não está nem na Natureza ou Matéria(como para o materialista), nem no Espírito(como para o espiritualista), mas noutra coisa que a Matéria e Espírito transcende.

Cada um destes três sistemas se subdivide naturalmente em três subsistemas. O espiritualismo tem três formas. Há, primeiro, o espiritualismo relativo - sistema que considera alma e corpo(natureza e Deus) como igualmente reais, objetivamente reais, ainda que não iguais na qualidade da realidade: assim o corpo(e a Natureza é(são) real(reais) mas transitório(s), contingentes; a alma(e Deus) é(são) real(reais) mas permanente(s). Este espiritualismo é o espiritualismo por assim dizer clássico; é o de S. Tomás de Aquino e dos escolásticos em geral, o espiritualismo da fé católica. - Temos, depois, e avançando no conceito de superioridade do espírito à matéria, o espiritualismo simbólico. Para este, a matéria é real, mas é-o apenas por ser a sombra, o reflexo, o símbolo do espírito. A realidade da matéria é verdadeira, mas subjectiva-objetiva; provém-lhe propriamente de nela representar o espírito. Este é o espiritualismo dos ocultistas de muitos contemplativos, como Mr. Thomas Browne, dos altos místicos, como Swedenborg e William Blake. - Há, finalmente, o espiritualismo absoluto. Intensificada a ânsia espiritualista chega-se a um ponto em que à matéria se nega toda a realidade, salvo a inevitável realidade lógica - isto é, a realidade perante o pensamento; visto que, para pensar a matéria visual, ilusória é preciso pensá-la; para a pensar é forçoso tê-la por ser qualquer coisa, ainda que só para o pensamento. Ser aparência é, de certo modo, ser; e ser de certo modo é ser. Todos os sistemas chamados idealistas - exceto o idealismo dito transcendental, isto é, aquele que provém de Kant - pertencem a esta categoria. Pertencem a esta categoria as metafísicas de Leibnitz e de Berkeley.

No materialismo encontram-se, do mesmo modo, três teorias. Há, primeiro, o materialismo relativo. Este admite a matéria e o espírito - ou, como aquele costuma dizer, a força e a matéria - como igualmente reais,

eternamente reais, mas eternamente inseparáveis. Esta dualidade é monisticamente eterna; e constitui uma realidade exterior, do tempo e do espaço, nem há outra realidade - tal é a teoria, que o sistema exposto por Büchner representa nitidamente. - Há, depois, o materialismo , que, considera a realidade como física e psíquica; mas para ele o psíquico é simplesmente epifenômeno ou função do físico. É apenas real pelo físico. A realidade não é a mesma: o que verdadeiramente é real é o fenômeno físico - Há por fim, o materialismo absoluto, sistema aliás raro, mas curioso. É o de Edgar Poe, no Eureka, porexemplo. Considera o espírito como espiritualmente irreal, isto é, como matéria. Quer dizer, o espírito é uma matéria mais subtil, mas é matéria, realmente matéria, ocupando espaço material.

No transcendentalismo dão-se as mesmas subdivisões. Temos, em primeiro lugar, o transcendentalismo materialista. Para este, espírito e matéria são igualmente reais e irreais: são irreais porque não são duas coisas, mas uma, reais porque são paralelas manifestações de uma realidade que as transcende mas que lhes é a substância. Esta realidade Transcendente é concebida, porém, como incarnada naquelas duas aparências, como manifestando-se através delas sem outro modo de ser. É o sistema filosófico de Spinoza. Chamamos-lhe trans matta porque não é senão aquilo, a que chamamos materialismo relativo, transcendentalizado. Como o materialismo relativo, o transcendentalismo materialista admite duas paralelas formas, inteiramente objetivas, de realidades - matéria e espírito - mas estas existem realmente numa outra substância, que lhes é o ser, mas que não se manifesta senão através delas nem existe senão manifestando-se segundo aquele duplo aspecto. Estas duas coisas são na realidade uma única coisa que através delas duas, se manifesta, mas não existe senão naquela dupla manifestação.

Mais acima encontramos o transcendentalismo espiritualista. É um sistema raro, porque está perpetuamente tendendo ou a ser o, aparentemente mais puro tmo met, ou a ser solicitado, por razões religiosas para um qualquer sistema espiritualista. Há um exemplo deste sistema espiritualista. Há um exemplo deste sistema em Malebranche. Para o tta espta matéria e espírito têm por substractum um ente que o espírito concebe - não como exterior a si, quanto possível, como faz no trmo matta, mas como interior a si.

Para Spinoza tudo é Deus, e Deus é tudo. Deus está todo nos seus

sintomas. Para Malebranche(...) tudo é Deus, e Deus é tudo - mas não é só tudo; além de ser tudo é mais - é Deus. Deus suporta-se em tudo, é tudo, mas ainda lhe sobressai.

Deus, para Spinoza, só existe no tempo e no espaço, através dos seus atributos. Para Malebranche, existe no tempo e no espaço, porque existe nas coisas e nos espíritos, mas existe também fora do tempo e do espaço, em si próprio.

T absoluto: Deus é tudo, mas tudo irrealmente. Uma pedra não é real, como pedra. Uma pedra é uma ilusão do meu espírito. Mas como o meu espírito é Deus e a pedra é Deus, a pedra é real e irreal ao mesmo tempo.

A natureza é uma irrealidade divina.

***

Mas a ideia de Deus - onde fica no espiritualismo? Fica subordinada, como ideia, à ideia central de espírito. Logo que Deus seja considerado espiritual e exterior às almas humanas estamos em espiritualismo. As duascaracterísticas são essenciais; porque espiritual e interior às almas, constituindo-lhe a substância é já o transcendentalismo espiritualista, de que adiante se falará.

Dizer que um sistema tem por base, por ex., o espírito é dizer que concebe a Realidade Suprema como espiritual, como do gênero do espírito.

Toda a exaltação mística de Deus tende a manifestar-se numa linguagem panteísta. O espiritualista que desloque o ponto de base do seu sistema do Espírito e se incline em entusiasmo para Deus, tende imediatamente a falar transcendentalismo. Isto acontece a Platão, aos místicos cristãos repetidas vezes. Urge, porém, não tomar o anormal por característico; não classificar um sistema pelas exaltações que o põem fora de si próprio.

Há só um sistema - o transcendentalismo absoluto - que nunca pode sair fora de si próprio, porque abrange tudo.

O ENSAIO SOBRE A INICIAÇÃO

Havia três razões pelas quais nas religiões pagãs certas verdades, ou coisas supostas serem verdades, eram transmitidas só em segredo e reclusão, por iniciação. A primeira era uma razão social: pensava-se que essas tais verdades eram impróprias para transmissão a qualquer homem, a não ser que ele estivesse em certa medida preparado para as

receber, e que elas teriam resultados sociais desastrosos se fossem tornadas públicas, pois isso significaria que seriam mal compreendidas. "Etiamsi revelare destruere est..." A segunda era uma razão filosófica: supunha-se que, em si próprias, essas verdades não eram de um gênero que o homem comum pudesse compreender e que lhe poderia advir confusão mental e desequilíbrio na conduta se lhe fossem inutilmente comunicadas. A terceira era, por assim dizer, uma razão espiritual: pensava-se que, por serem verdades da vida interior, essas verdades não deviam ser comunicadas, mas sugeridas, e que a sugestão devia ser impressiva, rodeada de secretismo, para que pudesse ser sentida como de valor; de ritual, para que pudesse impressionar e surpreender; de símbolos, para que o candidato fosse forçado a abrir o seu próprio caminho, lutando por interpretar os símbolos, em vez de se julgar cheio de conhecimento se a comunicação tivesse sido feita por ensinamento dogmático ou filosófico.

Não digo que estas três razões se apresentassem claras ou em separado ou em conjunto, embora assim divididas, nos espíritos dos antigos, sacerdotes ou leigos das suas religiões. Mas digo que, quando não por inteligência direta, ao menos por intuição, eles basearam as suas religiões neste esquema divisional.

As religiões dos Antigos, e sobretudo as religiões pagãs da Grécia e Roma, que são as que mais nos interessam, uma vez que os nossos espíritos são seus filhos, estavam divididas em três formas. Havia uma forma social, o culto, que era o do homem como cidadão. Havia uma forma individual, a poesia, queera do homem como não-cidadão; cumprido o culto devidamente, ele podia interpretar para si os deuses como entendesse e elaborar as suas lendas como lhe parecesse mais adequado. E havia uma forma secreta, a iniciação, que participava em segredo das características de ambas: era individual porque, mesmo quando a iniciação era coletiva como nos grandes Mistérios pagãos, era sempre o indivíduo o iniciado e não o grupo; era social, porque a iniciação era comunicada em ritual e o ritual é social.

O que com os Cristãos raramente está associado ou fundido com a poesia como acontecia com os pagãos.(Não compreenderemos a Idade Média até que compreendamos que a teologia era a sua poesia, que a ausência de poesia então mais não era que a presença da poesia sob outra forma).

Todas as religiões, porém, estão no mesmo estado que as grandes

religiões pagãs. As três formas de religião serão encontradas de uma forma ou de outra em todas. Nas religiões cristãs, por exemplo, temos o culto público, quer seja altamente cerimonial como na Igreja Romana, quer pobre até à nudez como nas seitas protestantes extremistas; temos a religião individual significando a reflexão pessoal sobre os dogmas e fórmulas de fé, e isto é teologia onde(com os pagãos), era antes poesia; e temos a vida interior do cristão, que é a sua iniciação, porque nas religiões cristãs a iniciação é considerada como dada por Cristo, só, misticamente, e não por qualquer sacerdote ou hierofante ritualmente ou ceremonialmente. Por outras palavras - cujo sentido mais exato será compreendido mais tarde - a iniciação pagã encaminhou-se para a Magia, como fazem todas as iniciações rituais, e a iniciação cristã encaminhou-se para o Misticismo, como fazem todas as iniciações meditativas.

Qualquer que seja o número de graus, exteriores ou interiores, na escala de ascensão para a verdade, eles podem ser considerados como três - Neófito, Adepto e Mestre. Na realidade, os graus são dez - quatro para o Neófito, três para o Adepto e três, por assim dizer, para o Mestre. Há realmente também dois intergraus que ficam entre o primeiro e o segundo, e entre o segundo e o terceiro há ordens, estas também não numeradas. Os graus não numerados são graus de noviciado, enquanto os outros são, cada um na sua medida, graus de realização.

O Neófito, ao longo dos graus que esta expressão descreve, é essencialmente um aprendiz; o seu caminho é em direção à realização do conhecimento na esfera exterior. No Adepto, ao longo dos seus três passos, há um progresso na unificação do conhecimento com a vida. No Mestre há, ou diz-se que há, uma distribuição da unidade assim atingida em virtudede uma unidade mais elevada.

Uma comparação com coisas mais simples tornará isto mais claro, creio. Suponhamos que o escrever grande poesia é o fim da iniciação. O grau de Neófito será a aquisição dos elementos culturais com que o poeta terá de tratar ao escrever poesia e que são, grau a grau e no que se afigura ser uma analogia exata: 0) gramática; 1) cultura geral; 2) cultura literária particular; 3) O grau de Adepto será, extraindo a analogia da mesma maneira; 5) o escrever poesia lírica simples como num poema lírico comum; 6) o escrever poesia lírica complexa como em; 7) o escrever poesia lírica ordenada ou filosófica como na ode.

O grau de Mestre será, da mesma maneira: 8) o escrever poesia épica;

9) o escrever poesia dramática; 10) a fusão de toda a poesia, lírica, épica e dramática em algo para lá de todas elas.

Ao leitor desta analogia literária ocorrerão três observações. A primeira é que se pode ser poeta sem os graus de Neófito, Adepto do primeiro grau de Adepto sem sequer se "tomar" o primeiro grau de neófito. A segunda é que a progressão descrita não corresponde à que habitualmente acontece na vida, seja ela a de um poeta ou a de qualquer outro homem. A terceira é que a função de toda a poesia, lírica, épica e dramática, em algo que fica para além das três, é uma realização que excede a compreensão.

Levei o leitor a fazer estas observações para que eu pudesse, replicando-lhes, completar a analogia com uma explicação.

Quanto à primeira observação: O primeiro grau de Adepto é, na verdade, o primeiro grau real da iniciação real. Um místico simples, que funde a sua fé e a sua vida, atingiu o começo da iniciação real, enquanto o neófito aperfeiçoado, no qual a fé(ou conhecimento) e a vida ainda estão separados, não a atingiu. Mas se o Adepto espontâneo tiver atingido o Quinto Grau sem ter passado pelos cinco primeiros(que incluem o grau Zero), terá de permanecer largo tempo à entrada da Câmara do Meio, onde se pode adequadamente dizer estar "colocado" o primeiro grau de Adepto. Para passar ao Sexto Grau ele terá, em certo sentido, de voltar ao princípio.

OS CAMINHOS DO MISTICISMO E DA MAGIA

Os caminhos do Misticismo e da Magia são muitas vezes caminhos de engano e de erro. O Misticismo significa essencialmente confiança na intuição; a Magia significa essencialmente confiança no poder. A intuição é uma operação da mente pela qual os resultados da inteligência são obtidos sem o uso da inteligência. O poder, no sentido do podermágico, é uma operação da mente pela qual os resultados do esforço contínuo são obtidos sem o uso do esforço contínuo. Ambos, porém, por mais tempo que levem a operar, são atalhos para o conhecimento. Em certo sentido, tanto o Misticismo como a Magia são confissões de impotência. O místico é um homem que sente que não tem em si a força do pensamento para atingir a verdade pelo pensamento. O mágico é um homem que sente que não tem em si a força de vontade para atingir a verdade(ou o poder) pela força de vontade. A rapariga ociosa que adivinha ou que se deita a adivinhar coisas é uma mística dentro do seu campo superficial; é demasiado preguiçosa para tentar saber. A

camponesa que tenta reter o amor do marido por meio de encantamentos e poções é um mágico dentro das suas fronteiras estreitas; ela é demasiado ignorante e demasiado fraca para intentar atingir o seu fim por encantamento direto, por sedução permanente. Em ambos os casos há uma evasão.

Isto não quer dizer - ou, pelo menos, não precisa de querer dizer - que os resultados do Misticismo e da Magia estejam necessariamente errados. Quer dizer, contudo, que não há nenhum critério pelo qual possamos distinguir entre um resultado errado e um resultado certo num caminho ou noutro. Na Gnose, onde empregamos o intelecto, temos, pelo menos, o lastro do raciocínio; podemos, pelo menos, comparar um "resultado" com outro, examinar se eles são contraditórios, quer cada um em si, quer em referência um ao outro. Podemos não raciocinar bem, mas raciocinamos. Se errarmos, é porque nos enganamos e não porque estejamos errados, como nos outros dois caminhos. É como quando se soma mal; a falha não está em somar, mas em não somar bem; somar é, porém, o sistema correto para obter um total.

Isto ficará claro, se formos buscar exemplos simples, podíamos dizer correntes, ao Misticismo e à Magia. Um caso simples de Misticismo é o tipo comum de intuição a que se chama "palpite" em linguagem vulgar.

Uma pessoa tem um palpite de que em certo número terá o primeiro prêmio da loteria. De vez em quando o palpite sai certo, mas todos sabemos que, por cada vez que sai certo, há milhares de vezes em que sai errado. Se assim não fosse, um clube de apostas não seria o grande negócio que sempre é. Neste caso, na verdade, há um caminho fácil para verificar a exatidão do palpite: a loteria, uma vez extraída, mostrá-lo-á. Mas como é que se há de provar ou refutar o palpite do místico de que atingiu a unidade comCristo? Ele diz que sabe, que sente... Mas o louco que se julga Cristo ou rei de certo país está tão seguro disso como o místico da sua intuição.

Tomemos, de novo, um caso simples de Magia - o espiritismo. O espiritismo é magia, porque é evocação dos espíritos dos mortos a esta vida. Faz-se uma sessão, evoca-se o espírito do falecido X, a voz do médium, a mesa pé de galo ou a prancheta anuncia que ele apareceu. Como é que sabemos que sim? A comunicação de coisas conhecidas somente de um dos presentes pode ser uma projeção da mente desse que está presente. A comunicação de coisas somente conhecidas do

falecido e depois verificadas pode ser uma comunicação de alguma força ou mesmo espírito, outro que não o do falecido. E quando o espírito dá informação da sua morada presente, por que método nos asseguraremos se essa informação é certa ou errada? Não digo que tudo o que emerge numa sessão ou que emergiu em sessões esteja errado. Nem digo que esteja certo: digo que não há meio de conhecermos a origem da informação assim recebida, e quando a informação diz respeito a outros mundos ou a coisas de outro modo não verificáveis neste, não há meio de conhecermos a sua origem ou a sua verdade.

DO CONTEÚDO DOS MISTÉRIOS

Afinal o conteúdo dos mistérios resume-se em ensinamentos, sobre três ordens de coisas, que sempre se julgou que não devem ser reveladas ao geral dos homens. Sempre se julgou que aqueles ensinamentos, que as religiões ministram, deveriam ser adaptados à mente dos que a os recebem, e, como muitos deles - tal é a opinião dos iniciados - são de ordem que o povo em geral os não compreenderia e que portanto, compreendendo os pervertidamente, se perturbaria com ele, segue que se pensou que esses ensinamentos se deveriam dividir em duas ordens: exotéricos ou profanos os que são expostos de modo a que todos possam ser ministrados; esotéricos ou ocultos os que, sendo mais verdadeiros, ou inteiramente verdadeiros, não convém que se ministrem senão a indivíduos previamente preparados, gradualmente preparados, para os receber. A esta preparação se chamava, e chama, iniciação. E esta iniciação é ela mesma gradual em todos os mistérios, e de tal modo disposta que o indivíduo inapto para receber esses ensinamentos ocultos se revela tal antes que eles lhe sejam inteiramente dados.

Se esses ensinamentos ocultos são verdadeiros, ou apenas especulações abstrusas, é outro problema. Se os hierofantes do oculto têm, na verdade, maior conhecimento da verdade pura do que nós profanos, que a buscamos, se a buscamos, coma leitura; ou a meditação, ou a inteligência discursiva e dialética - não o podemos nós saber. Tudo isso pode ser sinceramente crido pelos iniciados, e ser falso. O oculto pode ter alucinações próprias, enganos seus.

Seja como for, o certo é que os ensinamentos ministrados nos mistérios abrangem três ordens de coisas:(1) a verdadeira natureza da alma humana, da vida e da morte;(2) a verdadeira maneira de entrar em contacto com as forças secretas da natureza e manipulá-las; e(3) a

verdadeira natureza de Deus ou dos Deuses e da criação do mundo. São, respectivamente, o segredo alquímico, o segredo mágico, e o segredo místico. Ao primeiro chama se alquímico porque os ensinamentos relativos a ele são em geral ministrados através de símbolos da chamada alquimia, que não é mais, como hoje claramente se sabe, do que uma linguagem simbólica.

E ainda não é o fim. Há duas preces antes do fim...

SENHOR, DÁ-ME ALMA PARA TE AMAR

Senhor, que és o céu e a terra, e que és a vida e a morte! O sol és tu e a lua és tu e o vento és tu! Tu és os nossos corpos e as nossas almas e o nosso amor és tu também. Onde nada está tu habitas e onde tudo estás -(o teu templo) - eis o teu corpo.

Dá-me alma para te servir e alma para te amar. Dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra, ouvidos para te ouvir no vento e no mar, e mãos para trabalhar em teu nome.

Torna-me puro como a água e alto como o céu. Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos. Faz com que eu saiba amar os outros como irmãos e servir-te como a um pai.

Minha vida seja digna da tua presença. Meu corpo seja digno da terra, tua cama. Minha alma possa aparecer diante de ti como um filho que volta ao lar.

Torna-me grande como o Sol, para que eu te possa adorar em mim; e torna-me puro como a lua, para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te possa ver sempre em mim e rezar-te e adorar-te.

Senhor, protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim.

AVE ATQUE VALE...

Meu irmão, recebeste a Palavra. O que a vida te escondeu, porque é a morte, revelou-te a morte, porque é a vida.

, tudo neste mundo é símbolo e sonho - é símbolo tudo quanto temos, sonho tudo quanto desejamos. Ouniverso inteiro, de que somos parte por castigo e erro, é uma alegoria cujo sentido hoje conheces visto que teus olhos, por fechados, estão abertos, e teus ouvidos, por oclusos, podem enfim ouvir.

Sabes já, meu irmão, visto que estás desperto que o sol é negro e a terra vazia; que o que amamos é o que desconhecemos, que o que sonhamos é o que conhecíamos.

Teu caminho agora é entre onde cessam os astros e a luz do sol não é lei nem dia. Que o Supremo Arquiteto dos Universos te dê a luz que te mostre a profundeza dos abismos e te permita não regressar senão para ser, quando houveres de o ser, nosso Irmão, nosso Juiz, e nosso Mestre; mas, se assim não for ainda, que a paz seja com o que tiveres que ser!

Ave atque vale, frater!

Agradecimentos finais

Nós, amantes de Pessoa, devemos gratidão a todas estas almas argonautas:

Ana Maria Freitas, Fernando Cabral Martins, José Blanco, Leonor Areal, Luísa Freire, Luísa Medeiros, Madalena Dine, Manuel Rosa, Manuela Parreira da Silva, Paula Cristina Cunha, Richard Zenith, Rui Zink, Sebastián Santisi, Teresa Rita Lopes e os demais compiladores, comentadores e divulgadores da mitologia pessoana...



Ainda gostaria de agradecer aos meus parentes:



Eliane Sinésio, Ricardo Pessoa e Fernando Pessoa.

"De que lado é que veio este vento?"

Não há lados.

"De onde é que você me chamou?"

Não há "onde". Há somente o chamado...

"Porque não me deixa em paz? Tenho sono...".

Não há sono no mundo!

"Quero ser um fantoche, não um ator".

Não lhe imaginei como um fantoche;

O imaginei como grande herói,

Grande aventureiro da própria vida,

Argonauta dos sete mares!

"Não quero navegar, não quero ser náufrago...".

Navegar é preciso!

A vida no medo

É como uma ilha de náufragos no deserto

Tateando atrás duma gota d'água...

Ó herói temerário, aventura-te!

Desperta enfim!

Há água por todos os lados...

Há um Oceano a tua volta!

"Quero viver, não morrer. Tenho medo".

Viver não é preciso

Nem mesmo necessário...

Isto que chama "vida"

É somente um entreato entre gloriosas aventuras

E viagens inimagináveis

Senão em sonhos.

Ó herói sonolento, aventura-te!

Viver não é preciso

Criar é preciso.

Estou lhe chamando para uma aventura

Pelos caminhos tortuosos para dentro de ti mesmo

Que escondem, por detrás da cordilheira dos dragões famintos

Um Reino de Liberdade!

Estou lhe convidando:

Desperta, enfim, em meu Reino...

Mãos à obra, a Grande Obra!