Fernando Pessoa

"Poemas de Álvaro de Campos"

I

Quando olho para mim não me percebo.

Tenho tanto a mania de sentir

Que me extravio às vezes ao sair

Das próprias sensações que eu recebo.

O ar que respiro, este licor que bebo,

Pertencem ao meu modo de existir,

E eu nunca sei como hei de concluir

As sensações que a meu pesar concebo.

Nem nunca propriamente reparei

Se na verdade sinto o que sinto. Eu

Serei tal qual pareço em mim? Serei

Tal qual me julgo verdadeiramente?

Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,

Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.

II

A praça da Figueira de manhã,

Quando o dia é de sol(como acontece

Sempre em Lisboa), nunca em mim esquece,

Embora seja uma memória vã.

Há tanta coisa mais interessante

Que aquele lugar lógico e plebeu,

Mas amo aquilo, mesmo aqui... Sei eu

Por que o amo? Não importa nada... Adiante!

Isto de sensações só vale a pena

Se a gente se não põe a olhar para elas.

Nenhuma delas em mim serena...

De resto, nada em mim é certo e está

De acordo comigo próprio. As horas belas

São as dos outros ou as que não há.

(III) Soneto já antigo

Olha, Daisy: quando eu morrer tu hás-de

dizer aos meus amigos aí de Londres,

embora não o sintas, que tu escondes

a grande dor da minha morte. Irás de

Londres p'ra Iorque, onde nasceste(dizes...

que eu nada que tu digas acredito),

contar àquele pobre rapazito

que me deu tantas horas tão felizes,

Embora não osaibas, que morri...

mesmo ele, a quem eu tanto julguei amar,

nada se importará... Depois vai dar

a notícia a essa estranha Cecily

que acreditava que eu seria grande...

Raios partam a vida e quem lá ande!

OPIÁRIO

Ao Senhor Mário de Sá-Carneiro

É antes do ópio que a minh'alma é doente.

Sentir a vida convalesce e estiola

E eu vou buscar ao ópio que consola

Um Oriente ao oriente do Oriente.

Esta vida de bordo há-de matar-me.

São dias só de febre na cabeça

E, por mais que procure até que adoeça,

Já não encontro a mola pra adaptar-me.

Em paradoxo e incompetência astral

Eu vivo a vincos de ouro a minha vida,

Onda onde o pundonor é uma descida

E os próprios gozos gânglios do meu mal.

É por um mecanismo de desastres,

Uma engrenagem com volantes falsos,

Que passo entre visões de cadafalsos

Num jardim onde há flores no ar, sem hastes.

Vou cambaleando através do lavor

Duma vida-interior de renda e laca.

Tenho a impressão de ter em casa a faca

Com que foi degolado o Precursor.

Ando expiando um crime numa mala,

Que um avô meu cometeu por requinte.

Tenho os nervos na forca, vinte a vinte,

E caí no ópio como numa vala.

Ao toque adormecido da morfina

Perco-me em transparências latejantes

E numa noite cheia de brilhantes

Ergue-se a lua como a minha Sina.

Eu, que fui sempre um mau estudante, agora

Não faço mais que ver o navio ir

Pelo canal de Suez a conduzir

A minha vida, cânfora na aurora.

Perdi os dias que já aproveitara.

Trabalhei para ter só o cansaço

Que é hoje em mim uma espécie de braço

Que ao meu pescoço me sufoca e ampara.

E fui criança como toda a gente.

Nasci numa província portuguesa

E tenho conhecido gente inglesa

Que diz que eu sei inglês perfeitamente.

Gostava de ter poemas e novelas

Publicados por Plon e no Mercure,

Mas é impossível que esta vida dure.

Se nesta viagem nem houve procelas!

A vida a bordo é uma coisa triste,

Embora a gente se divirta às vezes.

Falo com alemães, suecos e ingleses

E a minha mágoa de viver persiste.

Eu acho que não vale a pena ter

Ido ao Oriente e visto a Índia e a China.

A terra é semelhante e pequenina

E há só uma maneira de viver.

Por isso eu tomo ópio. É um remédio.

Sou um convalescente do Momento.

Moro no rés-do-chão do pensamento

E ver passar a Vida faz-me tédio.

Fumo. Canso. Ah uma terra aonde, enfim,

Muito a leste não fosse o oeste já!

Pra que fui visitar a Índia que há

Se não há Índia senão a alma em mim?

Sou desgraçado por meumorgadio.

Os ciganos roubaram minha Sorte.

Talvez nem mesmo encontre ao pé da morte

Um lugar que me abrigue do meu frio.

Eu fingi que estudei engenharia.

Vivi na Escócia. Visitei a Irlanda.

Meu coração é uma avòzinha que anda

Pedindo esmola às portas da Alegria.

Não chegues a Port-Said, navio de ferro!

Volta à direita, nem eu sei para onde.

Passo os dias no smoking-room com o conde -

Um escroc francês, conde de fim de enterro.

Volto à Europa descontente, e em sortes

De vir a ser um poeta sonambólico.

Eu sou monárquico mas não católico

E gostava de ser as coisas fortes.

Gostava de ter crenças e dinheiro,

Ser vária gente insípida que vi.

Hoje, afinal, não sou senão, aqui,

Num navio qualquer um passageiro.

Não tenho personalidade alguma.

É mais notado que eu esse criado

De bordo que tem um belo modo alçado

De laird escocês há dias em jejum.

Não posso estar em parte alguma. A minha

Pátria é onde não estou. Sou doente e fraco.

O comissário de bordo é velhaco.

Viu-me co'a sueca... e o resto ele adivinha.

Um dia faço escândalo cá a bordo,

Só para dar que falar de mim aos mais.

Não posso com a vida, e acho fatais

As iras com que às vezes me debordo.

Levo o dia a fumar, a beber coisas,

Drogas americanas que entontecem,

E eu já tão bêbado sem nada! Dessem

Melhor cérebro aos meus nervos como rosas.

Escrevo estas linhas. Parece impossível

Que mesmo ao ter talento eu mal o sinta!

O facto é que esta vida é uma quinta

Onde se aborrece uma alma sensível.

Os ingleses são feitos pra existir.

Não há gente como esta pra estar feita

Com a Tranquilidade. A gente deita

Um vintém e sai um deles a sorrir.

Pertenço a um género de portugueses

Que depois de estar a Índia descoberta

Ficaram sem trabalho. A morte é certa.

Tenho pensado nisto muitas vezes.

Leve o diabo a vida e a gente tê-la!

Nem leio o livro à minha cabeceira.

Enoja-me o Oriente. É uma esteira

Que a gente enrola e deixa de ser bela.

Caio no ópio por força. Lá querer

Que eu leve a limpo uma vida destas

Não se pode exigir. Almas honestas

Com horas pra dormir e pra comer,

Que um raio as parta! E isto afinal é inveja.

Porque estes nervos são a minha morte.

Não haver um navio que me transporte

Para onde eu nada queira que o não veja!

Ora! Eu cansava-me do mesmo modo.

Qu'ria outro ópio mais forte pra ir de ali

Para sonhos que dessem cabo de mim

E pregassem comigo nalgum lodo.

Febre! Se isto que tenho não é febre,

Não sei como é que se tem febre e sente.

O fato essencial é que estou doente.

Está corrida,amigos, esta lebre.

Veio a noite. Tocou já a primeira

Corneta, pra vestir para o jantar.

Vida social por cima! Isso! E marchar

Até que a gente saia pla coleira!

Porque isto acaba mal e há-de haver

(Olá!) sangue e um revólver lá prò fim

Deste desassossego que há em mim

E não há forma de se resolver.

E quem me olhar, há-de-me achar banal,

A mim e à minha vida... Ora! um rapaz...

O meu próprio monóculo me faz

Pertencer a um tipo universal.

Ah quanta alma viverá, que ande metida

Assim como eu na Linha, e como eu mística!

Quantos sob a casaca característica

Não terão como eu o horror à vida?

Se ao menos eu por fora fosse tão

Interessante como sou por dentro!

Vou no Maelstrom, cada vez mais prò centro.

Não fazer nada é a minha perdição.

Um inútil. Mas é tão justo sê-lo!

Pudesse a gente desprezar os outros

E, ainda que co'os cotovelos rotos,

Ser herói, doido, amaldiçoado ou belo!

Tenho vontade de levar as mãos

À boca e morder nelas fundo e a mal.

Era uma ocupação original

E distraía os outros, os tais sãos.

O absurdo, como uma flor da tal Índia

Que não vim encontrar na Índia, nasce

No meu cérebro farto de cansar-se.

A minha vida mude-a Deus ou finde-a...

Deixe-me estar aqui, nesta cadeira,

Até virem meter-me no caixão.

Nasci pra mandarim de condição,

Mas falta-me o sossego, o chá e a esteira.

Ah que bom que era ir daqui de caída

Prà cova por um alçapão de estouro!

A vida sabe-me a tabaco louro.

Nunca fiz mais do que fumar a vida.

E afinal o que quero é fé, é calma,

E não ter estas sensações confusas.

Deus que acabe com isto! Abra as eclusas -

E basta de comédias na minh'alma!

No Canal de Suez, a bordo.

3 /1914

ODE TRIUNFAL

À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas

Tenho febre e escrevo.

Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,

Para a beleza disto totalmente desconhecida

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!

Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!

Em fúria fora e dentro de mim,

Por todos os meus nervos dissecados fora,

Por todasas papilas fora de tudo com que eu sinto!

Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,

De vos ouvir demasiadamente de perto,

E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um

De expressão de todas as minhas sensações,

Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

Em febre e olhando os motores como a uma Natureza

Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força -

Canto, e canto o presente, e também o passado e o

Porque o presente é todo o passado e todo o futuro

E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes

Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio

E pedaços do Alexandre Magno do século talvez

Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do

Andam por estas correias de transmissão e por estes

Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,

Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se

Ser completo como uma máquina!

Poder ir na vida triunfante como um automóvel

Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,

Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me

A todos os perfumes de óleos e calores e carvões

Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!

Fraternidade com todas as dinâmicas!

Promíscua fúria de ser parte-agente

Do rodar férreo e cosmopolita

Dos comboios estrénuos.

Da faina transportadora-de-cargas dos navios.

Do giro lúbrico e lento dos guindastes,

Do tumulto disciplinado das fábricas,

E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias

Horas europeias, produtoras, entaladas

Entre maquinismos e afazeres úteis!

Grandes cidades paradas nos cafés,

Nos cafés - oásis de inutilidades ruidosas

Onde se cristalizam e se precipitam

Os rumores e os gestos do Útil

E as rodas, e as rodas-dentadas e as chumaceiras do

Nova Minerva sem-alma dos cais e das gares!

Novos entusiasmos de estatura do Momento!

Quilhas de chapas de ferro sorrindo encostadas às

Ou a seco, erguidas, nos planos-inclinados dos portos!

Actividade internacional, transatlântica,

Luzes e febris perdas de tempo nos bares, nos hotéis,

Nos Longchamps e nos Derbies e nos Ascots,

E Piccadillies e Avenues de l'Opéra que entram

Pela minh'alma dentro!

Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hé-lá-hô la foule!

Tudo o que passa, tudo o que pára às montras!

Comerciantes; vadios; escrocs exageradamente

Membros evidentes de clubes aristocráticos;

Esquálidas figuras dúbias; chefes de família vagamente

E paternais até na corrente de oiro que atravessa o

De algibeira a algibeira!

Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa!

Presença demasiadamente acentuada das cocotes

Banalidade interessante(e quem sabe o quê por

Das burguesinhas, mãe e filha geralmente,

Que andam na rua com um fim qualquer;

A graça feminil e falsa dos pederastas que passam,

E toda a gente simplesmente elegante que passeiae se

E afinal tem alma lá dentro!

(Ah, como eu desejaria ser o souteneur disto tudo!)

A maravilhosa beleza das corrupções políticas,

Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos,

Agressões políticas nas ruas,

E de vez em quando o cometa dum regicídio

Que ilumina de Prodígio e Fanfarra os céus

Usuais e lúcidos da Civilização quotidiana!

Notícias desmentidas dos jornais,

Artigos políticos insinceramente sinceros,

Notícias passez à-la-caisse, grandes crimes -

Duas colunas deles passando para a segunda página!

O cheiro fresco a tinta de tipografia!

Os cartazes postos há pouco, molhados!

Vients-de-paraître amarelos com uma cinta branca!

Como eu vos amo a todos, a todos, a todos,

Como eu vos amo de todas as maneiras,

Com os olhos e com os ouvidos e com o olfacto

E como o tacto(o que palpar-vos representa para mim!)

E com a inteligência como uma antena que fazeis

Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós!

Adubos, debulhadoras a vapor, progressos da

Química agrícola, e o comércio quase uma ciência!

Ó mostruários dos caixeiros-viajantes,

Dos caixeiros-viajantes, cavaleiros-andantes da

Prolongamentos humanos das fábricas e dos calmos

Ó fazendas nas montras! Ó manequins! Ó últimos

Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar!

Olá grandes armazéns com várias secções!

Olá anúncios eléctricos que vêm e estão e

Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é

Eh, cimento armado, beton de cimento, novos

Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos!

Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos,

Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.

Amo-vos carnìvoramente,

Pervertidamente e enroscando a minha vista

Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis,

Ó coisas todas modernas,

Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima

Do sistema imediato do Universo!

Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!

Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parks,

Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes -

Na minha mente turbulenta e encandescida

Possuo-vos como a uma mulher bela,

Completamente vos possuo como a uma mulher bela

Que se encontra casualmente e se acha

Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas!

Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios!

Eh-lá-hô recomposições ministeriais!

Parlamentos, políticas, relatores de orçamentos.

Orçamentos falsificados!

(Um orçamento é tão natural como uma árvore

E um parlamento tão belo como uma borboleta).

Eh-lá o interesse por tudo na vida,

Porque tudo é a vida, desde os brilhantes nas montras

Até à noite ponte misteriosa entre os astros

E o mar antigo e solene, lavando as costas

E sendo misericordiosamente o mesmo

Que era quando Platão era realmente Platão

Na sua presença real e na sua carne com a alma dentro,

E falava com Aristóteles, que havia de não ser

Eu podia morrer triturado por um motor

Com o sentimento de deliciosa entrega duma

Atirem-me para dentro das fornalhas!

Metam-me debaixo dos comboios!

Espanquem-me a bordo de navios!

Masoquismo através de maquinismos!

Sadismo de não seiquê moderno e eu e barulho!

Up-lá hô jockey que ganhaste o Derby,

Morder entre dentes o teu cap de duas cores!

(Ser tão alto que não pudesse entrar por nenhuma

Ah, olhar é em mim uma perversão sexual!)

Eh-lá, eh-lá, eh-lá, catedrais!

Deixai-me partir a cabeça de encontro às vossas esquinas,

E ser levado da rua cheio de sangue

Sem ninguém saber quem eu sou!

Ó tramways, funiculares, metropolitanos,

Roçai-vos por mim até ao espasmo!

Hilla! hilla! hilla-hô!

Dai-me gargalhadas em plena cara,

Ó automóveis apinhados de pândegos e de putas,

Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes das

Rio multicolor anónimo e onde eu me posso banhar

Ah, que vidas complexas, que coisas lá pelas casas de

Ah, saber-lhes as vidas a todos, as dificuldades de

As dissensões domésticas, os deboches que não se

Os pensamentos que cada um tem a sós consigo no seu

E os gestos que faz quando ninguém pode ver!

Não saber tudo isto é ignorar tudo, ó raiva,

Ó raiva que como uma febre e um cio e uma fome

Me põe a magro o rosto e me agita às vezes as mãos

Em crispações absurdas em pleno meio das turbas

Nas ruas cheias de encontrões!

Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a

Que emprega palavrões como palavras usuais,

Cujos filhos roubam às portas das mercearias

E cujas filhas aos oito anos - e eu acho isto belo e

Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de

A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa

Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão.

Maravilhosa gente humana que vive como os cães,

Que está abaixo de todos os sistemas morais.

Para quem nenhuma religião foi feita,

Nenhuma arte criada,

Nenhuma política destinada para eles!

Como eu vos amo a todos, porque sois assim,

Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem

Inatingíveis por todos os progressos,

Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!

(Na nora do quintal da minha casa

O burro anda à roda, anda à roda,

E o mistério do mundo é do tamanho disto.

Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente.

A luz do sol abafa o silêncio das esferas

E havemos todos de morrer,

Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo,

Pinheirais onde a minha infância era outra coisa

Do que eu sou hoje...)

Mas, ah outra vez a raiva mecânica constante!

Outra vez a obsessão movimentada dos ónibus.

E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo

De todas as partes do mundo,

De estar dizendo adeus de bordo de todos os navios,

Que a estas horas estão levantando ferro ou

Ó ferro, ó aço, ó alumínio, ó chapasde ferro ondulado!

Ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó

Eh-lá grandes desastres de comboios!

Eh-lá desabamentos de galerias de minas!

Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transatlânticos!

Eh-lá-hô revoluções aqui, ali, acolá,

Alterações de constituições, guerras, tratados, invasões,

Ruído, injustiças, violências, e talvez para breve o fim,

A grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa,

E outro Sol no novo Horizonte!

Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto

Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,

Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?

Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,

O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,

O Momento estridentemente ruidoso e mecânico,

O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes

Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.

Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar,

Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos,

Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de

Engenhos, brocas, máquinas rotativas!

Eia, eia! eia!

Eia electricidade, nervos doentes da Matéria!

Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do

Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!

Eia todo o passado dentro do presente!

Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!

Eia! eia! eia!

Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita!

Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô!

Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio,

Engatam-me em todos os comboios.

Içam-me em todos os cais.

Giro dentro das hélices de todos os navios.

Eia! eia-hô! eia!

Eia! sou o calor mecânico e a electricidade!

Eia! e os rails e as casas de máquinas e a Europa!

Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a

Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!

Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-la!

Hé-la! He-hô! H-o-o-o-o-o!

Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-!

A não ser eu toda a gente e toda a parte!

Londres.

DOIS EXCERTOS DE ODES

(FINS DE DUAS ODES, NATURALMENTE)

I

.........................................................................................

Vem, Noite antiquíssima e idêntica,

Noite Rainha nascida destronada,

Noite igual por dentro ao silêncio, Noite

Com as estrelas lantejoulas rápidas

No teu vestido franjado de Infinito.

Vem, vagamente,

Vem, levemente,

Vem sòzinha, solene, com as mãos caídas

Ao teu lado, vem

E traz os montes longínquos para o pé das árvores

Funde num campo teu todos os campos que vejo,

Faze da montanha um bloco só do teu corpo,

Apaga-lhe todas as diferenças que de longevejo,

Todas as estradas que a sobem,

Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao

Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,

E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,

Na distância imprecisa e vagamente perturbadora,

Na distância sùbitamente impossível de percorrer.

Nossa Senhora

Das coisas impossíveis que procuramos em vão,

Dos sonhos que vêm ter connosco ao crepúsculo, à

Dos propósitos que nos acariciam

Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas,

Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto.

E que doem por sabermos que nunca os realizaremos.

Vem, e embala-nos,

Vem e afaga-nos.

Beija-nos silenciosamente na fronte,

Tão levemente na fronte que não saibamos que nos

Senão por uma diferença na alma.

E um vago soluço partindo melodiosamente

Do antiquíssimo de nós

Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha

Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos

Porque os sabemos fora de relação com o que há na

Vem soleníssima,

Soleníssima e cheia

De uma oculta vontade de soluçar,

Talvez porque a alma é grande e a vida pequena,

E todos os gestos não saem do nosso corpo

E só alcançamos onde o nosso braço chega,

E só vemos até onde chega o nosso olhar.

Vem, dolorosa,

Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos,

Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados,

Mão fresca sobre a testa em febre dos Humildes,

Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados.

Vem, lá do fundo

Do horizonte lívido,

Vem e arranca-me

Do solo de angústia e de inutilidade

Onde vicejo.

Do solo de inquietação e vida-de-mais e falsas-sensações

Donde naturalmente nasci.

Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido,

E entre ervas altas malmequer ensombrado,

Folha a folha lê em mim não sei que sina

E desfolha-me para teu agrado,

Para teu agrado silencioso e fresco.

Uma folha de mim lança para o Norte,

Onde estão as cidades de Hoje cujo ruído amei como a

Outra folha de mim lança para o Sul,

Onde estão os mares e as aventuras que se sonham.

Outra folha minha atira ao Ocidente,

Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,

E há ruídos de grandes máquinas e grandes desertos

Onde as almas se tornam selvagens e a moral não chega.

E a outra, as outras, todas as outras folhas -

Ó oculto tocar-a-rebate dentro em minha alma -

Atira ao Oriente,

Ao Oriente donde vem tudo, o dia e a fé,

Ao Oriente pomposo e fanático e quente,

Ao Oriente excessivo que eu nunca verei,

Ao Oriente budista, bramanista, xintoísta,

Ao Oriente que tudo o que nós não temos,

Que tudo o que nós não somos,

Ao Oriente onde - quem sabe? - Cristo talvez ainda

Onde Deus talvez exista com corpo e mandando tudo...

Vem sobre os mares,

Sobre os mares maiores,

Sobre os mares semhorizontes precisos,

Vem e passa a mão pelo seu dorso de fera,

E acalma-o misteriosamente,

Ó domadora hipnótica das coisas que se agitam muito!

Vem, cuidadosa,

Vem, maternal,

Pé ante pé enfermeira antiquíssima, que te sentaste

À cabeceira dos deuses das fés já perdidas,

E que viste nascer Jeová e Júpiter,

E sorriste porque tudo te é falso, salvo a treva e o silêncio,

E o grande Espaço Misterioso para além deles...

Vem, Noite silenciosa e extática,

Vem envolver na noite manto branco

O meu coração...

Serenamente como uma brisa na tarde lenta,

Tranquilamente com um gesto materno afagando.

Com as estrelas luzindo(ó Mascarada do Além!)

Pó de ouro no teu cabelo negro,

E o quarto minguante máscara misteriosa sobre a tua

Todos os sons soam de outra maneira

Quando tu vens.

Quando tu entras baixam todas as vozes,

Ninguém te vê entrar.

Ninguém sabe quando entraste,

Senão de repente, vendo que tudo se recolhe,

Que tudo perde as arestas e as cores,

E que no alto céu ainda claramente azul e branco no

Já crescente nítido, ou círculo amarelento, ou mera

A lua começa o seu dia.

II

Ah o crepúsculo, o cair da noite, o acender das luzes

E a mão de mistério que abafa o bulício,

E o cansaço de tudo em nós que nos corrompe

Para uma sensação exacta e activa da Vida!

Cada rua é um canal de uma Veneza de tédios

E que misterioso o fundo unânime das ruas,

Das ruas ao cair da noite, ó Cesário Verde, ó Mestre,

Ó do "Sentimento de um Ocidental"!

Que inquietação profunda, que desejo de outras coisas,

Que nem são países, nem momentos, nem vidas,

Que desejo talvez de outros modos de estados de alma

Humedece inferiormente o instante lento e longínquo!

Um horror sonâmbulo entre luzes que se acendem,

Um pavor terno e líquido, encostado às esquinas

Como um mendigo de sensações impossíveis

Que não sabe quem lhas possa dar...

Quando eu morrer,

Quando me for, hirto e diferente como toda a gente,

Ignóbil por fora, e por dentro quem sabe que outro-ser,

Por aquele caminho cuja ideia se não pode encarar de

Por aquela porta a que, se pudéssemos assomar, não

Para aquele porto que o capitão do Navio não conhece,

Seja por esta hora condigna dos tédios que tive,

Por esta hora mística e espiritual e antiquíssima,

Por esta hora em que talvez, há muito mais tempo do

Platão sonhando viu a ideia de Deus

Esculpir corpo e existência nìtidamente plausível.

Dentro do seu pensamento exteriorizado como um

Seja por esta hora que me leveis a enterrar,

Por esta hora que eu não sei como viver,

Em que não sei que sensações ter ou fingirque tenho,

Por esta hora cuja misericórdia é torturada e excessiva,

Cujas sombras vêm de qualquer outra coisa que não as

Cuja passagem não roça vestes no chão da Vida Sensível

Nem deixa perfume nos caminhos do Olhar.

Cruza as mãos sobre o joelho, ó companheira que

Cruza as mãos sobre o joelho e olha-me em silêncio

A esta hora em que eu não posso ver que tu me olhas,

Olha-me em silêncio e em segredo e pergunta a ti

- Tu que me conheces - quem eu sou...

Como eu desejaria ser parte da noite,

Parte sem contornos da noite, um lugar qualquer no

Não propriamente um lugar, por não ter posição nem

Mas noite na noite, uma parte dela, pertencendo-lhe

E unido e afastado companheiro da minha ausência de

Chove muito, chove excessivamente...

Chove e de vez em quando faz um vento frio...

Estou triste, muito triste, como se eu fosse o dia...

Num dia no meu futuro em que chova assim também

E eu, à janela, de repente me lembre do dia de hoje,

Pensarei eu "ah, nesse tempo eu era mais feliz"

Ou pensarei "ah, que tempo triste foi aquele"!

Ah, meu Deus, eu que pensarei deste dia nesse dia

E o que serei, e que farei; o que me será o passado que

O ar está mais desagasalhado, mais frio, mais triste

E há uma grande dúvida de chumbo no meu coração...

ODE MARÍTIMA

Sòzinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,

Olho prò lado da barra, olho prò Indefinido,

Olho e contenta-me ver,

Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.

Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.

Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.

Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,

Aqui, acolá, acorda a vida marítima,

Erguem-se velas, avançam rebocadores,

Surgem barcos pequenos detrás dos navios que estão

Há uma vaga brisa.

Mas a minh'alma está com o que vejo menos.

Com o paquete que entra,

Porque ele está com a Distância, com a Manhã,

Com o sentido marítimo desta Hora,

Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma

Como um começar a enjoar, mas no espírito.

Olho de longe o paquete, com uma grande

E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.

Os paquetes que entram de manhã na barra

Trazem aos meus olhos consigo

O mistério alegre e triste de quem chega e parte.

Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos

Doutro modo da mesma humanidade noutros portos.

Todo o atracar, todo o largar de navio,

É -sinto-o em mim como o meu sangue -

Inconscientemente simbólico, terrìvelmente

Ameaçador de significações metafísicas

Que perturbam em mim quem eu fui...

Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!

E quando o navio larga do cais

E se repara de repente que se abriu um espaço

Entre o cais e o navio,

Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,

Uma névoa de sentimentos de tristeza

Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas

Como a primeira janela onde a madrugada bate,

E me envolve com uma recordação duma outra pessoa

Que fosse misteriosamente minha.

Ah, quem sabe, quem sabe,

Se não parti outrora, antes de mim,

Dum cais; se não deixei, navio ao sol

Oblíquo da madrugada,

Uma outra espécie de porto?

Quem sabe se não deixei, antes de a hora

Do mundo exterior como eu o vejo

Raiar-se para mim,

Um grande cais cheio de pouca gente,

Duma grande cidade meio-desperta,

Duma enorme cidade comercial, crescida, apopléctica,

Tanto quanto isso pode ser fora do Espaço e do Tempo?

Sim, dum cais, dum cais dalgum modo material,

Real, visível como cais, cais realmente,

O Cais Absoluto por cujo modelo inconscientemente

Insensìvelmente evocado,

Nós os homens construímos

Os nossos cais nos nossos portos,

Os nossos cais de pedra actual sobre água verdadeira,

Que depois de construídos se anunciam de repente

Coisas-Reais, Espíritos-Coisas, Entidades em

A certos momentos nossos de sentimento-raiz

Quando no mundo-exterior como que se abre uma porta

E, sem que nada se altere,

Tudo se revela diverso.

Ah o Grande Cais donde partimos em Navios-Nações!

O Grande Cais Anterior, eterno e divino!

De que porto? Em que águas? E porque penso eu isto?

Grandes Cais como os outros cais, mas o Único.

Cheio como eles de silêncios rumorosos nas antemanhãs,

E desabrochando com as manhãs num ruído de

E chegadas de comboios de mercadorias,

E sob a nuvem negra e ocasional e leve

Do fundo das chaminés das fábricas próximas

Que lhe sombreia o chão preto de carvão pequenino

Como se fosse a sombra duma nuvem que passasse

Ah, que essencialidade de mistério e sentido parados

Em divino êxtase revelador

Às horas cor de silêncios e angústias

Não é ponte entre qualquer cais e O Cais!

Cais negramente reflectido nas águas paradas,

Bulício a bordo dos navios,

Ó alma errante e instável da gente que anda embarcada,

Da gente simbólica que passa e com quem nada dura,

Que quando o navio volta ao porto

Há sempre qualquer alteração a bordo!

Ó fugas contínuas, idas, ebriedade do Diverso!

Alma eterna dos navegadores e das navegações!

Cascos reflectidos devagar nas águas,

Quando o navio larga do porto!

Flutuar como alma da vida, partir como voz,

Viver o momento trèmulamente sobre águas eternas.

Acordar para dias mais directos que os dias da Europa,

Ver portos misteriosos sobre a solidão do mar,

Virar caboslongínquos para súbitas vastas paisagens

Por inumeráveis encostas atónitas...

Ah, as praias longínquas, os cais vistos de longe,

E depois as praias próximas, os cais vistos de perto.

O mistério de cada ida e de cada chegada,

A dolorosa instabilidade e incompreensibilidade

Deste impossível universo

A cada hora marítima mais na própria pele sentido!

O soluço absurdo que as nossas almas derramam

Sobre as extensões de mares diferentes com ilhas ao

Sobre as ilhas longínquas das costas deixadas passar,

Sobre o crescer nítido dos portos, com as suas casas e a

Para o navio que se aproxima.

Ah, a frescura das manhãs em que se chega,

E a palidez das manhãs em que se parte,

Quando as nossas entranhas se arrepanham

E uma vaga sensação parecida com um medo

- O medo ancestral de se afastar e partir,

O misterioso receio ancestral à Chegada e ao Novo -

Encolhe-nos a pele e agonia-nos,

E todo o nosso corpo angustiado sente,

Como se fosse a nossa alma,

Uma inexplicável vontade de poder sentir isto doutra

Uma saudade a qualquer coisa,

Uma perturbação de afeições a que vaga pátria?

A que costa? a que navio? a que cais?

Que se adoece em nós o pensamento,

E só fica um grande vácuo dentro de nós,

Uma oca saciedade de minutos marítimos,

E uma ansiedade vaga que seria tédio ou dor

Se soubesse como sê-lo...

A manhã de Verão está, ainda assim, um pouco fresca.

Um leve torpor de noite anda ainda no ar sacudido.

Acelera-se ligeiramente o volante dentro de mim.

E o paquete vem entrando, porque deve vir entrando

E não porque eu o veja mover-se na sua distância

Na minha imaginação ele está já perto e é visível

Em toda a extensão das linhas das suas vigias.

E treme em mim tudo, toda a carne e toda a pele,

Por causa daquela criatura que nunca chega em

E eu vim esperar hoje ao cais, por um mandado

Os navios que entram a barra,

Os navios que saem dos portos,

Os navios que passam ao longe

(Suponho-me vendo-os duma praia deserta) -

Todos estes navios abstractos quase na sua ida,

Todos estes navios assim comovem-me como se

E não apenas navios, navios indo e vindo.

E os navios vistos de perto, mesmo que se não vá

Vistos de baixo, dos botes, muralhas altas de chapas,

Vistos dentro, através das câmaras, das salas, das

Olhando de perto os mastros, afilando-se lá prò alto,

Roçando pelas cordas, descendo as escadas incòmodas,

Cheirando a untada mistura metálica e marítima de

Os navios vistos de perto são outra coisa e a mesma

Dão a mesma saudade e a mesma ânsia doutra maneira.

Toda a vida marítima! tudo navida marítima!

Insinua-se no meu sangue toda essa sedução fina

E eu cismo indeterminadamente as viagens.

Ah, as linhas das costas distantes, achatadas pelo

Ah, os cabos, as ilhas, as praias areentas!

As solidões marítimas como certos momentos no

Em que não sei por que sugestão aprendida na escola

Se sente pesar sobre os nervos o facto de que aquele é o

E o mundo e o sabor das coisas tornam-se um deserto

A extensão mais humana, mais salpicada, do Atlântico!

O Índico, o mais misterioso dos oceanos todos!

O Mediterrâneo, doce, sem mistério nenhum, clássico,

De encontro a esplanadas olhadas de jardins próximos

Todos os mares, todos os estreitos, todas as baías, todos

Queria apertá-los ao peito, senti-los bem e morrer!

E vós, ó coisas navais, meus velhos brinquedos de sonho!

Componde fora de mim a minha vida interior!

Quilhas, mastros e velas, rodas do leme, cordagens,

Chaminés de vapores, hélices, gáveas, flâmulas,

Galdropes, escotilhas, caldeiras, colectores, válvulas;

Caí, por mim dentro em montão, em monte,

Como o conteúdo confuso de uma gaveta despejada

Sede vós o tesouro da minha avareza febril,

Sede vós os frutos da árvore da minha imaginação,

Tema de cantos meus, sangue nas veias da minha

Vosso seja o laço que me une ao exterior pela estética.

Fornecei-me metáforas imagens, literatura,

Porque em real verdade, a sério, literalmente,

Minhas sensações são um barco de quilha prò ar,

Minha imaginação uma âncora meio submersa,

Minha ânsia um remo partido,

E a tessitura dos meus nervos uma rede a secar na praia!

Soa no acaso do rio um apito, só um.

Treme já todo o chão do meu psiquismo.

Acelera-se cada vez mais o volante dentro de mim.

Ah, os paquetes, as viagens, o não-se-saber-o-paradeiro

De Fulano-de-tal, marítimo, nosso conhecido!

Ah, a glória de se saber que um homem que andava

Morreu afogado ao pé duma ilha do Pacífico!

Nós que andámos com ele vamos falar nisso a todos.

Com um orgulho legítimo, com uma confiança invisível

Em que tudo isso tenha um sentido mais belo e mais

Que apenas o ter-se perdido o barco onde ele ia

E ele ter ido ao fundo por lhe ter entrado água pròs

Ah, os paquetes, os navios-carvoeiros, os navios de vela!

Vão rareando - ai de mim! - os navios de vela nos mares!

E eu, que amo a civilização moderna, eu que beijo com

Eu o engenheiro, eu o civilizado, eu o educado no

Gostaria de ter outra vez ao pé da minha vista só

De não saber doutra vida marítima que a antiga vida

Porque os mares antigos são a Distância Absoluta,

O Puro Longe, liberto do peso do Actual...

Eah, como aqui tudo me lembra essa vida melhor,

Esses mares, maiores, porque se navegava mais devagar.

Esses mares, misteriosos, porque se sabia menos deles.

Todo o vapor ao longe é um barco de vela perto.

Todo o navio distante visto agora é um navio no

Todos os marinheiros invisíveis a bordo dos navios no

São os marinheiros visíveis do tempo dos velhos navios,

Da época lenta e veleira das navegações perigosas,

Da época de madeira e lona das viagens que duravam

Toma-me pouco a pouco o delírio das coisas marítimas,

Penetram-me fìsicamente o cais e a sua atmosfera,

O marulho do Tejo galga-me por cima dos sentidos,

E começo a sonhar, começo a envolver-me do sonho

Começam a pegar bem as correias-de-transmissão na

minh'alma

E a aceleração do volante sacode-me nìtidamente.

Chamam por mim as águas,

Chamam por mim os mares,

Chamam por mim, levantando uma voz corpórea, os

As épocas marítimas todas sentidas no passado, a chamar.

Tu, marinheiro inglês, Jim Barns meu amigo, foste tu

Que me ensinaste esse grito antiquíssimo, inglês,

Que tão venenosamente resume

Para as almas complexas como a minha

O chamamento confuso das águas,

A voz inédita e implícita de todas as coisas do mar,

Dos naufrágios, das viagens longínquas, das travessias

Esse teu grito inglês, tornado universal no meu sangue,

Sem feitio de grito, sem forma humana nem voz.

Esse grito tremendo que parece soar

De dentro duma caverna cuja abóbada é o céu

E parece narrar todas as sinistras coisas

Que podem acontecer no Longe, no Mar, pela Noite...

(Fingias sempre que era por uma escuna que chamavas,

E dizias assim, pondo uma mão de cada lado da boca,

Fazendo porta-voz das grandes mãos curtidas e escuras:

Ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò - yyy...

Schooner ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò - yyyy...)

Escuto-te de aqui, agora, e desperto a qualquer coisa.

Estremece o vento. Sobe a manhã. O calor abre.

Sinto corarem-me as faces.

Meus olhos conscientes dilatam-se.

O êxtase em mim levanta-se, cresce, avança,

E com um ruído cego de arruaça acentua-se

O giro vivo do volante.

Ó clamoroso chamamento

A cujo calor, a cuja fúria fervem em mim

Numa unidade explosiva todas as minhas ânsias,

Meus próprios tédios tornados dinâmicos, todos!...

Apelo lançado ao meu sangue

Dum amor passado, não sei onde, que volve

E ainda tem força para me atrair e puxar,

Que ainda tem força para me fazer odiar esta vida

Que passo entre a impenetrabilidade física e psíquica

Da gente real com que vivo!

Ah seja como for, seja por onde for, partir!

Largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar.

Ir para Longe, ir para Fora, para a Distância Abstracta,

Indefinidamente, pelas noites misteriosas e fundas,

Levado, como a poeira, plos ventos, plos vendavais!

Ir, ir, ir, ir de vez!

Todo o meu sangue raiva por asas!

Todoo meu corpo atira-se prà frente!

Galgo pla minha imaginação fora em torrentes!

Atropelo-me, rujo, precipito-me!...

Estoiram em espuma as minhas ânsias

E a minha carne é uma onda dando de encontro a

Pensando nisto - ó raiva! pensando nisto - ó fúria!

Pensando nesta estreiteza da minha vida cheia de ânsias,

Sùbitamente, trèmulamente, extraorbitadamente,

Com uma oscilação viciosa, vasta, violenta,

Do volante vivo da minha imaginação,

Rompe, por mim, assobiando, silvando, vertiginando,

O cio sombrio e sádico da estrídula vida marítima.

Eh marinheiros, gajeiros! eh tripulantes, pilotos!

Navegadores, mareantes, marujos, aventureiros!

Eh capitães de navios! homens ao leme e em mastros!

Homens que dormem em beliches rudes!

Homens que dormem co'o Perigo a espreitar plas vigias!

Homens que dormem co'a Morte por travesseiro!

Homens que têm tombadilhos, que têm pontes donde

A imensidade imensa do mar imenso!

Eh manipuladores dos guindastes de carga!

Eh amainadores de velas, fogueiros, criados de bordo!

Homens que metem a carga nos porões!

Homens que enrolam cabos no convés!

Homens que limpam os metais das escotilhas!

Homens do leme! homens das máquinas! homens dos

Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!

Gente de boné de pala! Gente de camisola de malha!

Gente de âncoras e bandeiras cruzadas bordadas no

Gente tatuada! gente de cachimbo! gente de amurada!

Gente escura de tanto sol, crestada de tanta chuva,

Limpa de olhos de tanta imensidade diante deles,

Audaz de rosto de tantos ventos que lhes bateram a

Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!

Homens que vistes a Patagónia!

Homens que passastes pela Austrália!

Que enchestes o vosso olhar de costas que nunca verei!

Que fostes a terra em terras onde nunca descerei!

Que comprastes artigos toscos em colónias à proa de

E fizestes tudo isso como se não fosse nada!

Como se isso fosse natural,

Como se a vida fosse isso,

Como nem sequer cumprindo um destino!

Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!

Homens do mar actual! homens do mar passado!

Comissários de bordo! escravos das galés!

Piratas do tempo de Roma! Navegadores da Grécia!

Fenícios! Cartagineses! Portugueses atirados de Sagres

Para a aventura indefinida, para o Mar Absoluto, para

Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!

Homens que erguestes padrões, que destes nomes a

Homens que negociastes pela primeira vez com pretos!

Que primeiro vendestes escravos de novas terras!

Que destes o primeiro espasmo europeu às negras

Que trouxestes ouro, missanga, madeiras cheirosas, setas,

De encostas explodindo em verde vegetação!

Homens que saqueastes tranquilas povoações africanas,

Que fizestes fugir com o ruído de canhões essas raças,

Que matastes, roubastes, torturastes, ganhastes

Os prêmios de Novidade de quem, de cabeça baixa

Arremete contra o mistério de novos mares!

A vós todos num, a vós todos em vós todos como um,

A vós todos misturados, entrecruzados,

A vós todos sangrentos, violentos, odiados, temidos,

Eu vos saúdo, eu vos saúdo, eu vos saúdo!

Eh-eh-eh-eh eh! Eh eh-eh-eh eh! Eh-eh-eh eh-eh-eh eh!

Eh lahô-lahô laHO-lahá-á-á-à-à!

Quero ir convosco, quero ir convosco,

Ao mesmotempo com vós todos

Pra toda a parte pr'onde fostes!

Quero encontrar vossos perigos frente a frente,

Sentir na minha cara os ventos que engelharam as vossas,

Cuspir dos lábios o sal dos mares que beijaram os vossos,

Ter braços na vossa faina, partilhar das vossas tormentas,

Chegar como vós, enfim, a extraordinários portos!

Fugir convosco à civilização!

Perder convosco a noção da moral!

Sentir mudar-se no longe a minha humanidade!

Beber convosco em mares do sul

Novas selvajarias, novas balbúrdias da alma,

Novos fogos centrais no meu vulcânico espírito!

Ir convosco, despir de mim - ah! põe-te daqui pra fora! -

O meu traje de civilizado, a minha brandura de acções,

Meu medo inato das cadeias,

Minha pacífica vida,

A minha vida sentada, estática, regrada e revista!

No mar, no mar, no mar, no mar,

Eh! pôr no mar, ao vento, às vagas,

A minha vida!

Salgar de espuma arremessada pelos ventos

Meu paladar das grandes viagens.

Fustigar de água chicoteante as carnes da minha

Repassar de frios oceânicos os ossos da minha existência,

Flagelar, cortar, engelhar de ventos, de espumas, de sóis,

Meu ser ciclónico e atlântico,

Meus nervos postos como enxárcias,

Lira nas mãos dos ventos!

Sim, sim, sim... Crucificai-me nas navegações

E as minhas espáduas gozarão a minha cruz!

Atai-me às viagens como a postes

E a sensação dos postes entrará pela minha espinha

E eu passarei a senti-los num vasto espasmo passivo!

Fazei o que quiserdes de mim, logo que seja nos mares,

Sobre conveses, ao som de vagas,

Que me rasgueis, mateis, firais!

O que quero é levar prà Morte

Uma alma a transbordar de Mar,

Ébria a cair das coisas marítimas,

Tanto dos marujos como das âncoras, dos cabos,

Tanto das costas longínquas como do ruído dos ventos,

Tanto do Longe como do Cais, tanto dos naufrágios

Como dos tranquilos comércios,

Tanto dos mastros como das vagas,

Levar prà Morte com dor, voluptuosamente,

Um corpo cheio de sanguessugas, a sugar, a sugar,

De estranhas verdes absurdas sanguessugas marítimas!

Façam enxárcias das minhas veias!

Amarras dos meus músculos!

Arranquem-me a pele, preguem-a às quilhas.

E possa eu sentir a dor dos pregos e nunca deixar de

Façam do meu coração uma flâmula de almirante

Na hora de guerra dos velhos navios!

Calquem aos pés nos conveses meus olhos arrancados!

Quebrem-me os ossos de encontro às amuradas!

Fustiguem-me atado aos mastros, fustiguem-me!

A todos os ventos de todas as latitudes e longitudes

Derramem meu sangue sobre as águas arremessadas

Que atravessam o navio, o tombadilho, de lado a lado.

Nas vascas bravas das tormentas!

Ter a audácia ao vento dos panos das velas!

Ser, como as gáveas altas, o assobio dos ventos!

A velha guitarra do Fado dos mares cheios de perigos,

Canção para os navegadores ouvirem e não repetirem!

Os marinheiros que se sublevaram

Enforcaram o capitão numa verga.

Desembarcaram um outro numa ilhadeserta.

Marooned!

O sol dos trópicos pôs a febre da pirataria antiga

Nas minhas veias intensivas.

Os ventos da Patagónia tatuaram a minha imaginação

De imagens trágicas e obscenas.

Fogo, fogo, fogo, dentro de mim!

Sangue! sangue! sangue! sangue!

Explode todo o meu cérebro!

Parte-se-me o mundo em vermelho!

Estoiram-me com o som de amarras as veias!

E estala em mim, feroz, voraz,

A canção do Grande Pirata,

A morte berrada do Grande Pirata a cantar

Até meter pavor plas espinhas dos seus homens abaixo.

Lá da ré a morrer, e a berrar, a cantar:

Fifteen men on the Dead Man's Chest.

Yo-ho ho and a bottle of rum!

E depois a gritar, numa voz já irreal, a estoirar no ar:

Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw!

Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw!

Fetch a-a-aft the ru-u-u-u-u-u-u-u-u-um, Darby,

Eia, que vida essa! essa era a vida, eia!

Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!

Eh-lahô-lahô-laHO-lahá-á-á-à-à!

Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!

Quilhas partidas, navios ao fundo, sangue nos mares!

Conveses cheios de sangue, fragmentos de corpos!

Dedos decepados sobre amuradas!

Cabeças de crianças, aqui, acolá!

Gente de olhos fora, a gritar, a uivar!

Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!

Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!

Embrulho-me em tudo isto como uma capa no frio!

Roço-me por tudo isto como uma gata com cio por

Rujo como um leão faminto para tudo isto!

Arremeto como um toiro louco sobre tudo isto!

Cravo unhas, parto garras, sangro dos dentes sobre isto!

Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!

De repente estala-me sobre os ouvidos,

Como um clarim a meu lado,

O velho grito, mas agora irado, metálico,

Chamando a presa que se avista,

A escuna que vai ser tomada:

Ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó - yyyy...

Schooner ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó - yyy......

O mundo inteiro não existe para mim! Ardo vermelho!

Rujo na fúria da abordagem!

Pirata-mor! César-Pirata!

Pilho, mato, esfacelo, rasgo!

Só sinto o mar, a presa, o saque!

Só sinto em mim bater, baterem-me

As veias das minhas fontes!

Escorre sangue quente a minha sensação dos meus

Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!

Ah piratas, piratas, piratas!

Piratas, amai-me e odiai-me!

Misturai-me convosco, piratas!

Vossa fúria, vossa crueldade como falam ao sangue

Dum corpo de mulher que foi meu outrora e cujo cio

Eu queria ser um bicho representativo de todos os

Um bicho que cravasse dentes nas amuradas, nas quilhas

Que comesse mastros, bebesse sangue e alcatrão nos

Trincasse velas, remos, cordame e poleame,

Serpente do mar feminina e monstruosa cevando-se

E há uma sinfonia de sensações incompatíveis e análogas.

Há uma orquestração no meu sangue de balbúrdias de

De estrépitos espasmados de orgias de sangue nos mares,

Furibundamente, como um vendaval de calor pelo

Nuvem de poeira quente anuviando a minha lucidez

E fazendo-me ver e sonhar isto tudo só com a pele e as

Os piratas, a pirataria, os barcos, a hora,

Aquela hora marítima em que as presas são assaltadas

E o terror dos apresados foge prà loucura - essa hora,

No seu total de crimes, terror, barcos, gente, mar, céu,

Brisa, latitude, longitude, vozearia,

Queria eu que fosse em seu Todo meu corpo em seu

Que fossemeu corpo e meu sangue, compusesse meu

Florescesse como uma ferida comichando na carne

Ah, ser tudo nos crimes! ser todos os elementos

Dos assaltos aos barcos e das chacinas e das violações!

Ser quanto foi no lugar dos saques!

Ser quanto viveu ou jazeu no local das tragédias de

Ser o pirata-resumo de toda a pirataria no seu auge,

E a vítima-síntese, mas de carne e osso, de todos os

Ser o meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres

Que foram violadas, mortas, feridas, rasgadas pelos

Ser no meu ser subjugado a fêmea que tem de ser deles

E sentir tudo isso - todas estas coisas duma só vez -

Ó meus peludos e rudes heróis da aventura e do crime!

Minhas marítimas feras, maridos da minha imaginação!

Amantes casuais da obliquidade das minhas sensações!

Queria ser Aquela que vos esperasse nos portos,

A vós, odiados amados do seu sangue de pirata nos

Porque ela teria convosco, mas só em espírito, raivado

Sobre os cadáveres nus das vítimas que fazeis no mar!

Porque ela teria acompanhado vosso crime, e na orgia

Seu espírito de bruxa dançaria invisível em volta dos

Dos vossos corpos, dos vossos cutelos, das vossas mãos

E ela em terra, esperando-vos, quando viésseis, se

Iria beber nos rugidos do vosso amor todo o vasto,

Todo o nevoento e sinistro perfume das vossas vitórias,

E através dos vossos espasmos silvaria um sabbat de

A carne rasgada, a carne aberta e estripada, o sangue

Agora, no auge conciso de sonhar o que vós fazíeis,

Perco-me todo de mim, já não vos pertenço, sou vós,

A minha femininidade que vos acompanha é ser as

Estar por dentro de toda a vossa ferocidade, quando a

Sugar por dentro a vossa consciência das vossas

Quando tingíeis de sangue os mares altos,

Quando de vez em quando atiráveis aos tubarões

Os corpos vivos ainda dos feridos, a carne rosada das

E leváveis as mães às amuradas para verem o que lhes

Estar convosco na carnagem, na pilhagem!

Estar orquestrado convosco na sinfonia dos saques!

Ah, não sei quê, não sei quanto queria eu ser de vós!

Não era só ser-vos a fêmea, ser-vos as fêmeas, ser-vos

Ser-vos as vítimas - homens, mulheres, crianças,

Não era só ser a hora e os barcos e as ondas,

Não era só ser vossas almas, vossos corpos, vossa fúria,

Não era só ser concretamente vosso acto abstracto de

Não era só isto que eu queria ser - era mais que isto o

Era preciso ser Deus, o Deus dum culto ao contrário,

Um Deus monstruoso e satânico, um Deus dum

Para poder encher toda a medida daminha fúria

Para poder nunca esgotar os meus desejos de identidade

Com o cada, e o tudo, e o mais-que-tudo das vossas

Ah, torturai-me para me curardes!

Minha carne - fazei dela o ar que os vossos cutelos

Antes de caírem sobre as cabeças e os ombros!

Minhas veias sejam os fatos que as facas trespassam!

Minha imaginação o corpo das mulheres que violais!

Minha inteligência o convés onde estais de pé matando!

Minha vida toda, no seu conjunto nervoso, histérico,

O grande organismo de que cada ato de pirataria que

Fosse uma célula consciente - e todo eu turbilhonasse

Como uma imensa podridão ondeando, e fosse aquilo

Com tal velocidade desmedida, pavorosa,

A máquina de febre das minhas visões transbordantes

Gira agora que a minha consciência, volante,

É apenas um nevoento círculo assobiando no ar.

Fifteen men on the Dead Man's Chest.

Yo-ho ho and a bottle of rum!

Eh-lahô-lahô-laHO - lahá-á-ááá - ààà...

Ah! a selvajaria desta selvajaria! Merda

Pra toda a vida como a nossa, que não é nada disto!

Eu prà'qui engenheiro, prático à força, sensível a tudo,

Pr' àqui parado, em relação a vós, mesmo quando ando;

Mesmo quando ajo, inerte; mesmo quando me

Estático, quebrado, dissidente cobarde da vossa Glória,

Da vossa grande dinâmica estridente, quente e sangrenta!

Arre! por não poder agir de acordo com o meu delírio!

Arre! por andar sempre agarrado às saias da civilização!

Por andar com a douceur des moeurs às costas, como

Moços de esquina - todos nós o somos - do

Estupores de tísicos, de neurasténicos, de linfáticos,

Sem coragem para ser gente com violência e audácia,

Com a alma como uma galinha presa por uma perna!

Ah, os piratas! os piratas!

A ânsia do ilegal unido ao feroz,

A ânsia das coisas absolutamente cruéis e abomináveis,

Que rói como um cio abstracto os nossos corpos

Os nossos nervos femininos e delicados,

E põe grandes febres loucas nos nossos olhares vazios!

Obrigai-me a ajoelhar diante de vós!

Humilhai-me e batei-me!

Fazei de mim o vosso escravo e a vossa coisa!

E que o vosso desprezo por mim nunca me abandone,

Ó meus senhores! ó meus senhores!

Tomar sempre gloriosamente a parte submissa

Nos acontecimentos de sangue e nas sensualidades

Desabai sobre mim, como grandes muros pesados,

Ó bárbaros do antigo mar!

Rasgai-me e feri-me!

De leste a oeste do meu corpo

Riscai de sangue a minha carne!

Beijai com cutelos de bordo e açoites e raiva

O meu alegre terror carnal de vos pertencer.

A minha ânsia masoquista em me dar à vossa fúria,

Em ser objecto inerte e sentiente da vossa omnívora

Dominadores, senhores, imperadores, corcéis!

Ah, torturai-me,

Rasgai-me e abri-me!

Desfeito em pedaços conscientes

Entornai-me sobre os conveses,

Espalhai-me nos mares, deixai-me

Nas praias ávidas das ilhas!

Cevai sobre mim todo o meu misticismo devós!

Cinzelai a sangue a minh'alma

Cortai, riscai!

Ó tatuadores da minha imaginação corpórea!

Esfoladores amados da minha carnal submissão!

Submetei-me como quem mata um cão a pontapés!

Fazei de mim o poço para o vosso desprezo de domínio!

Fazei de mim as vossas vítimas todas!

Como Cristo sofreu por todos os homens, quero sofrer

Por todas as vossas vítimas às vossas mãos,

Às vossas mãos calosas, sangrentas e de dedos decepados

Nos assaltos bruscos de amuradas!

Fazei de mim qualquer cousa como se eu fosse

Arrastado - ó prazer, ó beijada dor! -

Arrastado à cauda de cavalos chicoteados por vós...

Mas isto no mar, isto no ma-a-a-ar, isto no MA-A-A-AR!

Eh-eh-eh-eh-eh! Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!

Yeh eh-eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh-eh!

Grita tudo! tudo a gritar! ventos, vagas, barcos,

Marés, gáveas, piratas, a minha alma, o sangue, e o ar, e

Eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh-eh!

FIFTEEN MEN ON THE DEAD MAN'S CHEST.

YO-HO-HO AND A BOTTLE OF RUM!

Eh-eh eh-eh-eh-eh-eh! Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!

Eh-lahô-lahô-laHO-O-O-ôô-lahá-á á - ààà!

AHÓ-Ó-Ó Ó Ó Ó-Ó Ó Ó Ó Ó - yyy!...

SCHOONER AHÓ-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó - yyyy!..

Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw-aw!

DARBY M'GRAW-AW AW-AW-AW-AW-AW!

FETCH A-A-AFT THE RU-U-U-U-U-UM, DARBY!

Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh eh-eh-eh!

EH-EH EH-EH-EH EH-EH-EH-EH EH-EH-EH!

EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH EH EH-EH!

EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH!

EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH!

Parte-se em mim qualquer coisa. O vermelho anoiteceu.

Senti demais para poder continuar a sentir.

Esgotou-se-me a alma, ficou só um eco dentro de mim.

Decresce sensìvelmente a velocidade do volante.

Tiram-me um pouco as mãos dos olhos os meus sonhos.

Dentro de mim há um só vácuo, um deserto, um mar

E logo que sinto que há um mar nocturno dentro de

Sabe dos longes dele, nasce do seu silêncio,

Outra vez, outra vez o vasto grito antiquíssimo.

De repente, como um relâmpago de som, que não faz

Sùbitamente abrangendo todo o horizonte marítimo

Húmido e sombrio marulho humano nocturno,

Voz de sereia longínqua chorando, chamando,

Vem do fundo do Longe, do fundo do Mar, da alma

E à tona dele, como algas, boiam meus sonhos desfeitos...

Ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò - yy...

Schooner ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò - yy...

Ah, o orvalho sobre a minha excitação!

O frescor nocturno no meu oceano interior!

Eis tudo em mim de repente ante uma noite no mar

Cheia de enorme mistério humaníssimo das ondas

A lua sobe no horizonte

E a minha infância feliz acorda, como uma lágrima,

O meu passado ressurge, como se esse grito marítimo

Fosse um aroma, uma voz, o eco duma canção

Que fosse chamar ao meu passado

Por aquela felicidade que nunca mais tornarei a ter.

Era na velha casa sossegada ao pé do rio...

(As janelas do meu quarto, e as da casa-de-jantar

Davam, por sobre umas casas baixas, para o rio próximo,

Para o Tejo, este mesmo Tejo, mas noutro ponto, mais

Se eu agora chegasse às mesmas janelas não chegava às

Aquele tempo passou como o fumo dum vapor no mar

Uma inexplicável ternura,

Umremorso comovido e lacrimoso,

Por todas aquelas vítimas - principalmente as crianças -

Que sonhei fazendo ao sonhar-me pirata antigo,

Emoção comovida, porque elas foram minhas vítimas;

Terna e suave, porque não o foram realmente;

Uma ternura confusa, como um vidro embaciado,

Canta velhas canções na minha pobre alma dolorida.

Ah, como pude eu pensar, sonhar aquelas coisas?

Que longe estou do que fui há uns momentos!

Histeria das sensações - ora estas, ora as opostas!

Na loura manhã que se ergue, como o meu ouvido só

As cousas de acordo com esta emoção - o marulho das

O marulho leve das águas do rio de encontro aos cais...,

A vela passando perto do outro lado do rio,

Os montes longínquos, dum azul japonês,

As casas de Almada,

E o que há de suavidade e de infância na hora

Uma gaivota que passa,

E a minha ternura é maior.

Mas todo este tempo não estive a reparar para nada.

Tudo isto foi uma impressão só da pele, como uma

Todo este tempo não tirei os olhos do meu sonho

Da minha casa ao pé do rio,

Da minha infância ao pé do rio,

Das janelas do meu quarto dando para o rio de noite,

E a paz do luar esparso nas águas!...

Minha velha tia, que me amava por causa do filho que

Minha velha tia costumava adormecer-me cantando-me

(Se bem que eu fosse já crescido demais para isso)...

Lembro-me e as lágrimas caem sobre o meu coração e

E ergue-me uma leve brisa marítima dentro de mim.

Às vezes ela cantava a "Nau Catrineta":

Lá vai a Nau Catrineta

Por sobre as águas do mar...

E outras vezes, numa melodia muito saudosa e tão

Era a "Bela Infanta"... Relembro, e a pobre velha voz

E lembra-me que pouco me lembrei dela depois, e ela

Como fui ingrato para ela - e afinal que fiz eu da vida?

Era a "Bela Infanta"... Eu fechava os olhos, e ela cantava:

Estando a Bela Infanta

No seu jardim assentada...

Eu abria um pouco os olhos e via a janela cheia de luar

E depois fechava os olhos outra vez, e em tudo isto era

Estando a Bela Infanta

No seu jardim assentada,

Seu pente de ouro na mão,

Seus cabelos penteava

Ó meu passado de infância, boneco que me partiram!

Não poder viajar pra o passado, para aquela casa e

E ficar lá sempre, sempre criança e sempre contente!

Mas tudo isto foi o Passado, lanterna a uma esquina de

Pensar isto faz frio, faz fome duma cousa que se não

Dá-me não sei que remorso absurdo pensar nisto.

Oh turbilhão lento de sensações desencontradas!

Vertigem ténue de confusas coisas na alma!

Fúrias partidas, ternuras como carrinhos de linha com

Grandes desabamentos de imaginação sobreos olhos

Lágrimas, lágrimas inúteis,

Leves brisas de contradição roçando pela face a alma...

Evoco, por um esforço voluntário, para sair desta emoção,

Evoco, com um esforço desesperado, seco, nulo,

A canção do Grande Pirata, quando estava a morrer;

Fifteen men on the Dead Man's Chest.

Yo-ho-ho and a bottle of rum!

Mas a canção é uma linha recta mal traçada dentro de

Esforço-me e consigo chamar outra vez ante os meus

Outra vez, mas através duma imaginação quase literária,

A fúria da pirataria, da chacina, o apetite, quase o

Da chacina inútil de mulheres e de crianças,

Da tortura fútil, e só para nos distrairmos, dos

E a sensualidade de escangalhar e partir as coisas mais

Mas sonho isto tudo com um medo de qualquer coisa

Lembro-me de que seria interessante

Enforcar os filhos à vista das mães

(Mas sinto-me sem querer as mães deles),

Enterrar vivas nas ilhas desertas as crianças de quatro

Levando os pais em barcos até lá para verem

(Mas estremeço, lembrando-me dum filho que não

Aguilhoo uma ânsia fria dos crimes marítimos,

Duma inquisição sem a desculpa da Fé,

Crimes nem sequer com razão de ser de maldade e de

Feitos a frio, nem sequer para ferir, nem sequer para

Nem sequer para nos divertirmos, mas apenas para passar o tempo, como quem faz paciências a uma mesa de jantar de província com a toalha atirada pra o outro lado da mesa depois de jantar,

Só pelo suave gosto de cometer crimes abomináveis e

De ver sofrer até ao ponto da loucura e da

Mas a minha imaginação recusa-se a acompanhar-me.

Um calafrio arrepia-me.

E de repente, mais de repente do que da outra vez, de

De repente - oh pavor por todas as minhas veias! -,

Oh frio repentino da porta para o Mistério que se abriu

Lembro-me de Deus, do Transcendental da vida, e de

A velha voz do marinheiro inglês Jim Barns com quem

Tornada voz das ternuras misteriosas dentro de mim, das pequenas coisas de regaço de mãe e de fita de cabelo de irmã,

Mas estupendamente vinda de além da aparência das

A Voz surda e remota tornada A Voz Absoluta, a Voz

Vinda de sobre e de dentro da solidão noturna dos

Chama por mim, chama por mim, chama por mim...

Vem surdamente, como se fosse suprimida e se ouvisse,

Longìnquamente, como se estivesse soando noutro

Como um soluço abafado, uma luz que se apaga,um

De nenhum lado do espaço, de nenhum local no tempo,

O grito eterno e nocturno, o sopro fundo e confuso:

Ahô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô - yyy... ...

Ahô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô - - yyy... ...

Schooner ah-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô - - yy... ... ...

Tremo com frio da alma repassando-me o corpo

E abro de repente os olhos, que não tinha fechado.

Ah, que alegria a de sair dos sonhos de vez!

Eis outra vez o mundo real, tão bondoso para os nervos!

Ei-lo a esta hora matutina em que entram os paquetes

Já não me importa o paquete que entrava. Ainda está

Só o que está perto agora me lava a alma.

A minha imaginação higiénica, forte, prática,

Preocupa-se agora apenas com as coisas modernas e

Com os navios de carga, com os paquetes e os

Com as fortes coisas imediatas, modernas, comerciais,

Abranda o seu giro dentro de mim o volante.

Maravilhosa vida marítima moderna,

Toda limpeza, máquinas e saúde!

Tudo tão bem arranjado, tão espontaneamente ajustado,

Todas as peças das máquinas, todos os navios pelos

Todos os elementos da actividade comercial de

Tão maravilhosamente combinando-se

Que corre tudo como se fosse por leis naturais,

Nenhuma coisa esbarrando com outra!

Nada perdeu a poesia. E agora há a mais as máquinas

Com a sua poesia também, e todo o novo género de vida

Comercial, mundana, intelectual, sentimental,

Que a era das máquinas veio trazer para as almas.

As viagens agora são tão belas como eram dantes

E um navio será sempre belo, só porque é um navio.

Viajar ainda é viajar e o longe está sempre onde esteve -

Em parte nenhuma, graças a Deus!

Os portos cheios de vapores de muitas espécies!

Pequenos, grandes, de várias cores, com várias

De tão deliciosamente tantas companhias de navegação!

Vapores nos portos, tão individuais na separação

Tão prazenteiro o seu garbo quieto de cousas

No velho mar sempre o homérico, ó Ulisses!

O olhar humanitário dos faróis na distância da noite,

Ou o súbito farol próximo na noite muito escura

("Que perto da terra que estávamos passando!" E o som

Tudo isto hoje é como sempre foi, mas há o comércio;

E o destino comercial dos grandes vapores

Envaidece-me da minha época!

A mistura de gente a bordo dos navios de passageiros

Dá-me o orgulho moderno de viver numa época onde

Misturarem-se as raças, transporem-se os espaços, ver

E gozar a vida realizando um grande número de sonhos.

Limpos, regulares, modernos como um escritório com

Meus sentimentos agora, naturais e comedidos como

São práticos, longe de desvairamentos, enchem de ar

Como gente perfeitamente consciente de como é

O dia é perfeitamentejá de horas de trabalho.

Começa tudo a movimentar-se, a regularizar-se.

Com um grande prazer natural e directo percorro a alma

Todas as operações comerciais necessárias a um

A minha época é o carimbo que levam todas as facturas,

E sinto que todas as cartas de todos os escritórios

Deviam ser endereçadas a mim.

Um conhecimento de bordo tem tanta individualidade,

E uma assinatura de comandante de navio é tão bela e

Rigor comercial do princípio e do fim das cartas:

Dear Sirs - Messieurs - Amigos e Srs.,

Yours faithfully - ...nos salutations empressées...

Tudo isto não é só humano e limpo, mas também belo,

E tem ao fim um destino marítimo, um vapor onde

As mercadorias de que as cartas e as facturas tratam.

Complexidade da vida! As facturas são feitas por gente

Que tem amores, ódios, paixões políticas, às vezes

E são tão bem escritas, tão alinhadas, tão independentes

Há quem olhe para uma factura e não sinta isto.

Com certeza que tu, Cesário Verde, o sentias.

Eu é até às lágrimas que o sinto humanìssimamente.

Venham dizer-me que não há poesia no comércio, nos

Ora, ela entra por todos os poros... Neste ar marítimo

Por tudo isto vem a propósito dos vapores, da navegação

Porque as facturas e as cartas comerciais são o princípio

E os navios que levam as mercadorias pelo mar eterno

Ah, e as viagens, as viagens de recreio, e as outras,

As viagens por mar, onde todos somos companheiros

Duma maneira especial, como se um mistério marítimo

Nos aproximasse as almas e nos tornasse um momento

Patriotas transitórios duma mesma pátria incerta,

Eternamente deslocando-se sobre a imensidade das

Grandes hotéis do Infinito, oh transatlânticos meus!

Com o cosmopolitismo perfeito e total de nunca

E conterem todas as espécies de trajes, de caras, de raças!

As viagens, os viajantes - tantas espécies deles!

Tanta nacionalidade sobre o mundo! tanta profissão!

Tanto destino diverso que se pode dar à vida,

À vida, afinal, no fundo sempre, sempre a mesma!

Tantas caras curiosas! Todas as caras são curiosas

E nada traz tanta religiosidade como olhar muito para

A fraternidade afinal não é uma ideia revolucionária.

É uma coisa que a gente aprende pela vida fora, onde

E passa a achar graça ao que tem que tolerar,

E acaba quase a chorar de ternura sobre o que tolerou!

Ah, tudo isto é belo, tudo isto é humano e anda ligado

Aos sentimentos humanos, tão conviventes e burgueses.

Tão complicadamente simples, tão metafìsicamente

A vida flutuante, diversa, acaba por nos educar no

Pobre gente! pobre gente toda a gente!

Despeço-me desta hora no corpo deste outro navio

Que vai agora saindo. É um tramp-steamer inglês,

Muito sujo, como se fosse umnavio francês,

Com um ar simpático de proletário dos mares,

E sem dúvida anunciado ontem na última página das

Enternece-me o pobre vapor, tão humilde vai ele e tão

Parece ter um certo escrúpulo não sei em quê, ser

Cumpridora duma qualquer espécie de deveres.

Lá vai ele deixando o lugar defronte do cais onde estou.

Lá vai ele tranquilamente, passando por onde as naus

Outrora, outrora...

Para Cardiff? Para Liverpool? Para Londres? Não tem

Ele faz o seu dever. Assim façamos nós o nosso. Bela

Boa viagem! Boa viagem!

Boa viagem, meu pobre amigo casual, que me fizeste o

De levar contigo a febre e a tristeza dos meus sonhos,

E restituir-me à vida para olhar para ti e te ver passar.

Boa viagem! Boa viagem! A vida é isto...

Que aprumo tão natural, tão inevitàvelmente matutino

Na tua saída do porto de Lisboa, hoje!

Tenho-te uma afeição curiosa e grata por isso...

Por isso quê? Sei lá o que é!... Vai... Passa...

Com um ligeiro estremecimento,

(T-t-t - t - - t - - - t...)

O volante dentro de mim pára.

Passa, lento vapor, passa e não fiques...

Passa de mim, passa da minha vista,

Vai-te de dentro do meu coração,

Perde-te no Longe, no Longe, bruma de Deus,

Perde-te, segue o teu destino e deixa-me...

Eu quem sou para que chore e interrogue?

Eu quem sou para que te fale e te ame?

Eu quem sou para que me perturbe ver-te?

Larga do cais, cresce o sol, ergue-se ouro,

Luzem os telhados dos edifícios do cais,

Todo o lado de cá da cidade brilha...

Parte, deixa-me, torna-te

Primeiro o navio a meio do rio, destacado e nítido,

Depois o navio a caminho da barra, pequeno e preto,

Depois ponto vago no horizonte(ó minha angústia!),

Ponto cada vez mais vago no horizonte...,

Nada depois, e só eu e a minha tristeza,

E a grande cidade agora cheia de sol

E a hora real e nua como um cais já sem navios,

E o giro lento do guindaste que, como um compasso

Traça um semicírculo de não sei que emoção

No silêncio comovido da minh'alma...

Os mortos! Que prodigiosamente

E com que horrível reminiscência

Vivem na nossa recordação deles!

A minha velha tia na sua antiga casa, no campo

Onde eu era feliz e tranquilo e a criança que eu era...

Penso nisso e uma saudade toda raiva repassa-me

E, além disso, penso, ela já morreu há anos...

Tudo isto, vendo bem, é misterioso como um

Penso, e todo o enigma do universo repassa-me...

Revejo aquilo na imaginação com tal realidade

Que depois, quando penso que aquilo acabou

E que ela está morta,

Encaro com o mistério mais palidamente

Vejo-o mais escuro, mais impiedoso, mais longínquo

E nem choro,de atento que estou ao terror da vida...

Aquilo era tão real, tão vivo, tão actual!...

Quando em mim o revejo, está outra vez vivo em mim

Pasmo de que cousa tão real pudesse passar...

E não existir hoje e hoje ser tão diversa...

Corre para o mar a água do rio, abandona a minha vista,

Chega ao mar e perde-se no mar,

Mas a água perde-se de si-própria?

Uma cousa deixa de ser o que é absolutamente

Ou pecam de vida os nossos olhos e os nossos ouvidos

E a nossa consciência exterior do Universo?

Onde está hoje o meu passado?

Em que baú o guardou Deus que não sei dar com ele?

Quando o revejo em mim, onde é que o estou vendo?

Tudo isto deve ter um sentido - talvez muito simples -

Mas por mais que pense não atino com ele.

Ah, os primeiros minutos nos cafés de novas cidades!

A chegada pela manhã a cais ou a gares

Cheios de um silêncio repousado e claro!

Os primeiros passantes nas ruas das cidades a que se

E o som especial que o correr das horas tem nas

Os ómnibus ou os eléctricos ou os automóveis...

O novo aspecto das ruas de novas terras...

A paz que parecem ter para a nossa dor

O bulício alegre para a nossa tristeza

A falta de monotonia para o nosso coração cansado!...

As praças nitidamente quadradas e grandes,

As ruas com as casas que se aproximam ao fim,

As ruas transversais revelando súbitos interesses,

E através disto tudo, como uma coisa que inunda e

O movimento, o movimento

Rápida coisa colorida e humana que passa e fica...

Os portos com navios parados,

Excessivamente navios parados,

Com barcos pequenos ao pé, esperando...

Através do ruído do café cheio de gente

Chega-me a brisa que passa pelo convés

Nas longas viagens, no alto mar, no verão

Perto dos trópicos(no amontoado nocturno do navio -

Sacudido regularmente pela hélice palpitante -

Vejo passar os uniformes brancos dos oficiais de bordo).

E essa brisa traz um ruído de mar-alto, pluromar

E a nossa civilização não pertence à minha reminiscência.

. Marooned: Abandonado em costa deserta. VOLTAR

. Quinze homens sobre o Peito do Homem Morto / Yo-ho ho e uma garrafa de rum! VOLTAR

. Chega depois do rum, Darby. VOLTAR.

. Vampiro. VOLTAR

. Doçura dos hábitos.(N.E.) VOLTAR.

. Seu - nossas cordiais saudações. VOLTAR.

. Barco a vapor.(N.E.) VOLTAR.

. Publicada na revista Orpheu, no 2, abril-maio-junho de 1915. Como a "Ode Triunfal", a "Ode Marítima" possui estilo e ritmo febril, consequência da aproximação de Campos ao Futurismo. Ele exalta a vida e seus perigos. Observe-se o forte simbolismo da viagem marítima, com tudo o que representa de descobertas, perigos e exaltação dos sentidos. A vida,para Campos, é um grande jogo de apostas, onde o que

realmente conta é a intensidade das sensações, é por meio delas que se revelam o caos e o corpo, e, inclusive, um sentido animalesco e sadomasoquista. É o "sentir tudo de todas as maneiras" que faz do poeta agressor e vítima. VOLTAR

. Cleonice Berardinelli considera que daqui em diante inicia outro poema. Considera, também, até este verso, um texto suplementar à "Ode Marítima". VOLTAR.

SAUDAÇÃO A WALT WHITMAN

Portugal-Infinito, onze de Junho de mil novecentos

Hé-lá-á-á-á-á-á-á!

De aqui de Portugal, todas as épocas no meu cérebro,

Saúdo-te, Walt, saúdo-te, meu irmão em Universo,

Eu, de monóculo e casaco exageradamente cintado,

Não sou indigno de ti, bem o sabes, Walt,

Não sou indigno de ti, basta saudar-te para o não ser...

Eu tão contíguo à inércia, tão facilmente cheio de tédio,

Sou dos teus, tu bem sabes, e compreendo-te e amo-te,

E embora te não conhecesse, nascido pelo ano em que

Sei que me amaste também, que me conheceste, e

Sei que me conheceste, que me contemplaste e me

Sei que é isso que eu sou, quer em Brooklyn Ferry dez

Quer pela rua do Ouro acima pensando em tudo que

E conforme tu sentiste tudo, sinto tudo, e cá estamos

De mãos dadas, Walt, de mãos dadas, dançando o

Ó sempre moderno e eterno, cantor dos concretos

Concubina fogosa do universo disperso,

Grande pederasta roçando-te contra a diversidade das

Sexualizado pelas pedras, pelas árvores, pelas pessoas,

Cio das passagens, dos encontros casuais, das meras

Meu entusiasta pelo conteúdo de tudo,

Meu grande herói entrando pela Morte dentro aos

E aos urros, e aos guinchos, e aos berros saudando Deus!

Cantor da fraternidade feroz e terna com tudo,

Grande democrata epidérmico, contíguo a tudo em

Carnaval de todas as acções, bacanal de todos os

Irmão gémeo de todos os arrancos,

Jean-Jacques Rousseau do mundo que havia de

Homero do insaisissable do flutuante carnal,

Shakespeare da sensação que começa a andar a vapor,

Milton-Shelley do horizonte da Electricidade futura!

Íncubo de todos os gestos,

Espasmo pra dentro de todos os objectos-força,

Souteneur de todo o Universo,

Rameira de todos os sistemas solares...

Quantas vezes eu beijo o teu retrato!

Lá onde estás agora(não sei onde é mas é Deus)

Sentes isto, sei que o sentes, e os meus beijos são mais

E tu assim é que os queres, meu velho, e agradeces de

Sei-o bem, qualquer coisa mo diz, um agrado no meu

Uma erecção abstracta e indirecta no fundo da minha

Nada do engageant em ti, mas ciclópico e musculoso,

Mas perante o Universo atua atitude era de mulher,

E cada erva, cada pedra, cada homem era para ti o

Meu velho Walt, meu grande Camarada, evohé!

Pertenço à tua orgia báquica de sensações-em-liberdade,

Sou dos teus, desde a sensação dos meus pés até à

Sou dos teus, olha pra mim, de aí desde Deus vês-me

De dentro para fora... Meu corpo é o que adivinhas,

Essa vês tu pròpriamente e através dos olhos dela o

Olha pra mim: tu sabes que eu, Álvaro de Campos,

Poeta sensacionista,

Não sou teu discípulo, não sou teu amigo, não sou teu

Tu sabes que eu sou Tu e estás contente com isso!

Nunca posso ler os teus versos a fio... Há ali sentir

Atravesso os teus versos como uma multidão aos

E cheira-me a suor, a óleos, a actividade humana e

Nos teus versos, a certa altura não sei se leio ou se vivo,

Não sei se o meu lugar real é no mundo ou nos teus

Não sei se estou aqui, de pé sobre a terra natural,

Ou de cabeça pra baixo, pendurado numa espécie de

No tecto natural da tua inspiração de tropel,

No centro do tecto da tua intensidade inacessível.

Abram-me todas as portas!

Por força que hei-de passar!

Minha senha? Walt Whitman!

Mas não dou senha nenhuma...

Passo sem explicações...

Se for preciso meto dentro as portas...

Sim - eu, franzino e civilizado, meto dentro as portas,

Porque neste momento não sou franzino nem civilizado,

Sou EU, um universo pensante de carne e osso,

E que há-de passar por força, porque quando quero

Tirem esse lixo da minha frente!

Metam-me em gavetas essas emoções!

Daqui pra fora, políticos, literatos,

Comerciantes pacatos, polícia, meretrizes, souteneurs,

Tudo isso é a letra que mata, não o espírito que dá a

O espírito que dá a vida neste momento sou EU!

Que nenhum filho da puta se me atravesse no caminho!

O meu caminho é pelo infinito fora até chegar ao fim!

Se sou capaz de chegar ao fim ou não, não é contigo,

É comigo, com Deus, com o sentido - eu da palavra

Prà frente!

Meto esporas!

Sinto as esporas, sou o próprio cavalo em que monto,

Porque eu, por minha vontade de me consubstanciar

Posso ser tudo, ou posso ser nada, ou qualquer coisa,

Conforme me der na gana... Ninguém tem nada com

Loucura furiosa! Vontade de ganir, de saltar,

De urrar, zurrar, dar pulos, pinotes, gritos com o corpo,

De me cramponner às rodas dos veículos e meter por

De me meter adiante do giro do chicote que vai bater,

De ser a cadela de todos os cães e eles não bastam,

De ser o volante detodas as máquinas e a velocidade

De ser o esmagado, o deixado, o deslocado, o acabado,

Dança comigo, Walt, lá do outro mundo, esta fúria,

Salta comigo neste batuque que esbarra com os astros,

Cai comigo sem forças no chão,

Esbarra comigo tonto nas paredes,

Parte-te e esfrangalha-te comigo

Em tudo, por tudo, à roda de tudo, sem tudo,

Raiva abstracta do corpo fazendo maelstrons na alma...

Arre! Vamos lá prà frente!

Se o próprio Deus impede, vamos lá prà frente... Não

Vamos lá prà frente sem ser para parte nenhuma...

Infinito! Universo! Meta sem meta! Que importa?

(Deixa-me tirar a gravata e desabotoar o colarinho.

Não se pode ter muita energia com a civilização à roda

Agora, sim, partamos, vá lá prà frente.

Numa grande marche aux flambeaux-todas-as

Numa grande marcha guerreira a indústria, o

Numa grande corrida, numa grande subida, numa

Estrondeando, pulando e tudo pulando comigo,

Salto a saudar-te,

Berro a saudar-te,

Desencadeio-me a saudar-te, aos pinotes, aos pinos, aos

Por isso é a ti que endereço

Meus versos soltos, meus versos pulos, meus versas

Os meus versos-ataques-histéricos,

Os meus versos que arrastam o carro dos meus nervos.

Aos trambolhões me inspiro,

Mal podendo respirar, ter-me de pé me exalto,

E os meus versos são eu não poder estoirar de viver.

Abram-me todas as janelas!

Arranquem-me todas as portas!

Puxem a casa toda para cima de mim!

Quero viver em liberdade no ar,

Quero ter gestos fora do meu corpo,

Quero correr como a chuva pelas paredes abaixo,

Quero ser pisado nas estradas largas como as pedras,

Quero ir, como as coisas pesadas, para o fundo dos

Com uma voluptuosidade que já está longe de mim!

Não quero fechos nas portas!

Não quero fechaduras nos cofres!

Quero intercalar-me, imiscuir-me, ser levado,

Quero que me façam pertença doída de qualquer outro,

Que me despejem dos caixotes,

Que me atirem aos mares,

Que me vão buscar a casa com fins obscenos,

Só para não estar sempre aqui sentado e quieto,

Só para não estar simplesmente escrevendo estes versos!

Não quero intervalos no mundo!

Quero a contiguidade penetrada e material dos

Quero que os corpos físicos sejam uns dos outros como

Não só dinâmicamente, mas estàticamente também!

Quero voar e cair de muito alto!

Ser arremessado como uma granada!

Ir parar a... Ser levado até..

Abstracto auge no fim de mim e de tudo!

Clímax a ferro e motores!

Escadaria pela velocidade acima, sem degraus!

Bomba hidráulica desancorando-me as entranhas

Ponham-me grilhetas só para eu as partir!

Só para eu as partir com os dentes, e que os dentes

Gozo masoquista, espasmódico a sangue, da vida!

Os marinheiros levaram-me preso,

As mãos apertaram-me no escuro,

Morri temporàriamente de senti-lo,

Seguiu-se a minh'alma a lamber o chão do cárcere

E a cegarrega das impossibilidades contornando o meu

Pula, salta, toma o freionos dentes,

Pégaso-ferro-em-brasa das minhas ânsias inquietas,

Paradeiro indeciso do meu destino a motores!

He calls Walt:

Porta pra tudo!

Ponte pra tudo!

Estrada pra tudo!

Tua alma omnívora,

Tua alma ave, peixe, fera, homem, mulher.

Tua alma os dois onde estão dois,

Tua alma o um que são dois quando dois são um,

Tua alma seta, raio, espaço,

Amplexo, nexo, sexo, Texas, Carolina, New-York,

Brooklyn Ferry à tarde,

Brooklyn Ferry das idas e dos regressos,

Libertad! Democracy! Século vinte ao longe!

Pum! pum! pum! pum! pum!

PUM!

Tu, o que eras, tu o que vias, tu o que ouvias,

O sujeito e o objecto, o activo e o passivo,

Aqui e ali, em toda a parte tu,

Círculo fechando todas as possibilidades de sentir,

Marco miliário de todas as coisas que podem ser,

Deus Termo de todos os objectos que se imaginem e és tu!

Tu Hora,

Tu Minuto,

Tu Segundo!

Tu intercalado, liberto, desfraldado, ido,

Intercalamento, libertação, ida, desfraldamento,

Tu intercalador, libertador, desfraldador, remetente,

Carimbo em todas as cartas,

Nome em todos os endereços,

Mercadoria entregue, devolvida, seguindo...

Comboio de sensações a alma-quilómetro à hora,

À hora, ao minuto, ao segundo, PUM!

Agora que estou quase na morte e vejo tudo já claro.

Grande Libertador, volto submisso a ti.

Sem dúvida teve um fim a minha personalidade.

Sem dúvida porque se exprimiu, quis dizer qualquer

Mas hoje, olhando para trás, só uma ânsia me fica -

Não ter tido a tua calma superior a ti-próprio,

A tua libertação constelada de Noite Infinita.

Não tive talvez missão alguma na terra.

Heia que eu vou chamar

Ao privilégio ruidoso e ensurdecedor de saudar-te

Todo o formilhamento humano do Universo,

Todos os modos de todas as emoções,

Todos os feitios de todos os pensamentos,

Todas as rodas, todos os volantes, todos os êmbolos da

Heia que eu grito

E num cortejo de Mim até ti estardalhaçam

Com uma algaravia metafísica e real,

Com um chinfrim de coisas passado por dentro sem nexo.

Ave, salve, viva ó grande bastardo de Apolo,

Amante impotente e fogoso das nove musas e das graças,

Funicular do Olímpio até nós e de nós ao Olimpo.

. O poema é dedicado a Walt Whitman(1819-1892), poeta responsável por um conjunto de ideias e sentimentos voltados para a união, satisfação e realização humanas. Crítico realista e contundente da sociedade, provocou a ira do público e da crítica. Seu livro Folhas de relva hoje é tido como a mais famosa obra poética da literatura americana. VOLTAR

. Intangível.(N.E.) VOLTAR

. Sustentador.(N.E.) VOLTAR.

. Engageant: característica daquilo que liga a um compromisso. VOLTAR.

. Poeta que pertence ao Sensacionismo, "ismo" português criado por Fernando Pessoa, baseado no princípio de que não existe a realidade, tudo o que existe são as nossas sensações. O Sensacionismo, junto com o Paulismo e o Interseccionismos, movimentos também criadospor Pessoa, modificam todo o código poético português. VOLTAR

. Agarrar. VOLTAR

. Tempestades. VOLTAR

. Marcha com tochas. VOLTAR.

. Ele grita para Walt. VOLTAR

. Especialmente com "Ode triunfal", com "Ode marítima" e "A passagem das horas", a "Saudação a Walt Whitman" constitui a fase futurista de Campos. Além da homenagem ao poeta americano e de referir a seu homossexualismo(e não esqueçamos que Campos é a "mulher" da família heteronímica), o poema traz a própria concepção de mundo e da criação poética do heterônimo, baseada na sensação e na volúpia de liberdade. De Whitman, Campos herda a oralidade e a prosificação dos poemas. Cleonice Berardinelli, em Poemas de Álvaro de Campos, traz uma outra ordenação do poema.

Variantes: 20o verso - Sexualizado sobre as pedras, pelas árvores, pelas pessoas, pelas profissões.

37o verso - Não sou teu discípulo, não sou teu amante, não sou teu cantor, VOLTAR.

WALT WHITMAN

Onde não sou o primeiro, prefiro não ser nada, não

Onde não posso agir o primeiro, prefiro só ver agir os

Onde não posso mandar, antes quero nem obedecer.

Excessivo na ânsia de tudo, tão excessivo que nem falo,

E não falo, porque não tento.

"Ou Tudo ou Nada", tem um sentido pessoal para mim.

Mas ser universal - não o posso, porque sou particular.

Não posso ser todos, porque sou Um, um só, só eu.

Não posso ser o primeiro em qualquer cousa, porque

Prefiro por isso o nada de ser apenas eu sem ser nada.

Quando é que parte o último comboio, Walt?

Quero deixar esta cidade, a Terra,

Quero emergir de vez deste país, Eu,

Deixar o mundo com o que se comprova falido,

Como um caixeiro viajante que vende navios a

O fim a motores partidos!

Que foi todo o meu ser? Uma grande ânsia inútil -

Estéril realização com um destino impossível -

Máquina de louco para realizar o motu-continuo,

Theorema de absurdo para a quadratura do círculo,

Travessia a nado do Atlântico, falando na margem de cá

Antes da entrada na água, só com eles e o cálculo,

Atirar de pedras à lua,

Ânsia absurda do encontro dos paralelos Deus-vida.

Megalomania dos nervos,

Ânsia de elasticidade do corpo duro,

Raiva de meu concreto ser por não ser o auge-eixo

O carro da sensualidade de entusiasmo abstracto

O vácuo dinâmico do mundo!

Vamo-nos embora de Ser.

Larguemos de vez, definitivamente, a aldeia-Vida

O arrabalde-Mundo de Deus

E entremos na cidade à aventura, ao rasgo

Ao auge, loucamente ao Ir...

Larguemos de vez.

Quando parte, Walt, o último comboio p'ra ahi?

Que Deus fui para as minhas saudades serem estas ânsias?

Talvez partindo regresse.

Talvez acabando, chegue,

Quem sabe? Qualquer hora é a hora. Partamos,

Vamos! A estada tarda. Partir é ter ido.

Partamos para onde se fique.

Ó estrada para não-haver-estradas!

Terminusno Não-Parar!

. O poema, assim como os oito próximos, pertence ao ciclo de Odes a Walt Whitman. Cleonice Berardinelli os coloca, entre outros, como textos suplementares à "Saudação a Walt Whitman". VOLTAR.

SAUDAÇÃO

Um comboio de criança movido a corda, puxado a cordel

Tem mais movimento real do que os nossos versos...

Os nossos versos que não têm rodas

Os nossos versos que não se deslocam

Os nossos versos que, nunca lidos, não saem para fora

(Estou farto - farto da vida, farto da arte -,

Farto de não ter cousas, a menos ou a medo -

Raboleva da minha respiração chegando a minha vida,

Fantoche absurdo de feira da minha ideia de mim.

Quando é que parte o último comboio?)

Sei que cantar-te assim não é cantar-te - mas que

Sei que é cantar tudo, mas cantar tudo é cantar-te,

Sei que é cantar-me a mim - mas cantar-me a mim é cantar-te a ti

Sei que dizer que não posso cantar é cantar-te, Walt,

SAUDAÇÃO

Heia? Heia o quê e por quê?

O que tiro eu de heia! ou de qualquer cousa,

Que valha pensar em heia!

Decadentes, meu velho, decadentes é que nós somos...

No fundo de cada um de nós há uma Bisâncio a arder,

E nem sinto as chamas e nem sinto Bisâncio

Mas o Império finda nas nossas veias aguadas

E a Poesia foi a da nossa incompetência para agir...

Tu, cantador de profissões enérgicas, Tu o Poeta do

Tu, músculo da inspiração, com musas masculinas por

Tu, afinal, inocente em viva histeria,

Afinal apenas "acariciador da vida",

Mole ocioso, paneleiro pelo menos na intenção,

- Bem... isso era contigo - mas onde é que aí está a Vida?

Eu, engenheiro como profissão, farto de tudo e de todos,

Eu, exageradamente supérfluo, guerreando as cousas

Eu, inútil, gasto, improfícuo, pretensioso e amoral,

Boia das minhas sensações desgarradas pelo temporal,

Âncora do meu navio já quebrada pr'ó fundo

Eu feito cantor da Vida e da Força - acreditas?

Eu, como tu, enérgico, salutar, nos versos -

E afinal sincero como tu, ardendo em ter toda a

No cérebro explosivo e sem diques,

Na inteligência mestra e dinâmica,

Na sensualidade carimbo, projector, marca, cheque

Pra que diabo vivemos, e fazemos versos?

Raios partam a mandriice que nos faz poetas,

A depressão que nos engana artistas,

O tédio fundamental que nos pretende enérgicos e

Quando o que queremos é distrair-nos, dar-nos ideia

Porque nada fazemos e nada somos, a vida corre-nos

Vejamos ao menos, Walt, as cousas bem pela verdade...

Bebamos isto como um remédio amargo

E concordemos em mandar à merda o mundo e a vida

Sem quebranto no olhar, e não por desprezo ou aversão

Isto, afinal é saudar-te?

Seja o que for, é saudar-te,

Seja oque valha, é amar-te,

Seja o que calhe, é concordar contigo...

Seja o que for é isto. E tu compreendes, tu gostas,

Tu, a chorar no meu ombro, concordas, meu velho,

(Quando parte o último comboio? -

Vilegiatura em Deus... )

Vamos, confiadamente, vamos...

Isto tudo deve ter um outro sentido

Melhor que viver e ter tudo...

Deve haver um ponto da consciência

Em que a paisagem se transforme

E comece a interessar-nos, a acudir-nos, a sacudir-nos...

Em que comece a haver fresco na alma

E sol e campo nos sentidos despertos.

Seja onde for a Estação, lá nos encontraremos...

Espera-me à porta, Walt; lá estarei...

Lá estarei sem o universo, sem a vida, sem eu-próprio,

E relembraremos, a sós, silenciosos, com a nossa dor

O grande absurdo do mundo, a dura inépcia das cousas

E sentirei, o mistério sentirei tão longe, tão longe, tão

Tão absoluta e abstractamente longe,

Definitivamente longe.

Heia o quê? Heia porquê? Heia para onde?

Heia até onde?

Heia para onde, corcel suposto?

Heia para onde, comboio imaginário?

Heia para onde, seta, pressa, velocidade

Todas só eu a penar por elas.

Todas só eu a não tê-las por todos os meus nervos fora.

Heia pra onde, se não há onde nem como?

Heia pra onde, se estou sempre onde estou e nunca adiante

Nunca adiante, nem sequer atrás,

Mas sempre fatalissimamente no lugar do meu corpo,

Humanissimamente no ponto-pensar da minha alma,

Sempre o mesmo átomo indivisível da personalidade

Heia pra onde tristeza de não realizar o que quero?

Heia pra onde, para quê, o quê, sem o quê?

Heia, heia, heia, mas ó minha incerteza, pra onde?

Não escrever versos, versos, versos a respeito do ferro,

Mas ver, ter, ser o ferro e ser isso os meus versos,

Versos - ferro - versos, círculo material-psíquico-eu.

(quando parte o último comboio?)

Para saudar-te

Para saudar-te como se deve saudar-te

Preciso tornar os meus versos corcel,

Preciso tornar os meus versos comboio,

Preciso tornar os meus versos seta,

Preciso tornar os versos pressa,

Preciso tornar os versos nas cousas do mundo

Tudo cantavas, e em ti cantava tudo -

Tolerância magnífica e prostituída

A das tuas sensações de pernas abertas

Para os detalhes e os contornos do sistema do universo

Abram falência à nossa vitalidade!

Escrevemos versos, cantamos as cousas-falências; não

Como podemos viver todas as vidas e todas as esperas

E todas as formas de formas

E todos os gestos de gestos?

O que é fazer versos senão confessar que a vida não basta

O que é arte senão uma esperança que não é ninguém

Adeus, Walt, adeus!

Adeus até ao indefinido do para além do Fim.

Espera-me, se aí se pode esperar,

Quando parte o último comboio?

Quando parte?(Quando partimos?)

Para cantar-te,

Para saudar-te

Era preciso escrever aquele poema supremo,

Onde, mais que em todosos outros poemas supremos,

Vivesse, numa síntese completa feita de uma análise

Todo o Universo de cousas, de vidas e de almas,

Todo o Universo de homens, mulheres, crianças,

Todo o Universo de gestos, de actos, de emoções, de

Todo o Universo das cousas que a humanidade faz,

Das cousas que acontecem à humanidade -

Profissões, leis, regimentos, medicinas, o Destino,

Escrito a entrecruzamentos, a intersecções constantes

No papel dinâmico dos Acontecimentos,

No papirus rápido das combinações sociais,

No palimpsesto das emoções renovadas constantemente.

O verdadeiro poema moderno é a vida sem poemas,

É o comboio real e não os versos que o cantam

É o ferro dos rails, dos rails quentes, é o ferro das rodas,

E não os meus poemas falando de rails e de rodas sem

Paro, escuto, reconheço-me

O som da minha voz caiu no ar sem vida.

Fiquei o mesmo, tu estás morto, tudo é insensível...

Ó coração por salvar! Quem me salva de ti?

Saudar-te foi um modo de eu querer animar-me,

Para que te saudei sem que me julgue capaz

Da energia viva de saudar alguém!

A FERNANDO PESSOA

Depois de ler o seu drama estático

"O Marinheiro" em "Orpheu I"

Depois de doze minutos

Do seu drama O Marinheiro,

Em que os mais ágeis e astutos

Se sentem com sono e brutos,

E de sentido nem cheiro,

Diz uma das veladoras

Com langorosa magia:

De eterno e belo há apenas o sonho.

Porque estamos nós falando ainda?

Ora isso mesmo é que eu ia

Perguntar a essas senhoras...

. Publicado em Solução Editora, no 4, 1929. O marinheiro é um drama, escrito por Fernando Pessoa, de um único ato. Chama-se "drama estático", porque, nele, não há qualquer movimento. Trata-se de um exercício hipersimbolista realizado por meio do diálogo de três mulheres diante da morta que está sendo velada. Interessante observar, aqui, o diálogo franco existente entre Campos e Pessoa. VOLTAR

PASSAGEM DAS HORAS

Ode sensacionista

A José de Almada-Negreiros

Almada-Negreiros: você não imagina como

eu lhe agradeço o facto de você existir

Álvaro de Campos

I

Sentir tudo de todas as maneiras,

Viver tudo de todos os lados,

Ser a mesma cousa de todos os modos possíveis ao

Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos

Num só momento difuso, profuso, completo e

Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo,

Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo,

Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma

Seja uma flor ou uma ideia abstracta,

Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus.

E eu simpatizo com tudo, vivo de tudo em tudo.

São-me simpáticos os homens superiores porque são

E são-me simpáticos os homens inferiores porque são

Porque ser inferior é diferente de ser superior,

E por isso é uma superioridade a certos momentos de

Simpatizo com alguns homens pelas suas qualidades

E simpatizocom outros pela sua falta dessas qualidades,

E com outros ainda simpatizo por simpatizar com eles,

E há momentos absolutamente orgânicos em que esses

Sim, como sou rei absoluto na minha simpatia,

Basta que ela exista para que tenha razão de ser.

Estreito ao meu peito arfante num abraço comovido

(No mesmo abraço comovido)

O homem que dá a camisa ao pobre que desconhece,

O soldado que morre pela pátria sem saber o que é

E...

E o matricida, o fratricida, o incestuoso, o violador de

O ladrão de estradas, o salteador dos mares,

O gatuno de carteiras, o sombra que espera nas vielas -

Todos são a minha amante predilecta pelo menos um

Beijo na boca todas as prostitutas,

Beijo sobre os olhos todos os souteneurs,

A minha passividade jaz aos pés de todos os assassinos,

E a minha capa à espanhola esconde a retirada a todos

Tudo é a razão de ser da minha vida.

Cometi todos os crimes,

Vivi dentro de todos os crimes

(Eu próprio fui, não um nem o outro no vício,

Mas o próprio vício-pessoa praticado entre eles,

E dessas são as horas mais arco-de-triunfo da minha

Multipliquei-me para me sentir,

Para me sentir, precisei sentir tudo,

Transbordei, não fiz senão extravasar-me,

Despi-me, entreguei-me,

E há em cada canto da minha alma um altar a um deus

Os braços de todos os atletas apertaram-me subitamente

E eu só de pensar nisso desmaiei entre músculos

Foram dados na minha boca os beijos de todos os

Acenaram no meu coração os lenços de todas as

Todos os chamamentos obscenos de gesto e olhares

Batem-me em cheio em todo o corpo com sede nos

Fui todos os ascetas, todos os postos-de-parte, todos os

E todos os pederastas - absolutamente todos(não faltou

Rendez-vous a vermelho e negro no fundo-inferno da

(Freddie, eu chamava-te Baby, porque tu eras louro,

Quantas imperatrizes por reinar e princesas destronadas

Mary, com quem eu lia Burns em dias tristes como

Mary, mal tu sabes quantos casais honestos, quantas

Viveram em ti os meus olhos e o meu braço cingindo e

A sua vida pacata, as suas casas suburbanas com

Mary, eu sou infeliz...

Freddie, eu sou infeliz...

Oh, vós todos, todos vós, casuais, demorados,

Quantas vezes tereis pensado em pensar em mim, sem

Ah, quão pouco eu fui no que sois, quão pouco, quão

Sim, e o que tenho eu sido, ó meu subjectivo universo,

Ó meu sol, meu luar, minhas estrelas, meu momento,

Ó parte externa de mim perdida em labirintos de Deus!)

Passa tudo, todas as cousas num desfile por mim dentro,

E todas as cidades do mundo rumorejam-se dentro de

Meu coraçãotribunal, meu coração mercado, meu

Meu coração rendez-vous de toda a humanidade,

Meu coração banco de jardim público, hospedaria,

("Aqui estuvo el Manolo en vísperas de ir al patíbulo")

Meu coração dub, sala, plateia, capacho, guichet,

Ponte, cancela, excursão, marcha, viagem, leilão, feira,

Meu coração postigo,

Meu coração encomenda,

Meu coração carta, bagagem, satisfação, entrega,

Meu coração a margem, o limite, a súmula, o índice,

Eh-lá, eh-lá, eh-lá, bazar o meu coração.

Trago dentro do meu coração,

Como num cofre que se não pode fechar de cheio,

Todos os lugares onde estive,

Todos os portos a que cheguei,

Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,

Ou de tombadilhos, sonhando,

E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.

A entrada de Singapura, manhã subindo, cor verde,

O coral das Maldivas em passagem cálida,

Macau à uma hora da noite... Acordo de repente...

Yat-lô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô... Ghi - ...

E aquilo soa-me do fundo de uma outra realidade...

A estatura norte-africana quase de Zanzibar ao sol...

Dar-es-Salaam(a saída é difícil)...

Majunga, Nossi-Bé, verduras de Madagascar...

Tempestades em torno ao Guardafui...

E o Cabo da Boa Esperança nítido ao sol da madrugada...

E a Cidade do Cabo com a Montanha da Mesa ao fundo...

Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei...

Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos...

Experimentei mais sensações do que todas as sensações

Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que

E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz.

A certos momentos do dia recordo tudo isto e

Penso em que é que me ficará desta vida aos bocados,

Desta estrada às curvas, deste automóvel à beira da

Desta turbulência tranquila de sensações

Desta transfusão, desta insubsistência, desta convergência

Deste desassossego no fundo de todos os cálices,

Desta angústia no fundo de todos os prazeres,

Desta saciedade antecipada na asa de todas as chávenas,

Deste jogo de cartas fastiento entre o Cabo da Boa

Não sei se a vida é pouco ou de mais para mim.

Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei

Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na

Consanguinidade com o mistério das coisas, choque

Aos contactos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos,

Ou se há outra significação para isto mais cómoda e

Seja o que for, era melhor não ter nascido,

Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,

A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,

A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no

Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas

E irser selvagem para a morte entre árvores e

Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs,

E tudo isto devia ser qualquer outra cousa mais parecida

Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó

Cruzo os braços sobre a mesa, ponho a cabeça sobre os

É preciso querer chorar, mas não sei ir buscar as

Por mais que me esforce por ter uma grande pena de

Tenho a alma rachada sob o indicador curvo que lhe

Que há-de ser de mim? Que há-de ser de mim?

Correram o bobo a chicote do palácio, sem razão,

Fizeram o mendigo levantar-se do degrau onde caíra.

Bateram na criança abandonada e tiraram-lhe o pão

Oh mágoa imensa do mundo, o que falta é agir...

Tão decadente, tão decadente, tão decadente...

Só estou bem quando ouço música, e nem então.

Jardins do século dezoito antes de 89,

Onde estais vós, que eu quero chorar de qualquer

Como um bálsamo que não consola senão pela ideia

A tarde de hoje e de todos os dias pouco a pouco,

Acenderam as luzes, cai a noite, a vida substitui-se.

Seja de que maneira for, é preciso continuar a viver.

Arde-me a alma como se fosse uma mão, fìsicamente.

Estou no caminho de todos e esbarram comigo.

Minha quinta na província,

Haver menos que um comboio, uma diligência e a

Assim fico, fico... Eu sou o que sempre quer partir,

E fica sempre, fica sempre, fica sempre,

Até à morte fica, mesmo que parta, fica, fica, fica...

Torna-me humano, ó noite, torna-me fraterno e

Só humanitàriamente é que se pode viver.

Só amando os homens, as acções, a banalidade dos

Só assim - ai de mim! -, só assim se pode viver.

Só assim, ó noite, e eu nunca poderei ser assim!

Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo,

Mas tudo ou sobrou ou foi pouco - não sei qual - e eu

Vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os

E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e

Amei e odiei como toda a gente,

Mas para toda a gente isso foi normal e instintivo,

E para mim foi sempre a excepção, o choque, a válvula,

Vem, ó noite, e apaga-me, vem e afoga-me em ti.

Ó carinhosa do Além, senhora do luto infinito,

Mágoa externa da Terra, choro silencioso do Mundo.

Mão suave e antiga das emoções sem gesto,

Irmã mais velha, virgem e triste, das ideias sem nexo,

Noiva esperando sempre os nossos propósitos

A direcção constantemente abandonada do nosso

A nossa incerteza pagã sem alegria,

A nossa fraqueza cristã semfé,

O nosso budismo inerte, sem amor pelas coisas nem

A nossa febre, a nossa palidez, a nossa impaciência de

A nossa vida, ó mãe, a nossa perdida vida...

Não sei sentir, não sei ser humano, conviver

De dentro da alma triste com os homens meus irmãos

Não sei ser útil mesmo sentindo, ser prático, ser

Ter um lugar na vida, ter um destino entre os homens

Ter uma obra, uma força, uma vontade, uma horta,

Uma razão para descansar, uma necessidade de me

Uma cousa vinda directamente da natureza para mim.

Por isso sê para mim materna, ó noite tranquila...

Tu, que tiras o mundo ao mundo, tu que és a paz,

Tu que não existes, que és só a ausência da luz,

Tu que não és uma coisa, um lugar, uma essência, uma

Penélope da teia, amanhã desfeita, da tua escuridão,

Circe irreal dos febris, dos angustiados sem causa,

Vem para mim, ó noite, estende para mim as mãos,

E sê frescor e alívio, ó noite, sobre a minha fronte...

Tu, cuja vinda é tão suave que parece um afastamento,

Cujo fluxo e refluxo de treva, quando a lua bafeja,

Tem ondas de carinho morto, frio de mares de sonho,

Brisas de paisagens supostas para a nossa angústia

Tu, palidamente, tu, flébil, tu, liquidamente,

Aroma de morte entre flores, hálito de febre sobre

Tu, rainha, tu, castelã, tu, dona pálida, vem...

Clarim claro da manhã ao fundo

Do semicírculo frio do horizonte,

Ténue clarim longínquo como bandeiras incertas

Desfraldadas para além de onde as cores são visíveis...

Clarim trémulo, poeira parada, onde a noite cessa,

Poeira de ouro parada no fundo da visibilidade...

Carro que chia limpidamente, vapor que apita,

Guindaste que começa a girar no meu ouvido,

Tosse seca, nova do que sai de casa,

Leve arrepio matutino na alegria de viver,

Gargalhada súbita velada pela bruma exterior não sei

Costureira fadada para pior que a manhã que sente,

Operário tísico desfeito para feliz nesta hora

Inevitavelmente vital,

Em que o relevo das cousas é suave, certo e simpático,

Em que os muros são frescos ao contacto da mão, e as

Abrem aqui e ali os olhos cortinados a branco...

Toda a madrugada é uma cortina que oscila,

E refresca ilusões e recordações na minha alma de

No meu coração banido de epidérmico espírito,

No meu cansado e velado

Para a hora cheia de luz em que as lojas baixam as

E rumor tráfego carroça comboio eu sinto sol estruge

Vertigem do meio-dia emoldurada a vertigens -

Sol dos vértices e nos da minha visão estriada,

Do rodopio parado da minha retentiva seca,

Do abrumado clarão fixo da minha consciência de viver.

Rumor tráfego carroça comboio carros eu sinto solrua,

Aros caixotes trolley loja rua vitrines saia olhos

Ràpidamente calhas carroças caixotes rua atravessar rua

Passeio lojistas "perdão" rua

Rua a passear por mim pela rua por mim

Tudo espelhos as lojas de cá dentro das lojas de lá

A velocidade dos carros ao contrário nos espelhos

O chão no ar o sol por baixo dos pés rua regas flores no

O meu passado rua estremece camion rua não me

Eu de cabeça pra baixo no centro da minha consciência

Rua sem poder encontrar uma sensação só de cada vez

Rua pra trás e pra diante debaixo dos meus pés

Rua em X em Y em Z por dentro dos meus braços

Rua pelo meu monóculo em círculos de cinematógrafo

Caleidoscópio em curvas iriadas nítidas rua

Bebedeira da rua e de sentir ver ouvir tudo ao mesmo

Bater das fontes de estar vindo para cá ao mesmo

Viro todos os dias todas as esquinas de todas as ruas,

E sempre que estou pensando numa cousa, estou

Não me subordino senão por atavismo,

E há sempre razões para emigrar para quem não está

Das terrasses de todos os cafés de todas as cidades

Acessíveis à imaginação

Reparo para a vida que passa, sigo-a sem me mexer,

Pertenço-lhe sem tirar um gesto da algibeira,

Nem tomar nota do que vi para depois fingir que o vi.

No automóvel amarelo a mulher definitiva de alguém

Vou ao lado dela sem ela saber.

No trottoir imediato eles encontram-se por um acaso

Mas antes de o encontro deles lá estar já eu estava com

Não há maneira de se esquivarem a encontrar-me, não

O meu privilégio é tudo

(Brevetée, Sans Garantie de Dieu a minh'Alma).

Assisto a tudo e definitivamente.

Não há joia para mulher que não seja comprada por

Não há intenção de estar esperando que não seja minha

Não há resultado de conversa que não seja meu por

Não há toque de sino em Lisboa há trinta anos, noite

Que não seja para mim por uma galantaria deposta.

Fui educado pela Imaginação,

Viajei pela mão dela sempre,

Amei, odiei, falei, pensei sempre por isso,

E todos os dias têm essa janela por diante,

Todas as horas parecem minhas dessa maneira.

Estatelo-me ao comprido em toda a vida

E urro em mim a minha ferocidade de viver...

Não há gestos de prazer pelo mundo que valham

A alegria stupenda de quem não tem outro modo de a

Que rolar-se pelo chão entre ervas e malmequeres

E misturar-se com terra até sujar o fato e o cabelo...

Não há versos que possam dar isto...

Arranquem um de erva, trinquem-ae

Perceberão completamente o que eu incompletamente

Tenho a fúria de ser raiz

A perseguir-me as sensações por dentro como uma

Queria ter todos os sentidos, incluindo a inteligência,

A imaginação e a inibição

À flor da pele para me poder rolar pela terra rugosa

Mais de dentro, sentindo mais rugosidade e

Eu só estaria contente se o meu corpo fora a minha

Assim todos os ventos, todos os sóis, e todas as chuvas

Seriam sentidos por mim do único modo que eu

Não podendo acontecer-me isto, desespero, raivo,

Tenho vontade de poder arrancar à dentada o meu fato

E depois ter pesadas garras de leão para me despedaçar

Até o sangue correr, correr, correr, correr...

Sofro porque tudo isto é absurdo

Como se me tivesse medo alguém,

Com o meu sentimento agressivo para o destino, para

Que nasce de encararmos com o Inefável

E medirmos bem, de repente, a nossa fraqueza e

Todas as madrugadas são a madrugada e a vida.

Todas as auroras raiam no mesmo lugar:

Infinito...

Todas as alegrias de ave vêm da mesma garganta,

Todos os estremecimentos de folhas são da mesma

E todos os que se levantam cedo para ir trabalhar

Vão da mesma casa para a mesma fábrica por o

Rola, bola grande, formigueiro de consciências, terra,

Rola, auroreada, entardecida, a prumo sob sóis,

Rola no espaço abstracto, na noite mal iluminada

Rola e

Sinto na minha cabeça a velocidade do giro da terra,

E todos os países e todas as pessoas giram dentro de

Centrífuga ânsia, raiva de ir por os ares até aos astros

Bate pancadas de encontro ao interior do meu crâneo,

Põe-me alfinetes vendados por toda a consciência do

Faz-me levantar-me mil vezes e dirigir-me para

Para inencontrável, Ali sem restrições nenhumas,

A Meta invisível todos os pontos onde eu não estou, e

Ah, não estar parado nem a andar,

Não estar deitado nem de pé,

Nem acordado nem a dormir,

Nem aqui nem noutro ponto qualquer,

Resolver a equação desta inquietação prolixa,

Saber onde estar para poder estar em toda a parte,

Saber onde deitar-me para estar passeando por todas

Saber onde

Ho-ho-ho-ho-ho-ho-ho

HO-HO-HO-HO-HO-HO-HO

HO-HO-HO-HO-HO-HO-HO

HO-HO-HO-HO-HO-HO-HO

Cavalgada alada de mim por cima de todas as cousas,

Cavalgada estalada de mim por baixo de todas as cousas,

Cavalgada alada e estalada de mim por causa de todas

Hup-la por cima das árvores, hup-la por baixo dos tanques,

Hup-la contra as paredes, hup-la raspando nos troncos,

Hup-la no ar, hup-la no vento, hup-la, hup-la nas praias,

Numa velocidade crescente, insistente, violenta,

Hup-la hup-la hup-la hup-la...

Cavalgada panteísta de mim por dentro de todas as

Cavalgada energética por dentro de todas as energias,

Cavalgada de mim por dentro do carvão que se

De todos os consumos de energia

Cavalgada de mim ampères,

Cavalgada explosiva, explodida,como uma bomba que

Cavalgada rebentando para todos os lados ao mesmo

Cavalgada por cima do espaço, salto por cima do tempo,

Galga, cavalo eléctron - íon -, sistema solar

Por dentro da acção dos êmbolos, por fora do giro dos

Dentro dos êmbolos, tornado velocidade abstracta e

Ajo a ferro e velocidade, vai-vem, loucura, raiva contida,

Atado ao rasto de todos os volantes giro assombrosas

E todo o universo range, estraleja e estropia-se em mim.

Ho-ho-ho-ho-ho...

Cada vez mais depressa, cada vez mais com o espírito

Adiante da própria ideia veloz do corpo projectado,

Com o espírito atrás adiante do corpo, sombra, chispa,

He-la-ho-ho... Helahoho....

Toda a energia é a mesma e toda a natureza é o mesmo...

A seiva da seiva das árvores é a mesma energia que mexe

As rodas da locomotiva, as rodas do eléctrico, os

E um carro puxado a mulas ou a gasolina é puxado

Raiva panteísta de sentir em mim formidandamente,

Com todos os meus sentidos em ebulição, com todos

Que tudo é uma só velocidade, uma só energia, uma só

De si para si, parada a ciciar violências de velocidade

Ho-ho-ho-ho-ho-ho-ho

HO-HO-HO-HO-HO-HO-HO

HO-HO-HO-HO-HO-HO-HO

HO-HO-HO-HO-HO-HO-HO

Ave, salve, viva a unidade veloz de tudo!

Ave, salve, viva a igualdade de tudo em seta!

Ave, salve, viva a grande máquina universo!

Ave, que sois o mesmo, árvores, máquinas, leis,

Ave, que sois o mesmo, vermes, êmbolos, ideias

A mesma seiva vos enche, a mesma seiva vos torna,

A mesma cousa sois, e o resto é por fora e falso,

O resto, o estático resto que fica nos olhos que param,

Mas não nos meus nervos motor de explosão a óleos

Não nos meus nervos todas as máquinas, todos os

Nos meus nervos locomotiva, carro-eléctrico, automóvel,

Nos meus nervos máquina marítima, Diesel,

Nos meus nervos instalação absoluta a vapor, a gás, a

Máquina universal movida por correias de todos os

Comboio parte-te de encontro ao resguardo da linha

Vapor navega direito ao cais e racha-te contra ele!

Automóvel guiado pela loucura de todo o universo

Por todos os precipícios abaixo

E choca-te, trz!, esfrangalha-te no fundo do meu coração!

À moi, todos os objectos projécteis!

À moi, todos os objectos direcções!

À moi, todos os objectos invisíveis de velozes!

Batam-me, trespassem-me, ultrapassem-me!

Sou eu que me bato, que me trespasso, que me

A raiva de todos os ímpetos fecha em círculo-mim!

Hela-hoho comboio, automóvel, aeroplano minhas

Velocidade entra por todas as ideias dentro,

Choca de encontro a todos os sonhos e parte-os,

Chamusca todos os ideais humanitários e úteis,

Atropela todos os sentimentos normais, decentes,

Colhe no giro do teu volante vertiginoso e pesado

Os corpos de todas as filosofias, os trapos de todos os

Esfrangalha-os e fica sótu, volante abstracto nos ares,

Senhor supremo da hora europeia, metálico a cio.

Vamos, que a cavalgada não tenha fim nem em Deus!

Vamos, que mesmo que eu fique atrás da cavalgada,

Eu pobre, meu corpo e minha alma atingindo minha

De onde anseio utopias de ultrapassar o universo,

De deixar Deus atrás como um marco miliário ,

De livrar o m

Dói-me a imaginação não sei como, mas é ela que dói.

Declina dentro de mim o sol no alto do céu.

Começa a tender a entardecer no azul e nos meus nervos.

Vamos ó cavalgada, quem mais me consegues tornar?

Eu que, veloz, voraz, comilão da energia abstracta,

Queria comer, beber, esfolar e arranhar o mundo,

Eu, que só me contentaria com calcar o universo aos

Calcar, calcar, calcar até não sentir...

Eu, sinto que ficou fora do que imaginei tudo o que

Que embora eu quisesse tudo, tudo me faltou,

Cavalgada desmantelada por cima de todos os cimos,

Cavalgada desarticulada por baixo de todos os poços,

Cavalgada voo, cavalgada seta, cavalgada pensamento-

Cavalgada eu, cavalgada eu, cavalgada o universo - eu.

Helahoho-o-o-o-o-o-o-o...

Meu ser elástico, mola, agulha, trepidação...

. Optou-se pela leitura de Cleonice Berardinelli do poema. VOLTAR.

. Encontro. VOLTAR.

. Meio-feriados. VOLTAR

. Aqui esteve Manolo às vésperas de ir ao cadafalso. VOLTAR.

. Clube. VOLTAR.

. Bonde. VOLTAR.

. Caminhão. VOLTAR.

. Invenção sem garantia de Deus. VOLTAR

II

Sentir tudo de todas as maneiras,

Ter todas as opiniões,

Ser sincero contradizendo-se a cada minuto,

Desagradar a si-próprio pela plena liberalidade de

E amar as cousas como Deus.

Eu, que sou mais irmão de uma árvore que de um

Eu, que sinto mais a dor suposta do mar ao bater na

Que a dor real das crianças em quem batem

(Ah, como isto deve ser falso, pobres crianças em quem

E porque é que as minhas sensações se revezam tão

Eu enfim, que sou um diálogo contínuo,

Um falar-alto incompreensível, alta-noite na torre,

Quando os sinos oscilam vagamente sem que mão lhes

E faz pena saber que há vida que viver amanhã.

Eu, enfim, literalmente eu,

E eu metafòricamente também,

Eu, o poeta sensacionista, enviado do Acaso

Às leis irrepreensíveis da Vida,

Eu, o fumador de cigarros por profissão adequada,

O indivíduo que fuma ópio, que toma absinto, mas que,

Prefere pensar em fumar ópio a fumá-lo

E acha mais seu olhar para o absinto a beber que

Eu, este degenerado superior sem arquivos na alma,

Sem personalidade com valor declarado,

Eu, o investigador solene das cousas fúteis,

Que era capaz de ir viver na Sibéria só por embirrar

E que acho que não faz mal não ligar importância à

Porque não tenho raiz, como uma árvore, e portanto

Eu,que tantas vezes me sinto tão real como uma

Como uma frase escrita por um doente no livro da

Ou uma partida de xadrez no convés dum transatlântico,

Eu, a ama que empurra os perambulators em todos os

Eu, o polícia que a olha, parado para trás na álea,

Eu, a criança no carro, que acena à sua inconsciência

Eu, a paisagem por detrás disto tudo, a paz citadina

Coada através das árvores do jardim público,

Eu, o que os espera a todos em casa,

Eu, o que eles encontram na rua,

Eu, o que eles não sabem de si-próprios,

Eu, aquela cousa em que estás pensando e te marca esse

Eu, o contraditório, o fictício, o aranzel, a espuma,

O cartaz posto agora, as ancas da francesa, o olhar do

O largo onde se encontram as duas ruas e os chauffeurs

A cicatriz do sargento mal-encarado,

O sebo na gola do explicador doente que volta para

A chávena que era por onde o pequenito que morreu

E tem uma falha na asa(e tudo isto cabe num coração

Eu, o ditado de francês da pequenita que mexe nas ligas,

Eu, os pés que se tocam por baixo do bridge sob o lustre,

Eu, a carta escondida, o calor do lenço, a sacada com a

O portão de serviço onde a criada fala com os desejos

O sacana do José que prometeu vir e não veio

E a gente tinha uma partida para lhe fazer...

Eu, tudo isto, e além disto o resto do mundo...

Tanta cousa, as portas que se abrem, e a razão porque

E as cousas que já fizeram as mãos que abrem as portas...

Eu, a infelicidade - nata de todas as expressões,

A impossibilidade de exprimir todos os sentimentos,

Sem que haja uma lápide no cemitério para o irmão

E o que parece não querer dizer nada sempre quer dizer

Sim, eu, o engenheiro naval que sou supersticioso como

E uso monóculo para não parecer igual à ideia real que

Que levo às vezes três horas a vestir-me e nem por isso

Mas acho-o metafísico e se me batem à porta, zango-me,

Não tanto por me interromperem a gravata como por

Sim, enfim, eu o destinatário das cartas lacradas,

O baú das iniciais gastas,

A intonação das vozes que nunca ouviremos mais -

Deus guarda isso tudo no Mistério, e às vezes sentimo-lo

E a vida pesa de repente e faz muito frio mais perto

A Brígida prima da minha tia,

O general em que elas falavam - general quandoelas

E a vida era guerra civil a todas as esquinas...

Vive le mélodrame où Margot a pleuré!

Caem folhas secas no chão irregularmente,

Mas o facto é que sempre é outono no outono,

E o inverno vem depois fatalmente,

E há só um caminho para a vida, que é a vida...

Esse velho insignificante, mas que ainda conheceu os

Esse opúsculo político do tempo das revoluções

E a dor que tudo isso deixa, sem que se saiba a razão

Nem haja para chorar tudo mais razão que senti-lo.

Todos os amantes beijaram-se na minh'alma,

Todos os vadios dormiram um momento em cima de

Todos os desprezados encostaram-se um momento ao

Atravessaram a rua, ao meu braço, todos os velhos e os

E houve um segredo que me disseram todos os assassinos.

(Aquela cujo sorriso sugere a paz que eu não tenho,

Em cujo baixar-de-olhos há uma paisagem da Holanda,

Com as cabeças femininas coiffées de lin

E todo o esforço quotidiano de um povo pacífico e

Aquela que é o anel deixado em cima da cómoda,

E a fita entalada com o fechar da gaveta,

Fita cor-de-rosa, não gosto da cor mas da fita entalada,

Assim como não gosto da vida, mas gosto de senti-la...

Dormir como um cão corrido no caminho, ao sol,

Definitivamente para todo o resto do Universo,

E que os carros me passem por cima).

Fui para a cama com todos os sentimentos,

Fui souteneur de todas as emoções,

Pagaram-me bebidas todos os acasos das sensações,

Troquei olhares com todos os motivos de agir,

Estive mão em mão com todos os impulsos para partir,

Febre imensa das horas!

Angústia da forja das emoções!

Raiva, espuma, a imensidão que não cabe no meu lenço,

A cadela a uivar de noite,

O tanque da quinta a passear à roda da minha insónia,

O bosque como foi à tarde, quando lá passeamos, a rosa,

A madeixa indiferente, o musgo, os pinheiros,

Toda a raiva de não conter isto tudo, de não deter isto

Ó fome abstracta das cousas, cio impotente dos

Orgia intelectual de sentir a vida!

Obter tudo por suficiência divina -

As vésperas, os consentimentos, os avisos,

As cousas belas da vida -

O talento, a virtude, a impunidade,

A tendência para acompanhar os outros a casa,

A situação de passageiro,

A conveniência em embarcar já para ter lugar,

E falta sempre uma cousa, um copo, uma brisa, uma

E a vida dói quanto mais se goza e quanto mais se

Poder rir, rir, rir despejadamente,

Rir como um copo entornado,

Absolutamente doido só por sentir,

Absolutamente roto por me roçar contra cousas,

Ferido na boca por morder cousas,

Com as unhas em sangue por me agarrar a cousas,

E depois dêem-me a cela que quiserem que eu me

22/5/1916 a 10/4/1923

. Viva o melodrama em que Margot chorou. VOLTAR

.Cobertas de linho.(N.E.) VOLTAR.

. Optamos por esta versão publicada por Cleonice Berardinelli em Poemas de Álvaro de Campos por ser mais completa. Esta é uma ode futurista em que Campos exprime a essência do Sensacionismo: "sentir tudo de todas as maneiras". Aí aparecem a multiplicidade de "eu" do poeta e o seu desejo total de experimentar e abarcar a realidade. VOLTAR.

DIÁRIO NA SOMBRA

Lembras-te ainda de mim?

Tu conheceste-me há muito tempo...

Eu era aquela criança triste de quem tu não gostavas,

E por quem depois, pouco a pouco, te foste interessando

(Pela angústia, e a tristeza, e mais qualquer cousa,)

E de quem tu acabaste por gostar, quase sem o saber!

Lembras-te? A criança triste que brincava na praia

Sozinha, longe dos outros, sossegadamente,

E de vez em quando lhes lançava um olhar triste mas

Vejo que olhas para mim disfarçadamente de vez em

Estás recordado? Queres ver se te recordas? bem sei...

Sem saber sentes ainda no meu rosto calmo e triste

A criança triste que brincava sempre longe dos outros

E de vez em quando olhava tristemente para eles, mas

Sei que olhas, e que não compreendes qual a tristeza

Que me mostra triste...

Que não é pena, nem é saudade, nem desgosto, nem

Ah, é a tristeza

Daquele a quem, no grande solo antenatal,

Deus daria o Segredo -

O segredo da vacuidade absoluta das cousas,

E da ilusão do mundo -

A tristeza irreparável

Daquele que sabe que nada serve nem vale,

Que o esforço é um absurdo desgaste,

Que a vida é um espaço vazio,

Porque a desilusão vem sempre através da ilusão

E parece que a Morte é o sentido da Vida...

É isto, mas não é só isto, que tu vês no meu rosto

E faz com que olhes para mim, de vez em quando,

Há, além disto,

Aquele pasmo negro, aquele arrepio sombrio,

Que seria na alma

O ter havido um segredo de Deus

Dito no grande solo antenatal, quando a vida

Não raiava ainda ao longe,

E todo o Universo luminoso e complexo

Era ainda um destino inevitavelmente a cumprir.

Se isto me não define, nada me define

E isto não me define -

Porque o Segredo que Deus me disse não era só isto.

Amo esta cousa que é hoje estar do lado do irreal,

O fim que há nisso, o meu dever de compreender o

O meu sentimento d'haver quem não se pode sentir,

O meu grande interesse de impedir na infância,

O domínio dos sonhos arquitectados na luz.

Sim, é isto que põe

Uma velhice anterior à minha infância na minha face

E no meu olhar uma angústia interior à minha alegria.

Olhas-me disfarçadamente, de vez em quando,

E não me compreendes,

E tornasa olhar, disfarçadamente e sempre...

Sem Deus não há vida nesta vida

E não poderás nunca compreender...

A CASA BRANCA NAU PRETA

Estou reclinado na poltrona, é tarde, o Verão apagou-se...

Nem sonho, nem cismo, um torpor alastra em meu

Não existe manhã para o meu torpor nesta hora...

Ontem foi um mau sonho que alguém teve por mim...

Há uma interrupção lateral na minha consciência...

Continuam encostadas as portas da janela desta tarde

Apesar de as janelas estarem abertas de par em par...

Sigo sem atenção as minhas sensações sem nexo,

E a personalidade que tenho está entre o corpo e a

Quem dera que houvesse

Um terceiro estado prà alma, se ela tiver só dois...

Um quarto estado prà alma, se são três os que ela tem...

A impossibilidade de tudo quanto eu nem chego a sonhar

Dói-me por detrás das costas da minha consciência de

As naus seguiram,

Seguiram viagem não sei em que dia escondido,

E a rota que deviam seguir estava escrita nos ritmos,

Os ritmos perdidos das canções mortas dos

Árvores paradas da quinta, vistas através da janela,

Árvores estranhas a mim a um ponto inconcebível à

Árvores iguais todas a não serem mais que eu vê-las,

Não poder eu fazer qualquer coisa género haver árvores

Não poder eu coexistir para o lado de lá com estar-vos

E poder levantar-me desta poltrona deixando os

Que sonhos?... Eu não sei se sonhei... Que naus

Tive essa impressão sem nexo porque no quadro

Naus partem... naus não, barcos, mas as naus estão em

E é sempre melhor o impreciso que embala do que o

Porque o que basta acaba onde basta, e onde acaba não

E nada que se pareça com isto devia ser o sentido da

Quem pôs as formas das árvores dentro da existência

Quem deu frondoso a arvoredos, e me deixou por

Onde tenho o meu pensamento que me dói estar sem

Sentir sem auxílio de poder para quando quiser, e o

E a última viagem, sempre para lá, das naus a subir...

Não há substância de pensamento na matéria de alma

Há só janelas abertas de par em par encostadas por

E o quintal cheio de luz sem luz agora ainda-agora, e eu...

Na vidraça aberta, fronteira ao ângulo com que o meu

A casa branca distante onde mora...(O morador é

Fecho o olhar... e os meus olhos fitos na casa branca

São outros olhos vendo sem estar fitos nela a nau que

E eu, parado, mole, adormecido,

Tenho pela vista o tacto do marlá embaixo

Tenho-o na inconsciência e sofro...

Aos próprios palácios distantes a nau que penso não

As escadas dando sobre o mar inatingível ela não

Aos jardins maravilhosos nas ilhas inexplícitas não

Tudo perde o sentido com que o abrigo em meu pórtico

E o mar entra por os meus olhos o pórtico cessando...

Caia a noite, não caia a noite, que importa a candeia

Por acender nas casas que não vejo na encosta e eu lá?

Húmida sombra nos sons do tanque nocturno sem lua,

Coaxar tarde no vale, porque tudo é vale onde o som

Milagre do aparecimento da Senhora das Angústias aos

Maravilha do enegrecimento do punhal tirado para os

Os olhos fechados, a cabeça pendida contra a coluna

E o mundo para além dos vitrais paisagem sem ruínas...

A casa branca nau preta...

Felicidade na Austrália...

No lugar dos palácios desertos e em ruínas

À beira do mar,

Leiamos, sorrindo, os segredos das sinas

De quem sabe amar.

Qualquer que ele seja, o destino daqueles

Que o amor levou

Para a sombra, ou na luz se fez a sombra deles,

Qualquer fosse o vôo.

Por certo eles foram mais reais e felizes.

Não sei. Falta-me um sentido, um tacto

Para a vida, para o amor, para a glória...

Para que serve qualquer história,

Ou qualquer facto?

Estou só, só como ninguém ainda esteve,

Oco dentro de mim, sem depois nem antes.

Parece que passam sem ver-me os instantes,

Mas passam sem que o seu passo seja leve.

Começo a ler, mas cansa-me o que inda não li.

Quero pensar, mas dói-me o que irei concluir.

O sonho pesa-me antes de o ter. Sentir

É tudo uma coisa como qualquer coisa que já vi

Não ser nada, ser uma figura de romance,

Sem vida, sem morte material, uma ideia,

Qualquer coisa que nada tornasse útil ou feia,

Uma sombra num chão irreal, um sonho num transe.

. Optamos pela leitura de Cleonice Berardinelli para o poema. Na edição da Ática, a estrofe aparece da seguinte maneira: "Na vidraça aberta, fronteira ao ângulo com que meu olhar a colhe / A casa branca distante onde mora... Fecho o olhar... / e os meus olhos fitos na casa branca sem a ver / São outros olhos vendo sem estar fitos nela a nau que se afasta, / E eu, parado, mole, adormecido, / Tenho o ar embalando-me e sofro...". VOLTAR.

PASSAGEM DAS HORAS

Nada me prende, a nada me ligo, a nada pertenço.

Todas as sensações me tomam e nenhuma fica.

Sou mais variado que uma multidão de acaso,

Sou mais diverso que o universo espontâneo,

Todas as épocas me pertencem um momento,

Todas as almas um momento tiveram seu lugar em mim.

Fluido de intuições, riode supor-mas,

Sempre ondas sucessivas,

Sempre o mar - água desconhecendo-se

Sempre separando-se de mim, indefinidamente.

Ó cais onde eu embarque definitivamente para a Verdade,

Ó barco, com capitão e marinheiros, visível no símbolo,

Ó águas plácidas, como as de um rio que há, no

Em que me sonho possível -.

Onde estais que seja um lugar, quando sois que seja

Quero partir e encontrar-me,

Quero voltar a saber de mim,

Como quem volta ao lar, como quem torna a ser

Como quem ainda é amado na aldeia antiga,

Como quem roça pela infância morta em cada pedra

E vê abertos em frente os eternos campos de outrora

E a saudade como uma canção de mãe a embalar flutua

Na tragédia de o passado ter passado,

Ó terras ao sol, conterrâneas, locais e vizinhas!

Merda prà vida!

Ter profissão pesa aos ombros como um fardo pago,

Ter deveres estagna,

Ter moral apaga,

Ter a revolta contra deveres e a revolta contra a moral

Vive na rua sem siso.

Ó linha dos horizontes, parda aos meus olhos,

Que tumulto de vento próximo me é ainda distante,

E como oscilas no que eu vejo de aqui!

Meu coração, bandeira içada

Em festas onde não há ninguém...

Meu coração, barco atado à margem

Esperando o dono, cadáver amarelado entre os juncais...

Meu coração, a mulher do forçado,

A estalajadeira dos mortos da noute,

Aguarda à porta, com um sorriso maligno,

Todo o sistema do universo,

Concluso a podridão e a esfinges...

Meu coração, algema partida...

. Cleonice Berardinelli considera este poema, assim como o que se segue, suplementar a "A passagem das horas, ode sensacionista". VOLTAR.

LISBON REVISITED

(1923)

Não: não quero nada.

Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!

A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!

Não me falem em moral!

Tirem-me daqui a metafísica!

Não me apregoem sistemas completos, não me

Das ciências(das ciências, Deus meu, das ciências!) -

Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.

Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.

Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?

Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer

Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.

Assim, como sou, tenham paciência!

Vão para o diabo sem mim,

Ou deixem-me ir sòzinho para o diabo!

Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!

Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sòzinho.

Já disse que sou sòzinho!

Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!

Ó céu azul - o mesmo da minha infância -,

Eterna verdade vazia e perfeita!

Ó macio Tejo ancestral emudo,

Pequena verdade onde o céu se reflecte!

Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!

Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...

E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar

. Publicado na revista Contemporânea, no 8, 1923. Este poema mostra toda a irreverência de Campos a Deus, à ciência e aos homens. Também podemos perceber o valor que a infância tem para o poeta. VOLTAR.

LISBON REVISITED

(1926)

Nada me prende a nada.

Quero cinquenta coisas ao mesmo tempo.

Anseio com uma angústia de fome de carne

O que não sei que seja -

Definidamente pelo indefinido...

Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto

De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.

Fecharam-me todas as portas abstractas e necessárias.

Correram cortinas de todas as hipóteses que eu

Não há na travessa achada número de porta que me

Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.

Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.

Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.

Até a vida só desejada me farta - até essa vida...

Compreendo a intervalos desconexos;

Escrevo por lapsos de cansaço;

E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.

Não sei que destino ou futuro compete à minha

Não sei que ilhas do Sul impossível aguardam-me

Ou que palmares de literatura me darão ao menos um

Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma...

E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei,

Nos campos últimos da alma onde memoro sem causa

(E o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas),

Nas estradas e atalhos das florestas longínquas

Onde supus o meu ser,

Fogem desmantelados, últimos restos

Da ilusão final,

Os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter sido,

As minhas coortes por existir, esfaceladas em Deus.

Outra vez te revejo,

Cidade da minha infância pavorosamente perdida...

Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui...

Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,

E aqui tornei a voltar, e a voltar.

E aqui de novo tornei a voltar?

Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram,

Uma série de contas-entes ligadas por um fio-memória,

Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim?

Outra vez te revejo,

Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.

Outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo -,

Transeunte inútil de ti e de mim,

Estrangeiro aqui como em toda a parte,

Casual na vida como na alma,

Fantasma a errar em salas de recordações,

Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem

No castelo maldito de ter que viver...

Outra vez te revejo,

Sombra que passa através desombras, e brilha

Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,

E entra na noite como um rastro de barco se perde

Na água que deixa de se ouvir...

Outra vez te revejo,

Mas, ai, a mim não me revejo!

Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,

E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de

Um bocado de ti e de mim!...

Se te queres matar, porque não te queres matar?

Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,

Se ousasse matar-me, também me mataria...

Ah, se ousares, ousa!

De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas

A que chamamos o mundo?

A cinematografia das horas representadas

Por actores de convenções e poses determinadas,

O circo policromo do nosso dinamismo sem fim?

De que te serve o teu mundo interior que desconheces?

Talvez, matando-te, o conheças finalmente...

Talvez, acabando, comeces...

E de qualquer forma, se te cansa seres,

Ah, cansa-te nobremente,

E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,

Não saúdes como eu a morte em literatura!

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!

Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...

Sem ti correrá tudo sem ti.

Talvez seja pior para outros existires que matares-te...

Talvez peses mais durando, que deixando de durar...

A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado

De que te chorem?

Descansa: pouco te chorarão...

O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,

Quando não são de coisas nossas,

Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a

Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda

Do mistério e da falta da tua vida falada...

Depois o horror do caixão visível e material,

E os homens de preto que exercem a profissão de estar

Depois a família a velar, inconsolável e contando

Lamentando a pena de teres morrido,

Interseccionando a pena de teres morrido com o último

E tu mera causa ocasional daquela carpidação,

Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que

Muito mais morto aqui que calculas,

Mesmo que estejas muito mais vivo além...

Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,

E depois o princípio da morte da tua memória.

Há primeiro em todos um alívio

Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...

Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,

E a vida de todos os dias retoma o seu dia...

Depois, lentamente esqueceste.

Só és lembrado em duas datas, aniversàriamente:

Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que

Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.

Duas vezes no ano pensam em ti.

Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,

E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...

Se queres matar-te,mata-te...

Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...

Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?

Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera

As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?

Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?

Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem,

Não vês que não tens importância absolutamente

És importante para ti, porque é a ti que te sentes.

És tudo para ti, porque para ti és o universo,

E o próprio universo e os outros

Satélites da tua subjetividade objectiva.

És importante para ti porque só tu és importante para ti.

E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?

Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,

Para que chames desconhecido a qualquer coisa em

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?

Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais

Torna-te parte carnal da terra e das coisas!

Dispersa-te, sistema físico-químico

De células nocturnamente conscientes

Pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos,

Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,

Pela relva e a erva da proliferação dos seres,

Pela névoa atômica das coisas,

Pelas paredes turbilhonantes

Do vácuo dinâmico do mundo...

Faróis distantes,

De luz sùbitamente tão acesa,

De noite e ausência tão ràpidamente volvida,

Na noite, no convés, que consequências aflitas!

Mágoa última dos despedidos,

Ficção de pensar...

Faróis distantes...

Incerteza da vida...

Voltou crescendo a luz acesa avançadamente,

No acaso do olhar perdido...

Faróis distantes...

A vida de nada serve...

Pensar na vida de nada serve...

Pensar de pensar na vida de nada serve...

Vamos para longe e a luz que vem grande vem menos

Faróis distantes...

O florir do encontro casual

Dos que hão sempre de ficar estranhos...

O único olhar sem interesse recebido no acaso

Da estrangeira rápida...

O olhar de interesse da criança trazida pela mão

Da mãe distraída...

As palavras de episódio trocadas

Com o viajante episódico

Na episódica viagem...

Grandes mágoas de todas as coisas serem bocados...

Caminho sem fim...

Nas praças vindouras - talvez as mesmas que as nossas -

Que elixires serão apregoados?

Com rótulos diferentes, os mesmos do Egipto dos Faraós;

Com outros processos de os fazer comprar, os que já

E as metafísicas perdidas nos cantos dos cafés de toda a

As filosofias solitárias de tanta trapeira de falhado,

As ideias casuais de tanto casual, as intuições de tanto

Um dia talvez, em fluido abstracto, e substância

Formem um Deus, e ocupem o mundo.

Mas a mim, hoje, a mim

Não há sossego de pensar nas propriedades das coisas,

Nos destinos que não desvendo,

Na minha própria metafísica, que tenho porque penso

Não há sossego,

E os grandes montes ao sol têm-no tão nìtidamente!

Têm-no? Os montes ao sol não têm coisa nenhuma do

Não seriam montes, não estariam ao sol, se otivessem.

O cansaço de pensar, indo até ao fundo de existir,

Faz-me velho desde antes de ontem com um frio até

O que é feito dos propósitos perdidos, e dos sonhos

E porque é que há propósitos mortos e sonhos sem

Nos dias de chuva lenta, contínua, monótona, uma,

Custa-me levantar-me da cadeira onde não dei por me

E o universo é absolutamente oco em torno de mim.

O tédio que chega a constituir nossos ossos encharcou-me

E a memória de qualquer coisa de que me não lembro

Sem dúvida que as ilhas dos mares do sul têm

E que os areais dos desertos todos compensam um pouco

Mas no meu coração sem mares nem desertos nem ilhas

Na minha alma vazia estou,

E narro-me prolixamente sem sentido, como se um

Fúria fria do destino,

Intersecção de tudo,

Confusão das coisas com as suas causas e os seus efeitos,

Consequência de ter corpo e alma,

E o som da chuva chega até eu ser, e é escuro.

Perdi a esperança como uma carteira vazia...

Troçou de mim o Destino; fiz figas para o outro lado,

E o ressalto bem podia ser bordado a missanga por

E ser relíquia da sala da casa velha que não tenho.

(Jantávamos cedo, num outrora que já me parece de

E depois tomava-se chá nas noutes sossegadas que não

Minha infância, mesmo quando eu adolescia, passou,

Fiquei triste, como se a verdade me tivesse sido dita,

Mas nunca me foi dita verdade nenhuma enquanto

. Publicado na revista Contemporânea, 3a Série, no 2, junho de 1926. VOLTAR

Variantes: 10o verso - Não há na travessa buscada o número de porta que me deram, 19o verso(1a variante) - Não sei que ilhas do Sul impossível aguardam o náufrago, 19o verso(2a variante) - Não sei que ilhas do Sul impossível aguardam que náufrago, 32o verso - Cidade da minha infância pavorosamente passada...

. Personagem de William Shakespeare, gordo e beberrão. VOLTAR

. Este poema foi escrito no dia em que completavam dez anos do suicídio, em Paris, depois de escrever cartas angustiadas a Pessoa, do grande parceiro de aventura literária e amigo: o poeta Mário de Sá-Carneiro. Variantes: 55o verso - Que escrúpulos ou receios tem a química da vida? 56o verso - Deixadas aos molhos em alinhamentos destruídos pelo vento. VOLTAR

TABACARIA

Não sou nada.

Nunca serei nada.

Não posso querer ser nada.

À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,

Do meu quarto de um dos milhões do mundo que

(E se soubessem quem é, o que saberiam?),

Dais para o mistério de uma rua cruzada

Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,

Real, impossìvelmente real, certa, desconhecidamente

Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos

Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos

Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.

Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,

E não tivesse mais irmandade com as coisas

Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado

A fileira de carruagens de um comboio e uma partida

De dentro da minha cabeça,

E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de

Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e

Estou hoje dividido entre a lealdade que devo

À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por

E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por

Falhei em tudo.

Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse

A aprendizagem que me deram,

Desci dela pela janela das traseiras da casa.

Fui até ao campo com grandes propósitos.

Mas lá encontrei só ervas e árvores,

E quando havia gente era igual à outra.

Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?

Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!

E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode

Génio? Neste momento

Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,

E a história não marcará, quem sabe?, nem um,

Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.

Não, não creio em mim.

Em todos os manicómios há doidos malucos com

Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou

Não, nem em mim...

Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo

Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?

Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -

Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,

E quem sabe se realizáveis,

Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de

O mundo é para quem nasce para o conquistar

E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda

Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.

Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades

Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant

Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,

Ainda que não more nela;

Serei sempre o que não nasceu para isso;

Serei sempre só o que tinha qualidades;

Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta

E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,

E ouviu a voz de Deus num poço tapado.

Crer em mim? Não, nem em nada.

Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente

O seusol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,

E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.

Escravos cardíacos das estrelas,

Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da

Mas acordamos e ele é opaco,

Levantámo-nos e ele é alheio,

Saímos de casa e ele é a terra inteira,

Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;

Come chocolates!

Olha que não há mais metafísica no mundo senão

Olha que as religiões todas não ensinam mais que a

Come, pequena suja, come!

Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade

Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas

Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei

A caligrafia rápida destes versos,

Pórtico partido para o Impossível.

Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo

Nobre ao menos no gesto largo com que atiro

A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,

E fico em casa sem camisa.

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,

Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,

Ou patrícia romana, impossìvelmente nobre e nefasta,

Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,

Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,

Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,

Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -,

Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que

Meu coração é um balde despejado.

Como os que invocam espíritos invocam espíritos

A mim mesmo e não encontro nada.

Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.

Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,

Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,

Vejo os cães que também existem,

E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,

E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei, e até cri,

E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não

Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,

E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem

(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem

Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem

E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube,

E o que podia fazer de mim não o fiz.

O dominó que vesti era errado.

Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti,

Quando quis tirar a máscara,

Estava pegada à cara.

Quando a tirei e me vi ao espelho,

Já tinha envelhecido.

Estava bêbado, já nãosabia vestir o dominó que não

Deitei fora a máscara e dormi no vestiário

Como um cão tolerado pela gerência

Por ser inofensivo

E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,

Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,

E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,

Calcando aos pés a consciência de estar existindo,

Como um tapete em que um bêbado tropeça

Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.

Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada

E com o desconforto da alma mal-entendendo.

Ele morrerá e eu morrerei.

Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.

A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos

Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a

E a língua em que foram escritos os versos.

Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.

Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa

Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por

Sempre uma coisa defronte da outra,

Sempre uma coisa tão inútil como a outra,

Sempre o impossível tão estúpido como o real,

Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de

Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa

Mas um homem entrou na Tabacaria(para comprar

E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.

Semiergo-me enérgico, convencido, humano,

E vou tencionar escrever estes versos em que digo o

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los

E saboreio no cigarro a libertação de todos os

Sigo o fumo como uma rota própria,

E gozo, num momento sensitivo e competente,

A libertação de todas as especulações

E a consciência de que a metafísica é uma consequência

Depois deito-me para trás na cadeira

E continuo fumando.

Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira

Talvez fosse feliz.)

Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria(metendo troco na algibeira

Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.

(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)

Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e

Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o

Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono

. Publicado na revista Presença, no 39, julho, 1933. O poema chegou a ser intitulado "Marcha da derrota". É o poema que melhor mostra a última fase de Campos, a da melancolia, da amargura, da desilusão e do pessimismo. Observa-se a atuação das duas realidades: a externa(real), quando ele olha pela janela, e a interna(própria da interioridade do poeta). VOLTAR.

ESCRITO NUM LIVRO ABANDONADO EM

VIAGEM

Venho doslados de Beja.

Vou para o meio de Lisboa.

Não trago nada e não acharei nada.

Tenho o cansaço antecipado do que não acharei,

E a saudade que sinto não é nem no passado nem do

Deixo escrita neste livro a imagem do meu desígnio

Fui, como ervas, e não me arrancaram.

. Publicado na revista Presença, no 10, março, 1928. Variantes: 5o verso - E a saudade que sinto não é nem do passado nem do futuro. VOLTAR.

APOSTILA

Aproveitar o tempo!

Mas o que é o tempo, que eu o aproveite?

Aproveitar o tempo!

Nenhum dia sem linha...

O trabalho honesto e superior...

O trabalho à Virgílio, à Milton...

Mas é tão difícil ser honesto ou superior!

É tão pouco provável ser Milton ou ser Virgílio!

Aproveitar o tempo!

Tirar da alma os bocados precisos - nem mais nem

Para com eles juntar os cubos ajustados

Que fazem gravuras certas na história

(E estão certas também do lado de baixo que se não vê)...

Pôr as sensações em castelo de cartas, pobre China dos

E os pensamentos em dominó, igual contra igual,

E a vontade em carambola difícil...

Imagens de jogos ou de paciências ou de passatempos -

Imagens da vida, imagens das vidas, Imagens da Vida...

Verbalismo...

Sim, verbalismo...

Aproveitar o tempo!

Não ter um minuto que o exame de consciência

Não ter um acto indefinido nem fictício...

Não ter um movimento desconforme com propósitos...

Boas maneiras da alma...

Elegância de persistir...

Aproveitar o tempo!

Meu coração está cansado como mendigo verdadeiro.

Meu cérebro está pronto como um fardo posto ao canto.

Meu canto(verbalismo!) está tal como está e é triste.

Aproveitar o tempo!

Desde que comecei a escrever passaram cinco minutos.

Aproveitei-os ou não?

Se não sei se os aproveitei, que saberei de outros minutos?!

(Passageira que viajavas tantas vezes no mesmo

No comboio suburbano,

Chegaste a interessar-te por mim?

Aproveitei o tempo olhando para ti?

Qual foi o ritmo do nosso sossego no comboio andante?

Qual foi o entendimento que não chegamos a ter?

Qual foi a vida que houve nisto? Que foi isto a vida?)

Aproveitar o tempo!

Ah, deixem-me não aproveitar nada!

Nem tempo, nem ser, nem memórias de tempo ou de

Deixem-me ser uma folha de árvore, titilada por brisa,

A poeira de uma estrada involuntária e sòzinha,

O vinco deixado na estrada pelas rodas enquanto não

O pião do garoto, que vai a parar,

E oscila, no mesmo movimento que o da alma,

E cai, como caem os deuses, no chão do Destino.

. Publicado na revista Presença, no 1, 2a Série, novembro de 1939.

VOLTAR.

DEMOGORGON

Na rua cheia de sol vago há casas paradas e gente que anda.

Uma tristeza cheia de pavor esfria-me.

Pressinto um acontecimento do lado de lá das fronteiras

Não, não, isso não!

Tudo menos saber o que é oMistério!

Superfície do Universo, ó Pálpebras Descidas,

Não vos ergais nunca!

O olhar da Verdade Final não deve poder suportar-se!

Deixai-me viver sem saber nada, e morrer sem ir saber

A razão de haver ser, a razão de haver seres, de haver

Deve trazer uma loucura maior que os espaços

Entre as almas e entre as estrelas.

Não, não, a verdade não! Deixai-me estas casas e esta

Assim mesmo, sem mais nada, estas casas e esta gente...

Que abafo horrível e frio me toca em olhos fechados?

Não os quero abrir de viver! Ó Verdade, esquece-te de

ADIAMENTO

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...

Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,

E assim será possível; mas hoje não...

Não, hoje nada; hoje não posso.

A persistência confusa da minha subjectividade

O sono da minha vida real, intercalado,

O cansaço antecipado e infinito,

Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...

Esta espécie de alma...

Só depois de amanhã...

Hoje quero preparar-me,

Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...

Ele é que é decisivo.

Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...

Amanhã é o dia dos planos.

Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o

Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...

Tenho vontade de chorar,

Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.

Só depois de amanhã...

Quando era criança o circo de domingo divertia-me

Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana

Depois de amanhã serei outro,

A minha vida triunfar-se-á,

Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e

Serão convocadas por um edital...

Mas por um edital de amanhã...

Hoje quero dormir, redigirei amanhã...

Por hoje qual é o espectáculo que me repetiria a infância?

Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,

Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...

Antes, não...

Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã

Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não

Só depois de amanhã...

Tenho sono como o frio de um cão vadio.

Tenho muito sono.

Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...

Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...

Sim, o porvir...

Mestre, meu mestre querido!

Coração do meu corpo intelectual e inteiro!

Vida da origem da minha inspiração!

Mestre, que é feito de ti nesta forma de vida?

Não cuidaste se morrerias, se viverias, nem de ti nem

Alma abstracta e visual até aos ossos,

Atenção maravilhosa ao mundo exterior sempre

Refúgio das saudades de todos os deuses antigos,

Espírito humano da terra materna,

Flor acima do dilúvio da inteligência subjectiva...

Mestre, meu mestre!

Na angústia sensacionista de todos os dias sentidos,

Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser,

Eu, escravo de tudo como um pó detodos os ventos,

Ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim!

Meu mestre e meu guia!

A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou,

Seguro como um sol fazendo o seu dia

Natural como um dia mostrando tudo,

Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua

Meu coração não aprendeu nada.

Meu coração não é nada,

Meu coração está perdido.

Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu.

Que triste a grande hora alegre em que primeiro te ouvi!

Depois tudo é cansaço neste mundo subjectivado,

Tudo é esforço neste mundo onde se querem coisas,

Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas,

Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente.

Depois, tenho sido como um mendigo deixado ao

Pela indiferença de toda a vila.

Depois, tenho sido como as ervas arrancadas,

Deixadas aos molhos em alinhamentos sem sentido.

Depois, tenho sido eu, sim eu, por minha desgraça,

E eu, por minha desgraça, não sou eu nem outro nem

Depois, mas porque é que ensinaste a clareza da vista,

Se não me podias ensinar a ter a alma com que a ver

Porque é que me chamaste para o alto dos montes

Se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar?

Porque é que me deste a tua alma se eu não sabia que

Como quem está carregado de ouro num deserto,

Ou canta com voz divina entre ruínas?

Porque é que me acordaste para a sensação e a nova

Se eu não saberei sentir, se a minha alma é de sempre a

Prouvera ao Deus ignoto que eu ficasse sempre aquele

Poeta decadente, estùpidamente pretensioso,

Que poderia ao menos vir a agradar,

E não surgisse em mim a pavorosa ciência de ver.

Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser humano!

Feliz o homem marçano,

Que tem a sua tarefa quotidiana normal, tão leve ainda

Que tem a sua vida usual,

Para quem o prazer é prazer e o recreio é recreio,

Que dorme sono,

Que come comida,

Que bebe bebida, e por isso tem alegria.

A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação.

Libertaste-me, mas o destino humano é ser escravo.

Acordaste-me, mas o sentido de ser humano é dormir.

Na última página de uma antologia nova

Tantos bons poetas!

Tantos bons poemas!

São realmente bons e tais,

Com tanta concorrência não fica ninguém,

Ou ficam ao acaso, numa lotaria da posteridade,

Obtendo lugares por capricho do Empresário...

Tantos bons poetas!

Para que escrevo eu versos?

Quando os escrevo parecem-me

O que a minha emoção, com que os escrevi, me parece -

A única coisa grande no mundo -

Enche o universo de frio o pavor de mim.

Depois, escritos, visíveis, legíveis...

Ora...E nesta antologia de poetas menores?

Tantos bons poetas!

O que é génio, afinal, ou comoé que se distingue

O génio da habilidade, e os bons poemas dos bons poetas?

Sei lá se realmente se distingue...

O melhor é dormir...

Fecho a antologia mais cansado do que do mundo

Sou vulgar?...

Há tantos bons poetas!

Santo Deus!.......

Na noite terrível, substância natural de todas as noites,

Na noite de insónia, substância natural de todas as

Relembro, velando em modorra incómoda,

Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.

Relembro, e uma angústia

Espalha-se por mim todo como um frio do corpo ou

O irreparável do meu passado - esse é que é o cadáver!

Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão.

Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte.

Todos os meus próprios momentos passados pode ser

Na ilusão do espaço e do tempo,

Na falsidade do decorrer.

Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem

O que só agora vejo que deveria ter feito,

O que só agora claramente vejo que deveria ter sido -

Isso é que é morto para além de todos os Deuses,

Isso - e foi afinal o melhor de mim - é que nem os

Se em certa altura

Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;

Se em certo momento

Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;

Se em certa conversa

Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono,

Se tudo isso tivesse sido assim,

Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro

Seria insensìvelmente levado a ser outro também.

Mas não virei para o lado irreparàvelmente perdido,

Não virei nem pensei em virar, e só agora o percebo;

Mas não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o

Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me

Claras, inevitáveis, naturais,

A conversa fechada concludentemente,

A matéria toda resolvida...

Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me

O que falhei deveras não tem esperança nenhuma

Em sistema metafísico nenhum.

Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que

Mas poderei eu levar para outro mundo o que me

Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.

Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o

Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca

Como uma verdade de que não partilho,

E lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é

Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,

Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,

Sòzinho guio, guio quase devagar, e um pouco

Me parece, ou me forço um pouco para que mepareça,

Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por

Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,

Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar

Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em

Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado

Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem

Sempre, sempre, sempre,

Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,

Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na

Maleável aos meus movimentos subconscientes do

Galga sob mim comigo o automóvel que me

Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.

Em quantas coisas que me emprestaram eu sigo no

Quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!

Quanto me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!

À esquerda o casebre - sim, o casebre - à beira da

À direita o campo aberto, com a lua ao longe.

O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,

É agora uma coisa onde estou fechado,

Que só posso conduzir se nele estiver fechado,

Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a

À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que

A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.

Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará:

Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do

Fiquei(com o automóvel emprestado) como um

Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela

No pavimento térreo,

Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de

E ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva

Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que

Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel

Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos

Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente,

Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que

E, num desejo terrível, súbito, violento, inconcebível,

Acelero...

Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que

À porta do casebre,

O meu coração vazio,

O meu coração insatisfeito,

O meu coração mais humano do que eu, mais exacto

Na estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao

Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,

Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,

Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim...

. Publicado na Solução Editora, no 1, 1929. VOLTAR

. Poema dedicado a Alberto Caeiro, um poema angustiado de um poeta que não consegue seguir os ensinamentos do mestre. "Há frases repentinas, profundas porque vêm doprofundo, que definem um homem, ou, antes, com que um homem se define O meu mestre Caeiro, como não dizia senão o que era, pode ser definido por qualquer frase sua, escrita ou falada, sobretudo depois do período que começa do meio em diante de "O guardador de rebanhos". Mas entre tantas frases que escreveu e se imprimem, entre tantas que me disse e relato ou não relato, a que o contém com maior simplicidade é aquela que uma vez me disse em Lisboa. Falava-se de não sei quê que tinha que ver com as relações de cada qual consigo mesmo. E eu perguntei de repente ao meu mestre Caeiro: 'Está contente consigo?'. E ele respondeu: 'Não: estou contente'. Era como a voz da terra, que é tudo e ninguém."

"Nunca vi triste o meu mestre Caeiro. Não sei se estava triste quando morreu, ou nos dias antes. Seria possível sabê-lo, mas a verdade é que nunca ousei perguntar aos que assistiram à morte qualquer coisa da morte ou de como ele a teve. Em todo o caso, foi uma das angústias da minha vida - das angústias reais em meio de tantas que têm sido

fictícias - que Caeiro morresse sem eu estar ao pé dele. Isto é estúpido mas humano, e é assim. Eu estava em Inglaterra. O próprio Ricardo Reis não estava em Lisboa; estava de volta no Brasil. Estava o Fernando Pessoa, mas é como se não estivesse. O Fernando Pessoa sente as coisas mas não se mexe, nem mesmo por dentro. Nada me consola de não ter estado em Lisboa nesse dia, a não ser aquela consolação que pensar no meu mestre Caeiro espontaneamente me dá. Ninguém é inconsolável ao pé da memória de Caeiro, ou dos seus versos; e a própria ideia do nada - a mais pavorosa de todas se se pensa com a sensibilidade - tem, na obra e na recordação do meu mestre querido, qualquer coisa de luminoso e de alto, como o sol sobre as neves dos píncaros inatingíveis." Escreve Campos em "Notas para a recordação do meu mestre"(extrato publicado na revista Presença, no 30, janeiro-fevereiro de 1931). VOLTAR.

NUVENS

No dia triste o meu coração mais triste que o dia...

Obrigações morais e civis?

Complexidade de deveres, de consequências?

Não, nada...

O dia triste, a pouca vontade para tudo...

Nada...

Outros viajam(também viajei), outros estão ao sol

(Também estive ao sol, ou supus que estive),

Todos têm razão, ou vida, ou ignorância simétrica,

Vaidade, alegria e sociabilidade,

E emigram para voltar, ou para não voltar,

Em navios que os transportam simplesmente.

Não sentem o que há de morte em todaa partida,

De mistério em toda a chegada,

De horrível em todo o novo...

Não sentem: por isso são deputados e financeiros,

Dançam e são empregados no comércio,

Vão a todos os teatros e conhecem gente...

Não sentem: para que haveriam de sentir?

Gado vestido dos currais dos Deuses,

Deixá-lo passar engrinaldado para o sacrifício

Sob o sol, álacre, vivo, contente de sentir-se...

Deixai-o passar, mas ai, vou com ele sem grinalda

Para o mesmo destino!

Vou com ele sem o sol que sinto, sem a vida que tenho.

Vou com ele sem desconhecer...

No dia triste o meu coração mais triste que o dia...

No dia triste todos os dias...

No dia tão triste...

NOCTURNO DE DIA

...Não: o que tenho é sono.

O quê? Tanto cansaço por causa das responsabilidades,

Tanta amargura por causa de talvez se não ser célebre,

Tanto desenvolvimento de opiniões sobre a

O que tenho é sono, meus velhos, sono...

Deixem-me ao menos ter sono; quem sabe que mais

"THE TIMES"

Sentou-se bêbado à mesa e escreveu um fundo

Do Times, claro, inclassificável, lido,

Supondo(coitado!) que ia ter influência no mundo...

.........................................................................................

Santo Deus!... E talvez a tenha tido!

CANÇÃO À INGLESA

Cortei relações com o sol e as estrelas, pus ponto no

Levei a mochila dos ardis que sei para o lado e pro fundo.

Fiz a viagem, comprei o inútil, achei o incerto,

E o meu coração é o mesmo que fui, um céu e um

Falhei no que fui, falhei no que quis, falhei no que soube.

Não tenho já alma que a luz me desperte ou a treva me

Não sou senão náusea, não sou senão cisma, não sou

Sinto em ânsia que fui a uma grande distância

E vou, só porque o meu ser é imundo e profundo,

Colado como um escarro a uma das rodas do mundo.

GAZETILHA

Dos Lloyd Georges da Babilónia

Não reza a história nada.

Dos Briands da Assíria ou do Egipto,

Dos Trotskys de qualquer colónia

Grega ou romana já passada,

O nome é morto, inda que escrito.

Só o parvo dum poeta, ou um louco

Que fazia filosofia,

Ou um geómetra maduro,

Sobrevive a esse tanto pouco

Que está lá para trás no escuro

E nem a história já historia.

Ó grandes homens do Momento!

Ó grandes glórias a ferver

De quem a obscuridade foge!

Aproveitem sem pensamento!

Tratem da fama e do comer,

Que amanhã é dos loucos de hoje!

O soslaio do operário estúpido ao engenheiro doido -

O engenheiro doido fora da engenharia...

O sorriso trocado que sinto nas costas quando passo

(Quando me olham cara a cara e não os sinto sorrir).

Talvez não seja mais do que o meu sonho...

Esse sorriso será para outro, ou a propósito doutro,

Loura débil...

Esse olhar para mim casual comoum calendário...

Esse agradecer-me quando a não deixei cair do eléctrico,

Um agradecimento... Perfeitamente...

Gosto de lhe ouvir em sonho o seguimento que não

De conversas que não chegou a haver.

Há gente que nunca é adulta mas prematura!

Creio mesmo que pouca gente chega a ser adulta -

E a que chega a ser adulta e prematura morre sem dar

Loura débil, figura de inglesa absolutamente portuguesa,

Cada vez que te encontro lembro-me dos versos que

É claro que não me importo nada contigo

Nem me lembro de te ter esquecido senão quando te

Mas o encontrar-te dá ser ao dia e ao destino

Uma poesia de superfície,

Uma coisa a mais no a menos da improficuidade da

Loira débil, feliz porque não és inteiramente real,

Porque nada que vale a pena ser lembrado é

E nada que vale a pena ser real vale a pena.

. Publicado na revista Presença, no 18, janeiro, 1929. VOLTAR.

INSÓNIA

Não durmo, nem espero dormir.

Nem na morte espero dormir.

Espera-me uma insónia da largura dos astros,

E um bocejo inútil do comprimento do mundo.

Não durmo; não posso ler quando acordo de noite.

Não posso escrever quando acordo de noite,

Não posso pensar quando acordo de noite -

Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!

Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer!

Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,

E o meu sentimento é um pensamento vazio.

Passam por mim, transtornadas, coisas que me

Todas aquelas de que me arrependo e me culpo -;

Passam por mim, transtornadas, coisas que me não

Todas aquelas de que me arrependo e me culpo -;

Passam por mim, transtornadas, coisas que não são

E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.

Não tenho força para ter energia para acender um

Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o

Lá fora há o silêncio dessa coisa toda.

Um grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer,

Noutra ocasião qualquer em que eu pudesse sentir.

Estou escrevendo versos realmente simpáticos -

Versos a dizer que não tenho nada que dizer,

Versos a teimar em dizer isso,

Versos, versos, versos, versos, versos...

Tantos versos...

E a verdade toda, e a vida toda fora deles e de mim!

Tenho sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir

Sou uma sensação sem pessoa correspondente,

Uma abstracção de autoconsciência sem de quê,

Salvo o necessário para sentir consciência,

Salvo - sei lá salvo o quê...

Não durmo. Não durmo. Não durmo.

Que grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos

Que grande sono em tudo excepto no poder dormir!

Ó madrugada, tardas tanto... Vem...

Vem, inùtilmente,

Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por

Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste,

Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperanças,

Segundo a velha literatura das sensações.

Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança.

O meu cansaço entra pelo colchão dentro.

Doem-me as costas de não estar deitado de lado.

Se estivesse deitado de lado doíam-me as costas de

Vem, madrugada, chega!

Que horas são? Não sei.

Não tenho energia para estender uma mão para o relógio,

Não tenho energia para nada, para mais nada...

Só para estes versos, escritos no dia seguinte.

Sim, escritos no dia seguinte.

Todos os versos são sempre escritos no dia seguinte.

Noite absoluta, sossego absoluto, lá fora.

Paz em toda a Natureza.

A Humanidade repousa e esquece as suas amarguras.

Exactamente.

A Humanidade esquece as suas alegrias e amarguras.

Costuma dizer-se isto.

A Humanidade esquece, sim, a Humanidade esquece,

Mas mesmo acordada a Humanidade esquece.

Exactamente. Mas não durmo.

ACASO

No acaso da rua o acaso da rapariga loira.

Mas não, não é aquela.

A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.

Perco-me sùbitamente da visão imediata,

Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,

E a outra rapariga passa.

Que grande vantagem o recordar intransigentemente!

Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra

E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta.

Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!

Ao menos escrevem-se versos.

Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por

Se calhar, ou até sem calhar,

Maravilha das celebridades!

Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos...

Mas isto era a respeito de uma rapariga,

De uma rapariga loira,

Mas qual delas?

Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade,

Numa outra espécie de rua;

E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade,

Numa outra espécie de rua;

Porque todas as recordações são a mesma recordação,

Tudo que foi é a mesma morte,

Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã?

Um transeunte olha para mim com uma estranheza

Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas?

Pode ser... A rapariga loira?

É a mesma afinal...

Tudo é o mesmo afinal...

Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isso é o

Ah, abram-me outra realidade!

Quero ter, como Blake, a contiguidade dos anjos

E ter visões por almoço.

Quero encontrar as fadas na rua!

Quero desimaginar-me deste mundo feito com ganas,

Desta civilização feita com pregos,

Quero viver, como uma bandeira à brisa,

Símbolo de qualquer coisa no alto de uma coisa qualquer!

Depois enterrem-me onde queiram.

Meu coração verdadeiro continuará velando

Pano brasonado a esfinges,

No alto do mastro da visão

Aos quatro ventos do Mistério.

O Norte - o que todos querem

O Sul - o que todos desejam

O Este - de onde tudovem

O Oeste - aonde tudo finda

- Os quatro ventos do místico ar da civilização

- Os quatro modos de não ter razão e de entender o

. William Blake(1757-1827), místico inglês, poeta e artista plástico, foi um grande inovador no seu tempo. VOLTAR.

MARINETTI, ACADÉMICO

Lá chegam todos, lá chegam todos...

qualquer dia, salvo venda, chego eu também...

Se nascem, afinal, todos para isso...

Não tenho remédio senão morrer antes,

Não tenho remédio senão escalar o Grande Muro...

Se fico cá, prendem-me para ser social...

Lá chegam todos, porque nasceram para Isso,

E só se chega ao Isso para que se nasceu...

Lá chegam todos...

Marinetti, académico...

As Musas vingaram-se com focos eléctricos, meu velho,

Puseram-te por fim na ribalta da cave velha,

E a tua dinâmica, sempre um bocado italiana, f-f-f-f-f-

A luz cruel do estio prematuro

Sai como um grito do ar da primavera...

Meus olhos ardem-me como se viesse da Noite...

Meu cérebro está tonto, como se eu quisesse justiça...

Contra a luz crua todas as formas são silhuetas.

RETICÊNCIAS

Arrumar a vida, pôr prateleiras na vontade e na acção.

Quero fazer isto agora, como sempre quis, com o

Mas que bom ter o propósito claro, firme só na clareza,

Vou fazer as malas para o Definitivo,

Organizar Álvaro de Campos,

E amanhã ficar na mesma coisa que antes de ontem -

Sorrio do conhecimento antecipado da coisa-nenhuma

Sorrio ao menos; sempre é alguma coisa o sorrir...

Produtos românticos, nós todos...

E se não fôssemos produtos românticos, se calhar não

Assim se faz a literatura...

Santos Deuses, assim até se faz a vida!

Os outros também são românticos,

Os outros também não realizam nada, e são ricos e

Os outros também levam a vida a olhar para as malas a

Os outros também dormem ao lado dos papéis meio

Os outros também são eu.

Vendedeira da rua cantando o teu pregão como um

Rodinha dentada na relojoaria da economia política,

Mãe, presente ou futura, de mortos no descascar dos

A tua voz chega-me como uma chamada a parte

Olho dos papéis que estou pensando em arrumar para

E o meu sorriso, que ainda não acabara, inclui uma

Descri de todos os deuses diante de uma secretária por

Fitei de frente todos os destinos pela distração de ouvir

E o meu cansaço é um barco velho que apodrece na

E com esta imagem de qualquer outro poeta fecho a

Como um deus, não arrumei nem uma coisa nem

. Este poema tem, num dos originais, o título de "Quase". 12o verso -Coitadinhos Deuses, assim até se faz a vida! 23o verso(1a variante) - E o meu sorriso, que ainda não acabara inclui uma situação metafísica.(2a variante) - E o meu sorriso, que ainda não acabara, inclui uma posição metafísica.(3a variante) - E o meu sorriso, que ainda não acabara, acaba no meu cérebro em metafísica. 28o verso - Como um deus, não arrumei nem a verdade nem a vida... VOLTAR

APONTAMENTO

A minha alma partiu-se como um vaso vazio.

Caiu pela escada excessivamente abaixo.

Caiu das mãos da criada descuidada.

Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.

Asneira? Impossível? Sei lá!

Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.

Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por

Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.

Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada

E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.

Não se zangam com ela.

São tolerantes com ela.

O que eu era um vaso vazio?

Olham os cacos absurdamente conscientes,

Mas conscientes de si-mesmos, não conscientes deles.

Olham e sorriem.

Sorriem tolerantes à criada involuntária.

Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.

Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os

A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?

Um caco.

E os deuses olham-no especialmente, pois não sabem porque ficou ali.

Ah a frescura na face de não cumprir um dever!

Faltar é positivamente estar no campo!

Que refúgio o não se poder ter confiança em nós!

Respiro melhor agora que passaram as horas dos

Faltei a todos, com uma deliberação do desleixo,

Fiquei esperando a vontade de ir para lá, que eu saberia

Sou livre, contra a sociedade organizada e vestida.

Estou nu, e mergulho na água da minha imaginação.

É tarde para eu estar em qualquer dos dois pontos onde

Deliberadamente à mesma hora...

Está bem, ficarei aqui sonhando versos e sorrindo em

É tão engraçada esta parte assistente da vida!

Até não consigo acender o cigarro seguinte... Se é um

Fique com os outros, que me esperam, no desencontro

. Publicado na revista Presença, no 20, abril-maio, 1929. VOLTAR.

POEMA DE CANÇÃO SOBRE A ESPERANÇA

I

Dá-me lírios, lírios,

E rosas também.

Mas se não tens lírios

Nem rosas a dar-me,

Tem vontade ao menos

De me dar os lírios

E também as rosas.

Basta-me a vontade,

Que tens, se a tiveres,

De me dar os lírios

E as rosas também,

E terei os lírios -

Os melhores lírios -

E as melhores rosas

Sem receber nada,

A não ser a prenda

Da tua vontade

De me dares lírios

E rosas também.

II

Usas um vestido

Que é uma lembrança

Para o meu coração.

Usou-o outrora

Alguém que me ficou

Lembrada sem vista.

Tudo na vida

Se faz por recordações.

Ama-se por memória.

Certamulher faz-nos ternura

Por um gesto que lembra a nossa mãe.

Certa rapariga faz-nos alegria

Por falar como a nossa irmã.

Certa criança arranca-nos da desatenção

Porque amámos uma mulher parecida com ela

Quando éramos jovens e não lhe falávamos.

Tudo é assim, mais ou menos,

O coração anda aos trambulhões.

Viver é desencontrar-se consigo mesmo.

No fim de tudo, se tiver sono, dormirei.

Mas gostava de te encontrar e que falássemos.

Estou certo que simpatizaríamos um com o outro.

Mas se não nos encontrarmos, guardarei o momento

Em que pensei que nos poderíamos encontrar.

Guardo tudo,

Guardo as cartas que me escrevem,

Guardo até as cartas que não me escrevem -

Santo Deus, a gente guarda tudo mesmo que não queira,

E o teu vestido azulinho, meu Deus, se eu te pudesse

Através dele até mim!

Enfim, tudo pode ser...

És tão nova - tão jovem, como diria o Ricardo Reis -

E a minha visão de ti explode literariamente,

E deito-me para trás na praia e rio como um elemental

Arre, sentir cansa, e a vida é quente quando o sol está

Boa noite na Austrália!

Não se preocupem comigo: também tenho a verdade.

Tenho-a a sair da algibeira

Como um prestidigitador.

Também pertenço...

Ninguém conclui sem mim, é claro,

E estar triste é ter ideias destas.

Ó meu capricho entre terraços aristocráticos,

Comes acorda em mangas de camisa no meu coração.

Ah, no terrível silêncio do quarto

O relógio com o seu som de silêncio!

Monotonia!

Quem me dará outra vez a minha infância perdida?

Quem ma encontrará no meio da estrada de Deus -

Perdida definitivamente, como um lenço no comboio.

A liberdade, sim, a liberdade!

A verdadeira liberdade!

Pensar sem desejos nem convicções.

Ser dono de si mesmo sem influência de romances!

Existir sem Freud nem aeroplanos,

Sem cabarets, nem na alma, sem velocidades, nem no

A liberdade do vagar, do pensamento são, do amor às

A liberdade de amar a moral que é preciso dar à vida!

Como o luar quando as nuvens abrem

A grande liberdade cristã da minha infância que rezava

Estende de repente sobre a terra inteira o seu manto de

A liberdade, a lucidez, o raciocínio coerente,

A noção jurídica da alma dos outros como humana,

A alegria de ter estas coisas, e poder outra vez

Gozar os campos sem referência a coisa nenhuma

E beber água como se fosse todos os vinhos do mundo!

Passos todos passinhos de criança...

Sorriso da velha bondosa...

Apertar da mão do amigo sério...

Que vida que tem sido a minha!

Quanto tempo de espera no apeadeiro!

Quanto viver pintado em impresso da vida!

Ah, tenho uma sede sã. Dêem-me a liberdade,

Dêem-ma no púcaro velho de ao pé do pote

Da casa do campo da minha velha infância...

Eu bebia e ele chiava,

Eu era fresco eele era fresco,

E como eu não tinha nada que me ralasse, era livre.

E salvo este desejo de liberdade e de bem e de ar, que é

Que é do púcaro e da inocência?

Que é de quem eu deveria ter sido?

. Migalhas de pão ensopadas em água fervente, com azeite e alho. VOLTAR.

DILUENTE

A vizinha do número catorze ria hoje da porta

De onde há um mês saiu o enterro do filho pequeno.

Ria naturalmente com a alma na cara.

Está certa: é a vida.

A dor não dura porque a dor não dura.

Está certa.

Repito: está certa.

Mas o meu coração não está certo.

O meu coração romântico faz enigmas do egoísmo da

Cá está a lição, ó alma de gente!

Se a mãe esquece o filho que saiu dela e morreu,

Quem se vai dar ao trabalho de se lembrar de mim?

Estou só no mundo, como um tijolo partido...

Posso morrer como o orvalho seca,

Por uma arte natural da natureza solar.

Posso morrer à vontade da deslembrança,

Posso morrer como ninguém...

Mas isto dói,

Isto é indecente para quem tem coração...

Isto...

Sim, isto fica-me nas goelas como uma sandwich com

Glória? Amor? O anseio de uma alma humana?

Apoteose às avessas...

Dêem-me Água de Vidago, que eu quero esquecer a

. Água medicinal da aldeia de mesmo nome, em Portugal. VOLTAR

DE LA MUSIQUE

Ah, pouco a pouco, entre as árvores antigas,

A figura dela emerge e eu deixo de pensar...

Pouco a pouco, da angústia de mim vou eu mesmo

As duas figuras encontram-se na clareira ao pé do lago...

...As duas figuras sonhadas,

Porque isto foi só um raio de luar e uma tristeza minha,

E uma suposição de outra coisa,

E o resultado de existir...

Verdadeiramente, ter-se-iam encontrado as duas figuras

Na clareira ao pé do lago?

(...Mas se não existem?...)

...Na clareira ao pé do lago?...

ANIVERSÁRIO

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu era feliz e ninguém estava morto.

Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de

E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,

De ser inteligente para entre a família,

E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.

Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.

Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da

Sim, o que fui de suposto a mim mesmo,

O que fui de coração e parentesco,

O que fui de serões de meia-província,

O que fui de amarem-me e eu ser menino.

O que fui, ai, meu Deus!, o que só hojesei que fui...

A que distância!...

(Nem o acho...)

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do

Pondo grelado nas paredes...

O que eu sou hoje(e a casa dos que me amaram treme

O que eu sou hoje é terem vendido a casa,

É terem morrido todos,

É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!

Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,

Por uma viagem metafísica e carnal,

Com uma dualidade de eu para mim...

Comer o passado como pão de fome, sem tempo de

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para

A mesa posta com mais lugares, com melhores

O aparador com muitas coisas - doces, frutas, o resto

As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!

Não penses! Deixa o pensar na cabeça!

Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!

Hoje já não faço anos.

Duro.

Somam-se-me dias.

Serei velho quando o for.

Mais nada.

Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

. Publicado na revista Presença, no 27, junho-julho, 1930. Segundo Cleonice Berardinelli(o. cit.), Pessoa teria escrito a João Gaspar Simões: "A data está fictícia; escrevi esses versos no dia dos meus anos(de mim), quer dizer, a 13 de junho, mas o Álvaro nasceu a 15 de outubro, e assim se erra a data certa". Poesia de caráter confessional, coloca na criança, portanto no passado, a possibilidade de felicidade pelo "não perceber coisa alguma" e pela sua posição de "centro" do universo familiar. O adulto(presente) é o esvaziamento dessa possibilidade. É terem vendido a sua casa. É a perda da sensação de totalidade, de família, de alegria. VOLTAR.

P-HÁ

Hoje, que sinto nada a vontade, e não sei que dizer,

Hoje, que tenho a inteligência sem saber o que qu'rer,

Quero escrever o meu epitáfio: Álvaro de Campos jaz

Aqui, o resto a Antologia Grega traz...

E a que propósito vem este bocado de rimas?

Nada... Um amigo meu, chamado(suponho) Simas,

Perguntou-me na rua o que é que estava a fazer,

E escrevo estes versos assim em vez de lho não saber

É raro eu rimar, e é raro alguém rimar com juízo.

Mas às vezes rimar é preciso.

Meu coração faz pá como um saco de papel socado

Com força,cheio de sopro, contra a parede do lado.

E o transeunte, num sobressalto, volta-se de repente

E eu acabo este poema indeterminadamente.

Nunca, por mais que viaje, por mais que conheça

O sair de um lugar, o chegar a um lugar, conhecido ou

Perco, ao partir, ao chegar, e na linha móbil que os une,

A sensação de arrepio, o medo do novo, a náusea -

Aquela náusea que é o sentimento que sabe que o corpo

Trinta dias de viagem, três dias de viagem, três horas

Sempre a opressão se infiltra no fundo do meu coração.

Ah, o som do jantar nas casas felizes!

Passo, e os meus ouvidos vêem para dentro das casas.

Passo, na noite da rua suburbana,

Regresso da conferência com peritos como eu.

Regresso só, e poeta agora, sem perícia nem engenharia,

Humano até ao som dos meus sapatos solitários no

Onde ao longe a porta da tenda tardia se encobre com

O meu exílio natural enternece-se no escuro

Da rua meu lar, da rua meu ser, da rua meu sangue.

Ser a criança economicamente garantida,

Com a cama fofa e o sono da infância e a criada!

Ó meu coração sem privilégio!

Minha sensibilidade da exclusão!

Minha mágoa externa de ser eu!

Quem fez lenha de todo o berço da minha infância?

Quem fez trapos de limpar o chão dos meus lençóis de

Quem expôs por cima das cascas e do cotão das casas

Nos caixotes do lixo do mundo

As rendas daquela camisa que fizeram para me

Quem me vendeu ao Destino?

Quem me trocou por mim?

Venho de falar precisamente em circunstâncias positivas.

Pus pontos concretos, como um numerador automático.

Tive razão como uma balança.

Disse como sabia.

Agora, a caminho do carro eléctrico do terminus de

Passo, bandido, metafísico, sob a luz dos candeeiros

E na sombra entre os dois candeeiros afastados tenho

Mas apanharei o eléctrico.

Soará duas vezes a campainha lá do fim invisível da

Pelas mãos de dedos grossos do condutor por barbear.

Apanharei o eléctrico.

Ai de mim, apesar de tudo, sempre apanhei o eléctrico -

Sempre, sempre, sempre...

Voltei sempre à cidade,

Voltei sempre à cidade, depois de especulações e desvios,

Voltei sempre com vontade de jantar,

Mas nunca jantei o jantar que soa atrás de persianas

Das casas felizes dos arredores por onde se volta ao

Das casas conjugais da normalidade da vida!

Pago o bilhete através de interstícios,

E o condutor passa por mim como se eu fosse a Crítica

- Paguei o bilhete. Cumpri o dever. Sou vulgar.

E tudo isto são coisas que nem o suicídio cura...

M d'A Estás a ler isso? Para que é que estás a ler isso?

Percebes algumacoisa? Não, é para ver se percebo.

Hoje que tudo me falta, como se fosse o chão,

Que me conheço atrozmente, que toda a literatura

Que uso de mim para mim, para ter consciência de

Caiu, como o papel que embrulhou um rebuçado mau -

Hoje tenho uma alma parecida com a morte dos nervos -

Necrose da alma,

Apodrecimento dos sentidos.

Tudo quanto tenho feito, conheço-o claramente: é nada.

Tudo quanto sonhei, podia tê-lo sonhado o moço de

Tudo quanto amei, se hoje me lembro que o amei,

Ó Paraíso Perdido da minha infância burguesa,

Meu Éden agasalhando o chá nocturno,

Minha colcha de crochet de menino!

O Destino acabou-me como a um manuscrito in-

Nem altos nem baixos - consciência de nem sequer a ter...

Papelotes da velha solteira - toda a minha vida.

Tenho uma náusea do estômago nos pulmões.

Custa-me a respirar para sustentar a alma.

Tenho uma quantidade de doenças tristes nas juntas

Minha grinalda de poeta - eras de flores de papel,

A tua imortalidade presumida era o não teres vida.

Minha coroa de louros de poeta - sonhada

Sem capotinho mas com fama,

Sem dados mas com Deus -

Tabuleta de vinho falsificado na última taberna da

Há tantos deuses!

São como os livros - não se pode ler tudo, nunca se

Feliz quem conhece só um deus, e o guarda em segredo.

Tenho todos os dias crenças diferentes -

Às vezes no mesmo dia tenho crenças diferentes -

E gostava de ser a criança que me atravessa agora

A visão da janela abaixo -

Comendo um bolo barato(ela é pobre) sem causa

Animal inutilmente erguido acima dos outros

E cantando, entre as dentadas, uma cantiga obscena de

Sim, há muitos deuses...

Mas dava eu tudo ao deus que me matasse aquela criança.

Cesário, que conseguiu

Ver claro, ver simples, ver puro,

Ver o mundo nas suas cousas,

Ser um olhar com uma alma por trás, e que vida tão

Criança alfacinha do Universo,

Bendito sejas com tudo quanto está à vista!

Enfeito, no meu coração, a praça da Figueira para ti

E não há recanto que não veja por ti, nos recantos de seus recantos.

PARAGEM ZONA

Tragam-me esquecimento em travessas!

Quero comer o abandono da vida!

Quero perder o hábito de gritar para dentro.

Arre, já basta! Não sei o quê, mas já basta...

Então viver amanhã, hein?... E o que se faz hoje?

Viver amanhã por ter adiado hoje?

Comprei por acaso um bilhete para esse espectáculo?

Que gargalhadas daria quem pudesse rir!

E agora aparece o eléctrico - o de que eu estou à espera -

Antes fosse outro...Ter de subir já!

Ninguém me obriga, mas deixá-lo passar, porquê?

Só deixando passar todos, e a mim mesmo, e à vida...

Que náuseano estômago real que é a alma consciente!

Que sono bom o ser outra pessoa qualquer...

Já compreendo porque é que as crianças querem ser

Não, não compreendo nada....

Tarde de azul e ouro, alegria das gentes, olhos claros da

DIAGNÓSTICO

Pouca verdade! Pouca verdade!

Tenho razão enquanto não penso.

Pouca verdade...

Devagar...

Pode alguém chegar à vidraça...

Nada de emoções!...

Cautela!

Sim, se mo dessem aceitaria... Não precisas insistir,

Para quê?

Que pergunta! Aceitaria...

BICARBONATO DE SODA

Súbita, uma angústia...

Ah, que angústia, que náusea do estômago à alma!

Que amigos que tenho tido!

Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido!

Que esterco metafísico os meus propósitos todos!

Uma angústia,

Uma desconsolação da epiderme da alma,

Um deixar cair os braços ao sol-pôr do esforço...

Renego.

Renego tudo.

Renego mais do que tudo.

Renego a gládio e fim todos os Deuses e a negação deles.

Mas o que é que me falta, que o sinto faltar-me no

Que atordoamento vazio me esfalfa no cérebro?

Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me?

Não: vou existir. Arre! Vou existir.

E-xis-tir...

E - xis - tir ...

Meu Deus! Que budismo me esfria no sangue!

Renunciar de portas todas abertas,

Perante a paisagem todas as paisagens,

Sem esperança, em liberdade,

Sem nexo,

Acidente da inconsequência da superfície das coisas,

Monótono mas dorminhoco,

E que brisas quando as portas e as janelas estão todas

Que verão agradável dos outros!

Dêem-me de beber, que não tenho sede!

A rapariga inglesa, tão loura, tão jovem, tão boa

Que queria casar comigo...

Que pena eu não ter casado com ela...

Teria sido feliz

Mas como é que eu sei se teria sido feliz?

Como é que eu sei qualquer coisa a respeito do que

Do que teria sido, que é o que nunca foi?

Hoje arrependo-me de não ter casado com ela,

Mas antes por até a hipótese de me poder arrepender

E assim é tudo arrependimento,

E o arrependimento é pura abstracção.

Dá um certo desconforto

Mas também dá um certo sonho...

Sim, aquela rapariga foi uma oportunidade da minha

Hoje o arrependimento é que é afastado da minha alma.

Santo Deus! que complicação por não ter casado com

Mas se não me esqueceu?

Se(porque há disso) me lembra ainda e é constante

(Escuso de me achar feio, porque os feios também são

E às vezes podem melhorar!)

Se não me esqueceu, ainda me lembra.

Isto, realmente, é já outra espécie de arrependimento.

E fazer sofrer alguém não tem esquecimento.

Mas, afinal, isto são conjecturas da vaidade.

Bem se há-de ela lembrar de mim, com o quarto filho

Debruçada sobre o Daily Mirror a ver a Pussy Maria.

Pelo menos é melhor pensar que é assim.

É um quadro de casasuburbana inglesa,

É uma boa paisagem interior de cabelos louros,

E os remorsos são sombras...

Em todo o caso, se assim é, fica um bocado de ciúme.

O quarto filho do outro, o Daily Mirror na casa deles.

O que podia ter sido...

Sim, sempre o abstracto, o impossível, o irreal mas

O que podia ter sido.

Comem marmelade ao pequeno almoço em Inglaterra...

Vingo-me em toda a linguagem inglesa de ser um

Ah, mas ainda vejo

O teu olhar realmente tão sincero como azul

A olhar como uma outra criança para mim...

E não é com piadas de sal do verso que te apago da

Que tens no meu coração,

Não te disfarço, meu único amor, e não quero nada da

CUL DE LAMPE

Pouco a pouco,

Sem que qualquer cousa me falte,

Sem que qualquer cousa me sobre,

Sem que qualquer cousa esteja exactamente em

Vou andando parado,

Vou vivendo morrendo,

Vou sendo eu através de uma quantidade de gente sem

Vou sendo tudo menos eu.

Acabei.

Pouco a pouco,

Sem que ninguém me falasse

(Que importa tudo quanto me tem sido dito na vida?),

Sem que ninguém me escutasse

(Que importa quanto disse e me ouviram dizer?)

Sem que ninguém me quisesse

(Que importa o que disse quem me disse que queria?),

Muito bem...

Pouco a pouco,

Sem nada disso,

Sem nada que não seja isso,

Vou parando.

Vou parar,

Acabei.

Qual acabei!

Estou farto de sentir e de fingir em pensar,

E não acabei ainda.

Ainda estou a escrever versos.

Ainda estou a escrever.

Ainda estou.

(Não, não vou acabar... ainda...

Não vou acabar.

Acabei.)

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

Subitamente, na rua transversal, uma janela no alto e

E o horror de ter perdido a infância em que ali não estive

E o caminho vagabundo da minha consciência

Que mais querem? Acabei.

Nem falta o canário da vizinha, ó manhã de outro tempo,

Nem o som(cheio de cesto) do padeiro na escada

Nem os pregões que não sei já onde estão -

Nem o enterro(ouço vejo) na rua,

Nem o trovão súbito da madeira das taboinhas de

Nem... quanta cousa, quanta alma, quanto irreparável!

Afinal, agora, tudo cocaína...

Meu amor infância!

Meu passado bibe!

Meu repouso pão com manteiga boa à janela!

Basta, que já estou cego para o que vejo!

Arre, acabei!

Basta!

Sim, é claro,

O universo é negro, sobretudo de noite.

Mas eu sou como toda a gente,

Não tenha eu dores de dentes nem calos, e as outras

Com as outras dores fazem-se versos.

Com as que doem, irrita-se.

A constituição íntima da poesia

Ajuda muito...

(Como analgésico serve para as dores da alma, que são

Deixem-me dormir.

Não! Só quero a liberdade!

Amor, glória, dinheiro são prisões.

Bonitas salas? Bonsestofos? Tapetes moles?

Ah, mas deixem-me sair para ir ter comigo.

Quero respirar o ar sozinho,

Não tenho pulsações em conjunto,

Não sinto em sociedade por quotas,

Não sou senão eu, não nasci senão quem sou, estou

Onde quero dormir? No quintal...

Nada de paredes - só o grande entendimento -

Eu e o universo,

E que sossego, que paz não ver antes de dormir o

Mas o grande esplendor, negro e fresco de todos os

O grande abismo infinito para cima

A pôr brisas e bondades do alto na caveira tapada de

Onde só os olhos - outro céu - revelam o grande céu

Não quero! Dêem-me a liberdade!

Quero ser igual a mim mesmo.

Não me capem com ideais!

Não me vistam as camisas de forças das maneiras!

Não me façam elogiável ou inteligível!

Não me matem em vida!

Quero saber atirar com essa bola alta à lua

E ouvi-la cair no quintal do lado!

Quero ir deitar-me na relva, pensando "amanhã vou

Amanhã vou buscá-la ao quintal ao lado...

Amanhã vou buscá-la ao quintal ao lado...

Amanhã vou buscá-la ao quintal

Buscá-la ao quintal

Ao quintal

Ao lado..."

. Termo tipográfico para designar um ornamento colocado na parte inferior da página indicando fim do capítulo ou do livro. VOLTAR.

TRAPO

O dia deu em chuvoso.

A manhã, contudo, estava bastante azul.

O dia deu em chuvoso.

Desde manhã eu estava um pouco triste.

Antecipação? Tristeza? Coisa nenhuma?

Não sei: já ao acordar estava triste.

O dia deu em chuvoso.

Bem sei: a penumbra da chuva é elegante.

Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.

Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é

Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser

Dêem-me o céu azul e o sol visível.

Névoa, chuvas, escuros - isso tenho eu em mim.

Hoje quero só sossego.

Até amaria o lar, desde que o não tivesse.

Chego a ter sono de vontade de ter sossego.

Não exageremos!

Tenho efectivamente sono, sem explicação.

O dia deu em chuvoso.

Carinhos? Afectos? São memórias...

É preciso ser-se criança para os ter...

Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!

O dia deu em chuvoso.

Boca bonita da filha do caseiro,

Polpa de fruta de um coração por comer...

Quando foi isso? Não sei...

No azul da manhã...

O dia deu em chuvoso.

Chega através do dia de névoa alguma coisa do

Vem brandamente com a tarde a oportunidade da perda.

Adormeço sem dormir, ao relento da vida.

É inútil dizer-me que as acções têm consequências.

É inútil eu saber que as acções usam consequências.

É inútil tudo, é inútil tudo, é inútil tudo.

Através do dia de névoa não chega coisa nenhuma.

Tinha agora vontade

De ir esperarao comboio da Europa o viajante

De ir ao cais ver entrar o navio e ter pena de tudo.

Não vem com a tarde oportunidade nenhuma.

Grandes são os desertos, e tudo é deserto.

Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto

Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.

Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes -

Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,

Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.

Grandes são os desertos, minha alma!

Grandes são os desertos.

Não tirei bilhete para a vida,

Errei a porta do sentimento,

Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.

Hoje não me resta, em vésperas de viagem,

Com a mala aberta esperando a arrumação adiada,

Sentado na cadeira em companhia com as camisas que

Hoje não me resta(à parte o incómodo de estar assim

Senão saber isto:

Grandes são os desertos, e tudo é deserto.

Grande é a vida, e não vale a pena haver vida.

Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em

Que com arrumação das mãos factícias(e creio que

Acendo o cigarro para adiar a viagem,

Para adiar todas as viagens.

Para adiar o universo inteiro.

Volta amanhã, realidade!

Basta por hoje, gentes!

Adia-te, presente absoluto!

Mais vale não ser que ser assim.

Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro,

E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito.

Mas tenho que arrumar a mala,

Tenho por força que arrumar a mala,

A mala.

Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão

Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala.

Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre

A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino.

Tenho que arrumar a mala de ser.

Tenho que existir a arrumar malas.

A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte.

Olho para o lado, verifico que estou a dormir.

Sei só que tenho que arrumar a mala,

E que os desertos são grandes e tudo é deserto,

E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já

Ergo-me de repente todos os Césares.

Vou definitivamente arrumar a mala.

Arre, hei-de arrumá-la e fechá-la;

Hei-de vê-la levar de aqui,

Hei-de existir independentemente dela.

Grandes são os desertos e tudo é deserto,

Salvo erro, naturalmente.

Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!

Mais vale arrumar a mala.

Fim.

Cruz na porta da tabacaria!

Quem morreu? O próprio Alves? Dou

Ao diabo o bem-estar que trazia.

Desde ontem a cidade mudou.

Quem era? Ora, era quem eu via.

Todos os dias o via. Estou

Agora sem essa monotonia.

Desde ontem a cidade mudou.

Ele era o dono da tabacaria.

Um ponto de referênciade quem sou

Eu passava ali de noite e de dia.

Desde ontem a cidade mudou.

Meu coração tem pouca alegria,

E isto diz que é morte aquilo onde estou.

Horror fechado da tabacaria!

Desde ontem a cidade mudou.

Mas ao menos a ele alguém o via,

Ele era fixo, eu, o que vou,

Se morrer, não falto, e ninguém diria.

Desde ontem a cidade mudou.

Tenho escrito mais versos que verdade.

Tenho escrito principalmente

Porque outros têm escrito.

Se nunca tivesse havido poetas no mundo,

Seria eu capaz de ser o primeiro?

Nunca!

Seria um indivíduo perfeitamente consentível,

Teria casa própria e moral.

Senhora Gertrudes!

Limpou mal este quarto:

Tire-me estas ideias de aqui!

Tenho uma grande constipação,

E toda a gente sabe como as grandes constipações

Alteram todo o sistema do universo,

Zangam-nos contra a vida,

E fazem espirrar até à metafísica.

Tenho o dia perdido cheio de me assoar.

Dói-me a cabeça indistintamente.

Triste condição para um poeta menor!

Hoje sou verdadeiramente um poeta menor.

O que fui outrora foi um desejo; partiu-se.

Adeus para sempre, rainha das fadas!

As tuas asas eram de sol, e eu cá vou andando.

Não estarei bem se não me deitar na cama.

Nunca estive bem senão deitando-me no universo.

Excusez un peu... Que grande constipação física!

Preciso de verdade e da aspirina.

. Publicado na revista Presença, no 31-32, março-junho, 1931 VOLTAR.

. Variante: 27o verso - Mais vale não ter que ser assim. VOLTAR.

. Na edição organizada por Cleonice Berardinelli, as duas últimas estrofes aparecem assim - Meu coração tem pouca alegria,/ Vejo que a morte está onde estou./ Tapais jazigo - tabacaria!/ Desde ontem a cidade mudou. // Mas ao menos a ele, alguém o via,/ Ele era fixo. Eu, porque vou,/ Não falto; por mim ninguém diria/ Desde ontem a cidade mudou.

Outras variantes: 14o verso - E isto diz que é morte aqui onde estou. 15o verso - Taipais caixão da tabacaria! VOLTAR.

. Publicado na revista Presença, 2a Série, no 1, novembro, 1939. A expressão "excusez un peu" não tem qualquer sentido; no penúltimo verso, Cleonice Berardinelli corrige para "excusez du peu", que significa "perdoe o exagero". VOLTAR.

OXFORDSHIRE

Quero o bem, e quero o mal, e afinal não quero nada.

Estou mal deitado sobre a direita, e mal deitado sobre a

E mal deitado sobre a consciência de existir.

Estou universalmente mal, metafisicamente mal,

Mas o pior é que me dói a cabeça.

Isso é mais grave que a significação do universo.

Uma vez, ao pé de Oxford, num passeio campestre,

Vi erguer-se, duma curva da estrada, na distância próxima,

A torre-velha duma igreja acima de casas da aldeia ou

Ficou-me fotográfico esse incidente nulo

Como uma dobra transversal escangalhando o vinco

Agora vem a propósito...

Da estrada eu previa espiritualidade a essa torre de igreja

Queera a fé de todas as eras, e a eficaz caridade.

Da vila, quando lá cheguei, a torre da igreja era a torre

E ainda por cima, estava ali.

É-se feliz na Austrália, desde que lá se não vá.

Sim, sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,

Espécie de acessório ou sobresselente próprio,

Arredores irregulares da minha emoção sincera,

Sou eu aqui em mim, sou eu.

Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.

Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.

Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em

E ao mesmo tempo, a impressão, um pouco

Como de um sonho formado sobre realidades mistas,

De me ter deixado, a mim, num banco de carro eléctrico,

Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua,

Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra

De haver melhor em mim do que eu.

Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco

Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos

De haver falhado tudo como tropeçar no capacho,

De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas,

De haver substituído qualquer coisa a mim algures na

Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica,

Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a

De que mais vale ser criança que querer compreender

A impressão de pão com manteiga e brinquedos,

De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina,

De uma boa vontade para com a vida encostada de

Num ver chover com som lá fora

E não as lágrimas mortas de custar a engolir.

Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado,

O emissário sem carta nem credenciais,

O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro,

A quem tinem as campainhas da cabeça

Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.

Sou eu mesmo, a charada sincopada

Que ninguém da roda decifra nos serões de província.

Sou eu mesmo, que remédio!...

Não sei se os astros mandam neste mundo,

Nem se as cartas -

As de jogar ou as do Tarot -

Podem revelar qualquer coisa.

Não sei se deitando dados

Se chega a qualquer conclusão.

Mas também não sei

Se vivendo como o comum dos homens

Se atinge qualquer coisa.

Sim, não sei

Se hei-de acreditar neste sol de todos os dias,

Cuja autenticidade ninguém me garante,

Ou se não será melhor, por melhor ou por mais

Acreditar em qualquer outro sol -

Outro que ilumine até de noite,

Qualquer profundidade luminosa das coisas

De que não percebo nada...

Por enquanto...

(Vamos devagar)

Por enquanto

Tenho o corrimão da escada absolutamente seguro,

Seguro com a mão -

O corrimão queme não pertence

E apoiado ao qual ascendo...

Sim... Ascendo...

Ascendo até isto:

Não sei se os astros mandam neste mundo...

Ah! Ser indiferente!

É do alto do poder da sua indiferença

Que os chefes dos chefes dominam o mundo.

Ser alheio até a si mesmo!

É do alto do sentir desse alheamento

Que os mestres dos santos dominam o mundo.

Ser esquecido de que se existe!

É do alto do pensar desse esquecer

Que os deuses dos deuses dominam o mundo.

(Não ouvi o que dizias...

ouvi só a musica, e nem a essa ouvi...

Tocavas e falavas ao mesmo tempo?

Sim, creio que tocavas e falavas ao mesmo tempo...

Com quem?

Com alguém em quem tudo acabava no dormir do

REGRESSO AO LAR

Há quanto tempo não escrevo um soneto

Mas não importa: escrevo este agora.

Sonetos são infância, e, nesta hora,

A minha infância é só um ponto preto,

Que num imóbil e fatal trajecto

Do comboio que sou me deita fora.

E o soneto é como alguém que mora

Há dois dias em tudo que projecto.

Graças a Deus, ainda sei que há

Quatorze linhas a cumprir iguais

Para a gente saber onde é que está...

Mas onde a gente está, ou eu, não sei...

Não quero saber mais de nada mais

E berdamerda para o que saberei.

Sim, está tudo certo.

Está tudo perfeitamente certo.

O pior é que está tudo errado.

Bem sei que esta casa é pintada de cinzento

Bem sei qual é o número desta casa -

Não sei, mas poderei saber, como está avaliada

Nessas oficinas de impostos que existem para isto -

Bem sei, bem sei...

Mas o pior é que há Almas lá dentro

E a Tesouraria de Finanças não conseguiu livrar

A vizinha do lado de lhe morrer o filho.

A Repartição de não sei quê não pôde evitar

Que o marido da vizinha do andar mais acima lhe

Mas, está claro, está tudo certo...

E, excepto estar errado, é assim mesmo: está certo...

AH, UM SONETO...

Meu coração é um almirante louco

que abandonou a profissão do mar

e que a vai relembrando pouco a pouco

em casa a passear, a passear...

No movimento(eu mesmo me desloco

nesta cadeira, só de o imaginar)

o mar abandonado fica em foco

nos músculos cansados de parar.

Há saudades nas pernas e nos braços.

Há saudades no cérebro por fora.

Há grandes raivas feitas de cansaços.

Mas - esta é boa! - era do coração

que eu falava... e onde diabo estou eu agora

com almirante em vez de sensação?...

Bamboleamos, moscas, com asas e presas,

No mundo, teia de aranha sobre o abismo.

Não fales alto, que isto aqui é vida -

Vida e consciência dela,

Porque a noite avança, estou cansado, não durmo,

E,se chego à janela,

Vejo, de sob as pálpebras da besta, os muitos lugares

Cansei o dia com esperanças de dormir de noite.

É noite quase outro dia. Tenho sono. Não durmo.

Sinto - em toda a humanidade e através do cansaço -

Um cansaço que quase me faz espuma os ossos... -

Somos todos aquilo...

É inútil prolongar a conversa de todo este silêncio...

Jazes sentado, fumando, no canto do sofá grande -

Jazo sentado, fumando, no sofá de cadeira funda.

Entre nós não houve, vai para uma hora,

Senão os olhares de uma só vontade de dizer.

Renovávamos, apenas, os cigarros - o novo no ocaso

E continuávamos a conversa silenciosa,

Interrompida apenas pelo desejo olhado de falar...

Sim, é inútil,

Mas tudo, até a vida ao ar livre, é igualmente inútil.

Há coisas que são difíceis de dizer...

Este problema, por exemplo.

De qual de nós é que ela gosta? Como é que podemos

Nem falar nela, não é verdade?

E sobretudo não ser o primeiro a pensar em falar nela!

A falar nela ao impassível outro e amigo...

Caiu a cinza do teu cigarro no teu casaco preto -

Ia advertir-te, mas para isso era preciso falar...

Entreolhámo-nos de novo, como transeuntes cruzados.

E o pecado mútuo que não cometemos

Assomou ao mesmo tempo ao fundo dos dois olhares.

De repente espreguiças-te, semi-ergues-te. Escusas de

"Vou-me deitar!" disseste, só porque o vais dizer.

E tudo isto, tão psicológico, tão involuntário,

Por causa de uma empregada de escritório agradável e

Ah, vamo-nos deitar!

Se fizer versos a respeito disto, já sabes, é desprezo!

Acordo de noite, muito de noite, no silêncio todo.

São - tictac visível - quatro horas e tarda o dia.

Abro a janela directamente, no desespero da insónia.

E, de repente, humano,

O quadrado com cruz de uma janela iluminada!

Fraternidade na noite!

Fraternidade involuntária, incógnita, na noite!

Estamos ambos dispertos e a humanidade é alheia.

Dorme. Nós temos luz.

Quem serás? Doente, moedeiro falso, insone simples

Não importa. A noite eterna, informe, infinita,

Só tem, neste lugar, a humanidade das nossas duas

O coração latente das nossas duas luzes,

Neste momento e lugar, ignorando-nos, somos toda a

Sobre o parapeito da janela da traseira da casa,

Sentindo húmida da noite a madeira onde agarro,

Debruço-me para o infinito e, um pouco, para mim.

Nem galos gritando ainda no silêncio definitivo!

Que fazes, camarada na janela com luz?

Sonho, falta de sono, vida?

Tom amarelo cheio da tua janela incógnita...

Tem graça: não tens luz eléctrica.

Ó candeeiros de petróleo da minha infância perdida!

Quero acabar entre rosas, porque as amei na infância.

Os crisântemos de depois, desfolhei-os a frio.

Falem pouco, devagar.

Que eu não oiça, sobretudo com o pensamento.

Oque quis? Tenho as mãos vazias,

Crispadas flèbilmente sobre a colcha longínqua.

O que pensei? Tenho a boca seca, abstracta.

O que vivi? Era tão bom dormir!

. Publicado na revista Presença, no 34, novembro, 1931/fevereiro, 1932. VOLTAR

. Publicado na revista Descobrimento, no de inverno, 1932. VOLTAR

NOTAS EM TAVIRA

Cheguei finalmente à vila da minha infância.

Desci do comboio, recordo-me, olhei, vi, comparei.

(Tudo isto levou o espaço de tempo de um olhar

Tudo é velho onde fui novo.

Desde já - outras lojas, e outras frontarias de pinturas

Um automóvel que nunca vi(não os havia antes)

Estagna amarelo escuro ante uma porta entreaberta.

Tudo é velho onde fui novo.

Sim, porque até o mais novo que eu é ser velho o resto.

A casa que pintaram de novo é mais velha porque a

Paro diante da paisagem, e o que vejo sou eu.

Outrora aqui antevi-me esplendoroso aos 40 anos -

Senhor do mundo -

E aos 41 que desembarco do comboio involuntário.

O que conquistei? Nada.

Nada, aliás, tenho a valer conquistado.

Trago o meu tédio e a minha falência fisicamente no

De repente avanço seguro, resolutamente.

Passou toda a minha hesitação.

Esta vila da minha infância é afinal uma cidade

(Estou à vontade, como sempre, perante o estranho, o

Sou forasteiro, tourist, transeunte.

E claro: é isso que sou.

Até em mim, meu Deus, até em mim.

REALIDADE

Sim, passava aqui frequentemente há vinte anos...

Nada está mudado - ou, pelo menos, não dou por isso -

Nesta localidade da cidade...

Há vinte anos!...

O que eu era então! Ora, era outro...

Há vinte anos, e as casas não sabem de nada...

Vinte anos inúteis(e sei lá se o foram!

Sei eu o que é útil ou inútil?)...

Vinte anos perdidos(mas o que seria ganhá-los?)

Tento reconstruir na minha imaginação

Quem eu era e como era quando por aqui passava

Há vinte anos...

Não me lembro, não me posso lembrar.

O outro que aqui passava então,

Se existisse hoje, talvez se lembrasse...

Há tanta personagem de romance que conheço

De que esse eu-mesmo que há vinte anos passava aqui!

Sim, o mistério do tempo.

Sim, o não se saber nada,

Sim, o termos todos nascido a bordo.

Sim, sim, tudo isso, ou outra forma de o dizer...

Daquela janela do segundo-andar, ainda idêntica a si

Debruçava-se então uma rapariga mais velha que eu,

Hoje, se calhar, está o quê?

Podemos imaginar tudo do que nada sabemos.

Estou parado física e moralmente: não quero imaginar

Houve um dia em que subi esta rua pensando

Pois Deus dá licença que o que não existe seja

Hoje, descendo esta rua, nem no passadopenso

Quando muito, nem penso...

Tenho a impressão que as duas figuras se cruzaram na

Mas aqui mesmo, sem tempo a perturbar o cruzamento.

Olhámos indiferentemente um para o outro.

E eu o antigo lá subi a rua imaginando um futuro

E eu o moderno lá desci a rua não imaginando nada.

Talvez isto realmente se desse...

Verdadeiramente se desse...

Sim, carnalmente se desse...

Sim, talvez...

E o esplendor dos mapas, caminho abstracto para a

Letras e riscos irregulares abrindo para a maravilha.

O que de sonho jaz nas encadernações vetustas,

Nas assinaturas complicadas(ou tão simples e esguias)

(Tinta remota e desbotada aqui presente para além da

Ó enigma visível do tempo, o nada vivo em que estamos!)

O que de negado à nossa vida quotidiana vem nas

O que certas gravuras de anúncios sem querer anunciam.

Tudo quanto sugere, ou exprime o que não exprime.

Tudo o que diz o que não diz,

E a alma sonha, diferente e distraída.

PSIQUETIPIA(OU PSICOTIPIA)

Símbolos. Tudo símbolos...

Se calhar, tudo é símbolos...

Serás tu um símbolo também?

Olho, desterrado de ti, as tuas mãos brancas

Postas, com boas maneiras inglesas, sobre a toalha da

Pessoas independentes de ti...

Olho-as: também serão símbolos?

Então todo o mundo é símbolo e magia?

Se calhar é...

E porque não há-de ser?

Símbolos...

Estou cansado de pensar..

Ergo finalmente os olhos para os teus olhos que me

Sorris, sabendo bem em que eu estava pensando...

Meu Deus! e não sabes...

Eu pensava nos símbolos...

Respondo fielmente à tua conversa por cima da mesa...

"It was very strange, wasn't it?"

"Awfully strange. And how did it end?"

"Well, it didn't end. It never does, you know."

Sim, you know... Eu sei...

Sim, eu sei...

É o mal dos símbolos, you know.

Yes, I know.

Conversa perfeitamente natural... Mas os símbolos?

Não tiro os olhos de tuas mãos... Quem são elas?

Meu Deus! Os símbolos... Os símbolos...

. Era muito estranho, não era? / Horrivelmente estranho. E como terminou? / Bem, não terminou. Nunca termina, você sabe. VOLTAR

MAGNIFICAT

Quando é que passará esta noite interna, o universo,

E eu, a minha alma, terei o meu dia?

Quando é que despertarei de estar acordado?

Não sei. O sol brilha alto,

Impossível de fitar.

As estrelas pestanejam frio,

Impossíveis de contar.

O coração pulsa alheio,

Impossível de escutar.

Quando é que passará este drama sem teatro,

Ou este teatro sem drama,

E recolherei a casa?

Onde? Como? Quando?

Gato que me fitas com olhos de vida, quem tens lá no

É esse! É esse!

Esse mandará como Josué parar o sol e eu acordarei;

E então será dia.

Sorri, dormindo, minha alma!

Sorri, minha alma, será dia!

PECADO ORIGINAL

Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido?

Será essa, se alguém a escrever,

A verdadeira história da humanidade.

O que há é só omundo verdadeiro, não é nós, só o

O que não há somos nós, e a verdade está aí.

Sou quem falhei ser.

Somos todos quem nos supusemos.

A nossa realidade é o que não conseguimos nunca.

Que é daquela nossa verdade - o sonho à janela da

Que é daquela nossa certeza - o propósito à mesa de

Medito, a cabeça curvada contra as mãos sobrepostas

Sobre o parapeito alto da janela de sacada,

Sentado de lado numa cadeira, depois de jantar.

Que é da minha realidade, que só tenho a vida?

Que é de mim, que sou só quem existo?

Quantos Césares fui!

Na alma, e com alguma verdade;

Na imaginação, e com alguma justiça;

Na inteligência, e com alguma razão -

Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus!

Quantos Césares fui!

Quantos Césares fui!

Quantos Césares fui!

DACTILOGRAFIA

Traço sòzinho, no meu cubículo de engenheiro, o plano,

Firmo o projecto, aqui isolado,

Remoto até de quem eu sou.

Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro

O tic-tac estalado das máquinas de escrever.

Que náusea da vida!

Que abjecção esta regularidade!

Que sono este ser assim!

Outrora, quando fui outro, eram castelos e cavaleiros

(Ilustrações, talvez, de qualquer livro de infância),

Outrora, quando fui verdadeiro ao meu sonho,

Eram grandes paisagens do Norte, explícitas de neve,

Eram grandes palmares do Sul, opulentos de verdes.

Outrora...

Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,

O tic-tac estalado das máquinas de escrever.

Temos todos duas vidas:

A verdadeira, que é a que sonhamos na infância,

E que continuamos sonhando, adultos num substrato

A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros,

Que é a prática, a útil,

Aquela em que acabam por nos meter num caixão.

Na outra não há caixões, nem mortes,

Há só ilustrações de infância:

Grandes livros coloridos, para ver mas não ler;

Grandes páginas de cores para recordar mais tarde.

Na outra somos nós,

Na outra vivemos;

Nesta morremos, que é o que viver quer dizer;

Neste momento, pela náusea, vivo só na outra...

Mas ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,

Se, desmeditando, acordo,

Ergue a voz o tic-tac estalado das máquinas de escrever.

Puseram-me uma tampa -

Todo o céu.

Puseram-me uma tampa.

Que grandes aspirações!

Que magnas plenitudes!

E algumas verdadeiras...

Mas sobre todas elas

Puseram-me uma tampa.

Como a um daqueles penicos -

Lá nos largos tradicionais da província -

Uma tampa.

Não será melhor

Não fazer nada?

Deixar tudo ir de escantilhão pela vida abaixo

Para um naufrágio sem água?

Não será melhor

Colher coisa nenhuma

Nas roseiras sonhadas,

E jazer quieto, a pensar no exílio dos outros,

Nas primaveras por haver?

Não será melhor

Renunciar, como um rebentar de bexiga popular

Na atmosfera das feiras,

A tudo,

Sim, a tudo,

Absolutamente a tudo?

Lisboa com suas casas

De várias cores,

Lisboa com suas casas

De várias cores,

Lisboa com suas casas

De várias cores...

À força de diferente, isto é monótono.

Como à força de sentir,fico só a pensar.

Se, de noite, deitado mas desperto,

Na lucidez inútil de não poder dormir,

Quero imaginar qualquer coisa

E surge sempre outra(porque há sono,

E, porque há sono, um bocado de sonho),

Quero alongar a vista com que imagino

Por grandes palmares fantásticos.

Mas não vejo mais,

Contra uma espécie de lado de dentro de pálpebras,

Que Lisboa com suas casas

De várias cores.

Sorrio, porque, aqui, deitado, é outra coisa.

À força de monótono, é diferente.

E, à força de ser eu, durmo e esqueço que existo.

Fica só, sem mim, que esqueci porque durmo,

Lisboa com suas casas

De várias cores.

Esta velha angústia,

Esta angústia que trago há séculos em mim,

Transbordou da vasilha,

Em lágrimas, em grandes imaginações,

Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,

Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.

Transbordou.

Mal sei como conduzir-me na vida

Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!

Se ao menos endoidecesse deveras!

Mas não: é este estar entre,

Este quase,

Este poder ser que...,

Isto.

Um internado num manicómio é, ao menos, alguém,

Eu sou um internado num manicómio sem

Estou doido a frio,

Estou lúcido e louco,

Estou alheio a tudo e igual a todos:

Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura

Porque não são sonhos

Estou assim...

Pobre velha casa da minha infância perdida!

Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!

Que é do teu menino? Está maluco.

Que é de quem dormia sossegado sob o teu tecto

Está maluco.

Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.

Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!

Por exemplo, por aquele manipanso

Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.

Era feiíssimo, era grotesco,

Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.

Se eu pudesse crer num manipanso qualquer -

Júpiter, Jeová, a Humanidade -

Qualquer serviria,

Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?

Estala, coração de vidro pintado!

Na casa defronte de mim e dos meus sonhos,

Que felicidade há sempre!

Moram ali pessoas que desconheço, que já vi mas não vi.

São felizes, porque não são eu.

As crianças, que brincam às sacadas altas,

Vivem entre vasos de flores,

Sem dúvida, eternamente.

As vozes, que sobem do interior do doméstico,

Cantam sempre, sem dúvida.

Sim, devem cantar.

Quando há festa cá fora, há festa lá dentro.

Assim tem que ser onde tudo se ajusta -

O homem à Natureza, porque a cidade é Natureza.

Que grande felicidade não ser eu!

Mas os outros não sentirão assim também?

Quais outros? Não há outros.

O que os outros sentem é uma casa com a janela fechada,

Ou, quando se abre,

É para as crianças brincarem na varanda de grades,

Entre os vasos de flores que nunca vi quais eram.

Os outros nunca sentem.

Quem sente somos nós,

Sim, todos nós,

Atéeu, que neste momento já não estou sentindo nada

Nada? Não sei...

Um nada que dói...

Saí do comboio,

Disse adeus ao companheiro de viagem,

Tínhamos estado dezoito horas juntos.

A conversa agradável,

A fraternidade da viagem,

Tive pena de sair do comboio, de o deixar.

Amigo casual cujo nome nunca soube.

Meus olhos, senti-os, marejaram-se de lágrimas...

Toda despedida é uma morte...

Sim, toda despedida é uma morte.

Nós, o comboio a que chamamos a vida

Somos todos casuais uns para os outros,

E temos todos pena quando por fim desembarcamos.

Tudo que é humano me comove, porque sou homem.

Tudo me comove, porque tenho,

Não uma semelhança com ideias ou doutrinas,

Mas a vasta fraternidade com a humanidade verdadeira.

A criada que saiu com pena

A chorar de saudade

Da casa onde a não tratavam muito bem...

Tudo isso é no meu coração a morte e a tristeza de partir.

Tudo isso vive, porque morre, dentro do meu coração.

E o meu coração é um pouco maior que o universo

A música, sim, a música...

Piano banal do outro andar...

A música em todo o caso, a música...

Aquilo que vem buscar o choro imanente

De toda criatura humana,

Aquilo que vem torturar a calma

Com o desejo duma calma melhor...

A música... Um piano lá em cima

Com alguém que o toca mal...

Mas é música...

Ah, quantas infâncias tive!

Quantas boas mágoas!

A música...

Quantas mais boas mágoas!

Sempre a música...

O pobre piano tocado por quem não sabe tocar.

Mas apesar de tudo é música.

Ah, lá conseguiu uma música seguida -

Uma melodia racional -

Racional, meu Deus!

Como se alguma coisa fora racional!

Que novas paisagens de um piano mal tocado!

A música!... A música!

Domingo irei para as hortas na pessoa dos outros,

Contente da minha anonimidade.

Domingo serei feliz - eles, eles...

Domingo...

Hoje é quinta-feira da semana que não tem domingo...

Nenhum domingo. -

Nunca domingo. -

Mas sempre haverá alguém nas hortas no domingo que

Assim passa a vida,

Subtil para quem sente,

Mais ou menos para quem pensa:

Haverá sempre alguém nas hortas ao domingo,

Não no nosso domingo,

Não no meu domingo,

Não no domingo...

Mas sempre haverá outros nas hortas e ao domingo!

Começa a haver meia-noite, e a haver sossego,

Por toda a parte das casas sobrepostas,

Os andares vários da acumulação da vida...

Calaram o piano no terceiro andar...

Não oiço já passos no segundo andar...

No rés-do-chão o rádio está em silêncio...

Vai tudo dormir...

Fico sòzinho com o universo inteiro.

Não quero ir à janela:

Se eu olhar, que de estrelas!

Que grandes silêncios maiores há no alto!

Que céu anti-citadino! -

Antes, recluso,

Num desejo de não ser recluso,

Escuto ansiosamente os ruídos da rua...

Um automóvel! - demasiado rápido! -

Os duplos passos em conversa falam-me...

O som de um portão que se fecha brusco dói-me...

Vai tudo dormir...

Sóeu velo, sonolentamente escutando,

Esperando

Qualquer coisa antes que durma...

Qualquer coisa.

Há tanto tempo que não sou capaz

De escrever um poema extenso!...

Há anos...

Perdi a virtude do desenvolvimento rítmico

Em que a ideia e a forma,

Numa unidade de corpo com alma,

Unanimemente se moviam....

Perdi tudo que me fazia consciente -

De uma certeza qualquer no meu ser...

Hoje o que me resta?

O sol que está sem que eu o chamasse...

O dia que me não custou esforço...

Uma brisa, com a festa de uma brisa,

Que me dá uma consciência do ar...

E o egoísmo doméstico de não querer mais nada.

Mas, ah!, minha Ode Triunfal,

O teu movimento rectilíneo!

Ah, minha Ode Marítima,

A tua estrutura geral em estrofe, antístrofe e epodo!

E os meus planos, então, os meus planos -

Esses é que eram as grandes odes!

E aquela, a última, a suprema, a impossível!

...Como, nos dias de grandes acontecimentos no

Nos bairros quase-excêntricos as conversas em

A expectativa em grupos...

Ninguém sabe nada.

Leve rastro de brisa...

Coisa nenhuma que é real

E que, com um afago ou um sopro,

Toca o que há até que seja...

Magnificência da naturalidade...

Coração...

Que Áfricas inéditas em cada desejo!

Que melhores cousas que tudo lá longe!

Meu cotovelo toca no da vizinha do eléctrico

Com uma involuntariedade fruste,

Curto-circuito da proximidade...

Ideias ao acaso

Como um balde que se entorna...

Fito-o: é um balde entornado...

Jaz: jazo...

Depus a máscara e vi-me ao espelho. -

Era a criança de há quantos anos.

Não tinha mudado nada...

É essa a vantagem de saber tirar a máscara.

É-se sempre a criança,

O passado que foi

A criança.

Depus a máscara, e tornei-a a pô-la.

Assim é melhor,

Assim sou a máscara.

E volto à personalidade como a um terminus de linha.

Depois de não ter dormido,

Depois de já não ter sono,

Interminável madrugada em que se pensa sempre sem

Vi o dia vir

Como a pior das maldições -

A condenação ao mesmo.

Contudo, que riqueza de azul verde e amarelo dourado

No céu eternamente longínquo...

Nesse oriente que estragaram

Dizendo que vêm de lá as civilizações;

Nesse oriente que nos roubaram

Com o Conto do Vigário dos mitos solares,

Maravilhoso oriente sem civilizações nem mitos,

Simplesmente céu e luz,

Material sem materialidade...

Todo luz, mesmo assim

A sombra, que é a luz da noite dada ao dia,

Enche por vezes, irresistivelmente natural,

O grande silêncio do trigo sem vento,

O verdor esbatido dos campos afastados,

A vida e o sentimento da vida.

A manhã inunda toda a cidade.

Meus olhos pesados do sono que não tivestes,

Que amanhã inundará o que está por trás de vós,

Que é vós,

Que sou eu?

Na véspera de não partir nunca

Ao menos não há que arrumar malas

Nem que fazer planos em papel,

Com acompanhamento involuntário de esquecimentos,

Para o partir aindalivre do dia seguinte.

Não há que fazer nada

Na véspera de não partir nunca.

Grande sossego de já não haver sequer de que ter sossego!

Grande tranquilidade a que nem sabe encolher ombros

Por, pobre tédio, ter passado o tédio

É o ter chegado deliberadamente a nada.

Grande alegria de não ter precisão de ser alegre,

Como uma oportunidade virada do avesso.

Há quantos meses vivo

A vida vegetativa do pensamento!

Todos os dias sine linea

Sossego, sim, sossego...

Grande tranquilidade...

Que repouso, depois de tantas viagens, físicas e

Que prazer olhar para as malas fechadas como para

Dormita, alma, dormita!

Aproveita, dormita!

Dormita!

É pouco o tempo que tens! Dormita!

É a véspera de não partir nunca...

O que há em mim é sobretudo cansaço -

Não disto nem daquilo,

Nem sequer de tudo ou de nada:

Cansaço assim mesmo, ele mesmo,

Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,

As paixões violentas por coisa nenhuma,

Os amores intensos por o suposto em alguém,

Essas coisas todas -

- Essas e o que falta nelas eternamente -;

Tudo isso faz um cansaço,

Este cansaço,

Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,

Há sem dúvida quem deseje o impossível,

Há sem dúvida quem não queira nada -

Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:

Porque eu amo infinitamente o finito,

Porque eu desejo impossìvelmente o possível,

Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,

Ou até se não puder ser...

E o resultado?

Para eles a vida vivida ou sonhada,

Para eles o sonho sonhado ou vivido,

Para eles a média entre tudo e nada, isto é, a vida...

Para mim só um grande, um profundo,

E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,

Um supremíssimo cansaço,

íssimo, íssimo, íssimo,

Cansaço...

Subiste à glória pela escada abaixo.

Paradoxo?

Não: a realidade.

O paradoxo é o que é palavras;

A realidade é o que és.

Subiste porque desceste.

Está bem.

Amanhã talvez eu faça a mesma coisa.

Por ora, se calhar, invejo-te,

Não sei se te invejo a vitória,

Não sei se te invejo o consegui-la,

Mas realmente creio que te a invejo...

Sempre é vitória...

Façam um embrulho de mim

E depois deitem-me ao rio.

E não esqueçam o "se calhar" quando lá me deitarem.

Isso é importante.

Não esqueçam o "se calhar".

Isso é que é importante.

Porque tudo é se calhar...

(À memória de Soame Jenyns, lembrado depois de escrito)

Às vezes tenho ideias, felizes,

Ideias sùbitamente felizes, em ideias

E nas palavras em que naturalmente se despegam...

Depois de escrever, leio...

Porque escrevi isto?

Onde fui buscar isto?

De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu...

Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta

Com que alguém escreve a valer o que nós aqui

Símbolos? Estou farto de símbolos...

Mas dizem-me que tudo é símbolo.

Todos me dizem nada.

Quais símbolos? Sonhos. -

Que o sol seja um símbolo, está bem...

Que a luaseja um símbolo, está bem...

Que a terra seja um símbolo, está bem...

Mas quem repara no sol senão quando a chuva cessa,

E ele rompe as nuvens e aponta para trás das costas

Para o azul do céu?

Mas quem repara na lua senão para achar

Bela a luz que ela espalha, e não bem ela?

Mas quem repara na terra, que é o que pisa?

Chama terra aos campos, às árvores, aos montes.

Por uma diminuição instintiva,

Porque o mar também é terra...

Bem, vá, que tudo isso seja símbolo...

Mas que símbolo é, não o sol, não a lua, não a terra,

Mas neste poente precoce e azulando-se

O sol entre farrapos finos de nuvens,

Enquanto a lua é já vista, mística, no outro lado,

E o que fica da luz do dia

Doira a cabeça da costureira que pára vagamente à

Onde se demorava outrora com o namorado que a

Símbolos? Não quero símbolos...

Queria - pobre figura de miséria e desamparo! -

Que o namorado voltasse para a costureira.

Ali não havia electricidade.

Por isso foi à luz de uma vela mortiça

Que li, inserto na cama,

O que estava à mão para ler -

A Bíblia, em português(coisa curiosa!), feita para

E reli a "Primeira Epístola aos Coríntios".

Em torno de mim o sossego excessivo de noite de

Fazia um grande barulho ao contrário,

Dava-me uma tendência do choro para a desolação.

A "Primeira Epístola aos Coríntios"...

Relia-a à luz de uma vela sùbitamente antiquíssima,

E um grande mar de emoção ouvia-se dentro de mim...

Sou nada...

Sou uma ficção...

Que ando eu a querer de mim ou de tudo neste mundo?

"Se eu não tivesse a caridade".

E a soberana luz manda, e do alto dos séculos,

A grande mensagem com que a alma é livre...

"Se eu não tivesse a caridade"...

Meu Deus, e eu que não tenho a caridade!...

Não: devagar.

Devagar, porque não sei

Onde quero ir.

Há entre mim e os meus passos

Uma divergência instintiva.

Há entre quem sou e estou

Uma diferença de verbo

Que corresponde à realidade.

Devagar...

Sim, devagar...

Quero pensar no que quer dizer

Este devagar...

Talvez o mundo exterior tenha pressa demais.

Talvez a alma vulgar queira chegar mais cedo.

Talvez a impressão dos momentos seja muito próxima...

Talvez isso tudo...

Mas o que me preocupa é esta palavra devagar...

O que é que tem que ser devagar?

Se calhar é o universo...

A verdade manda Deus que se diga.

Mas ouviu alguém isso a Deus?

Os antigos invocavam as Musas.

Nós invocamo-nos a nós mesmos.

Não sei se as Musas apareciam -

Seria sem dúvida conforme o invocado e a invocação. -

Mas sei que nós não aparecemos.

Quantas vezes me tenho debruçado

Sobre o poço que me suponho

E balido "Ah!" para ouvir um eco,

E não tenhoouvido mais que o visto -

O vago alvor escuro com que a água resplandece

Lá na inutilidade do fundo...

Nenhum eco para mim...

Só vagamente uma cara,

Que deve ser a minha, por não poder ser de outro.

É uma coisa quase invisível,

Excepto como luminosamente vejo

Lá no fundo...

No silêncio e na luz falsa do fundo...

Que Musa!...........

Há mais de meia hora

Que estou sentado à secretária

Com o único intuito

De olhar para ela.

(Estes versos estão fora do meu ritmo.

Eu também estou fora do meu ritmo).

Tinteiro grande à frente.

Canetas com aparos novos à frente.

Mais para cá papel muito limpo.

Ao lado esquerdo um volume da "Enciclopédia

Ao lado direito -

Ah, ao lado direito!

A faca de papel com que ontem

Não tive paciência para abrir completamente

O livro que me interessava e não lerei.

Quem pudesse sintonizar tudo isto!

Depois de quando deixei de pensar em depois

Minha vida tornou-se mais calma -

Isto é, menos vida.

Passei a ser o meu acompanhamento em surdina.

Olho, do alto da janela baixa,

As garotas que dançam a brincar na rua.

O seu destino inevitável

Dói-me.

Vejo-lho no vestido entreaberto nas costas, e dói-me.

Grande cilindro, quem te manda cilindrar esta estrada

Que está calçada de almas?

(Mas a tua voz interrompe-me

- Voz alta, lá de fora, do jardim, rapariga -

E é como se eu deixasse

Cair irresolutamente um livro no chão.)

Não teremos, meu amor, nesta dança da vida,

Que fazemos por brincadeira natural,

As mesmas costas desabotoadas

E o mesmo decote a mostrar-nos a pele por cima da

Eu, eu mesmo...

Eu, cheio de todos os cansaços

Quantos o mundo pode dar. -

Eu...

Afinal tudo, porque tudo é eu,

E até as estrelas, ao que parece,

Me saíram da algibeira para deslumbrar crianças...

Que crianças não sei...

Eu...

Imperfeito? Incógnito? Divino?

Não sei...

Eu...

Tive um passado? Sem dúvida...

Tenho um presente? Sem dúvida...

Terei um futuro? Sem dúvida...

A vida que pare de aqui a pouco...

Mas eu, eu...

Eu sou eu,

Eu fico eu,

Eu...

Estou cansado, é claro,

Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.

De que estou cansado, não sei:

De nada serviria sabê-lo,

Pois o cansaço fica na mesma.

A ferida dói como dói

E não em função da causa que a produziu.

Sim, estou cansado,

E um pouco sorridente

De o cansaço ser só isto -

Uma vontade de sono no corpo,

Um desejo de não pensar na alma,

E por cima de tudo uma transparência lúcida

Do entendimento retrospectivo...

E a luxúria única de não ter já esperanças?

Sou inteligente: eis tudo.

Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,

E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,

Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.

Não estou pensando em nada

E essa coisa central, queé coisa nenhuma,

É-me agradável como o ar da noite,

Fresco em contraste com o Verão quente do dia,

Não estou pensando em nada, e que bom!

Pensar em nada

É ter a alma própria e inteira.

Pensar em nada

É viver ìntimamente

O fluxo e o refluxo da vida...

Não estou pensando em nada.

É como se me tivesse encostado mal.

Uma dor nas costas, ou num lado das costas,

Há um amargo de boca na minha alma:

É que, no fim de contas,

Não estou pensando em nada,

Mas realmente em nada,

Em nada...

O sono que desce sobre mim,

O sono mental que desce fìsicamente sobre mim,

O sono universal que desce individualmente sobre mim -

Esse sono

Parecerá aos outros o sono de dormir,

O sono da vontade de dormir,

O sono de ser sono.

Mas é mais, mais de dentro, mais de cima:

É o sono da soma de todas as desilusões,

É o sono da síntese de todas as desesperanças,

É o sono de haver mundo comigo lá dentro

Sem que eu houvesse contribuído em nada para isso.

O sono que desce sobre mim

É contudo como todos os sonos.

O cansaço tem ao menos brandura,

O abatimento tem ao menos sossego,

A rendição é ao menos o fim do esforço,

O fim é ao menos o já não haver que esperar.

Há um som de abrir uma janela,

Viro indiferente a cabeça para a esquerda

Por sobre o ombro que a sente,

Olho pela janela entreaberta:

A rapariga do segundo andar de defronte

Debruça-se com os olhos azuis à procura de alguém.

De quem?,

Pergunta a minha indiferença.

E tudo isso é sono.

Meu Deus, tanto sono!...

Estou tonto,

Tonto de tanto dormir ou de tanto pensar,

Ou de ambas as coisas.

O que sei é que estou tonto

E não sei bem se me devo levantar da cadeira

Ou como me levantar dela.

Fiquemos nisto: estou tonto.

Afinal

Que vida fiz eu da vida?

Nada.

Tudo interstícios,

Tudo aproximações,

Tudo função do irregular e do absurdo,

Tudo nada.

É por isso que estou tonto...

Agora

Todas as manhãs me levanto

Tonto...

Sim, verdadeiramente tonto...

Sem saber em mim e meu nome,

Sem saber onde estou,

Sem saber o que fui,

Sem saber nada.

Mas se isto é assim, é assim.

Deixo-me estar na cadeira,

Estou tonto.

Bem, estou tonto.

Fico sentado

E tonto,

Sim, tonto,

Tonto...

Tonto.

Todas as cartas de amor são

Ridículas.

Não seriam cartas de amor se não fossem

Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,

Como as outras,

Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,

Têm de ser

Ridículas.

Mas, afinal,

Só as criaturas que nunca escreveram

Cartas de amor

É que são

Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia

Sem dar por isso

Cartas de amor

Ridículas.

A verdade é que hoje

As minhas memórias

Dessas cartas de amor

É que são

Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,

Como os sentimentos esdrúxulos,

São naturalmente

Ridículas).

. Publicadona revista Presença, no 1, 2a Série, novembro, 1939. VOLTAR

. Variante: 17o verso - Os duplos passos em conversa anunciam-me... VOLTAR.

. Optamos pela leitura de Cleonice Berardinelli para o poema. Na edição da Ática, a estrofe aparece da seguinte maneira: "grande sossego de já não haver sequer de que ter sossego! / grande tranquilidade a que nem sabe encolher os ombros / Por isto tudo, ter pensado o tudo / É o ter chegado deliberadamente a nada. / Grande alegria de não ter precisão de ser alegre, / Como uma oportunidade virada do avesso. / Há quantas vezes vivo / A vida vegetativa do pensamento!". VOLTAR

. Variante: 25o verso - Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto... VOLTAR

. Poeta e filósofo inglês(1704-1778). VOLTAR.

. Variantes: 12o verso(1a variante) - E um grande mar de emoção murmura dentro de mim...(2a variante) - E um grande mar de emoção chorava dentro de mim...; 18o verso - A grande mensagem em que a alma fica livre... VOLTAR.

. No oitavo verso, Cleonice Berardinelli propõe "menos" em lugar de "novos" e, no último verso,"hipnotizar" em lugar de "sintonizar". VOLTAR.

ODE MARCIAL

Inúmero rio sem água - só gente e coisas,

Pavorosamente sem água!

Soam tambores longínquos no meu ouvido,

E eu não sei se vejo o rio se ouço os tambores,

Como se não pudesse ouvir e ver ao mesmo tempo!

Helahoho! helahobo!

A máquina de costura da pobre viúva morta à baioneta...

Ela cosia à tarde indeterminadamente...

A mesa onde jogavam os velhos,

Tudo misturado, tudo misturado com corpos, com

Tudo um só rio, uma só onda, um só arrastado horror.

Helahoho! helahoho!

Desenterrei o comboio de lata da criança calcado no

E chorei como todas as mães do mundo sobre o horror

Os meus pés panteístas tropeçaram na máquina de

E esse pobre instrumento de paz meteu uma lança no

Sim, fui eu o culpado de tudo, fui eu o soldado todos

Que matou, violou, queimou e quebrou.

Fui eu e a minha vergonha e o meu remorso com uma

Passeiam por todo o mundo como Ashavero,

Mas atrás dos meus passos soam passos do tamanho

E um pavor físico de encontrar Deus faz-me fechar os

Cristo absurdo da expiação de todos os crimes e de todas

A minha cruz está dentro de mim, hirta, a escaldar, a

E tudo dói na minha alma extensa como um Universo.

Arranquei o pobre brinquedo das mãos da criança e

Os seus olhos assustados do meu filho que talvez terei

Pediram-me sem saber como toda a piedade por todos.

Do quarto da velha arranquei o retrato do filho e

Ela, cheia de medo, chorou e nãofez nada...

Senti de repente que ela era minha mãe e pela espinha

Quebrei a máquina de costura da viúva pobre.

Ela chorava a um canto sem pensar na máquina de

Haverá outro mundo onde eu tenha que ter uma filha

Mandei, capitão, fuzilar os camponeses trémulos,

Deixei violar as filhas de todos os pais atados a árvores,

Agora vi que foi dentro de meu coração que tudo isso

E tudo escalda e sufoca e eu não me posso mexer sem

Deus tenha piedade de mim que a não tive de ninguém!

*

LÀ-BAS, JE NE SAIS OÙ...

Véspera de viagem, campainha...

Não me sobreavisem estridentemente!

Quero gozar o repouso da gare da alma que tenho

Antes de ver avançar para mim a chegada de ferro

Do comboio definitivo,

Antes de sentir a partida verdadeira nas goelas do

Antes de pôr no estribo um pé

Que nunca aprendeu a não ter emoção sempre que teve

Quero, neste momento, fumando no apeadeiro de hoje,

Estar ainda um bocado agarrado à velha vida.

Vida inútil, que era melhor deixar, que é uma cela?

Que importa? Todo o universo é uma cela, e o estar

Sabe-me a náusea próxima o cigarro. O comboio já

Adeus, adeus, adeus, toda a gente que não veio

Minha família abstracta e impossível...

Adeus dia de hoje, adeus apeadeiro de hoje, adeus vida,

Ficar como um volume rotulado esquecido,

Ao canto do resguardo de passageiros do outro lado da

Ser encontrado pelo guarda casual depois da partida -

"E esta? Então não houve um tipo que deixou isto aqui?" -

Ficar só a pensar em partir,

Ficar e ter razão,

Ficar e morrer menos...

Vou para o futuro como para um exame difícil.

Se o comboio nunca chegasse e Deus tivesse pena de mim?

Já me vejo na estação até aqui simples metáfora.

Sou uma pessoa perfeitamente apresentável.

Vê-se - dizem - que tenho vivido no estrangeiro.

Os meus modos são de homem educado, evidentemente.

Pego na mala, rejeitando o moço, como a um vício vil.

E a mão com que pego na mala treme-me e a ela.

Partir!

Nunca voltarei,

Nunca voltarei porque nunca se volta.

O lugar a que se volta é sempre outro,

A gare a que se volta é outra.

Já não está a mesma gente, nem a mesma luz, nem a

Partir! Meu Deus, partir! Tenho medo de partir!...

*

DOBRADA À MODA DO PORTO

Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,

Serviram-me o amor como dobrada fria.

Disse delicadamente ao missionário da cozinha

Que a preferia quente,

Que a dobrada(e era à moda do Porto) nunca se come

Impacientaram-se comigo.

Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.

Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,

E vim passear para toda a rua.

Quem sabe o que isto quer dizer?

Eu não sei, e foi comigo...

(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve

Particular ou público, ou do vizinho.

Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.

E que a tristeza é de hoje).

Sei isso muitas vezes,

Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram

Dobrada à moda do Porto fria?

Não é prato que se possa comer frio,

Mas trouxeram-mo frio.

Não me queixei, mas estava frio,

Nunca se pode comer frio, mas veio frio.

*

POEMA EM LINHA RECTA

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,

E eu tantas vezes irrespondìvelmente parasita,

Indesculpàvelmente sujo,

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para

Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,

Que tenho enrolado os pés pùblicamente nos tapetes

Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e

Que tenho sofrido enxovalhos e calado,

Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo

Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,

Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de

Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido

Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho

Para fora da possibilidade do soco;

Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas

Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo

Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,

Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana

Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;

Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!

Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.

Quem há neste largo mundo que me confesse que uma

Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!

Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,

Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!

E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,

Como posso eu falar com os meus superiores sem

Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,

Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Trapos somos, trapos amamos, trapos agimos -

Que trapo tudo que é este mundo!

O horror sórdido do que, a sós consigo,

Vergonhosa de si, no escuro, cada alma pensa.

*

. Um dos poemas mais famosos de Campos. Observe-se sua solidão,sua condição de marginalidade, de diferente. A ironia é voltada para si, num mundo em que o outro não é "gente", não tem defeitos. VOLTAR.

VILEGIATURA

O sossego da noite, na vilegiatura no alto;

O sossego, que mais aprofunda

O ladrar esparso dos cães de guarda na noite;

O silêncio, que mais se acentua,

Porque zumbe ou murmura uma coisa nenhuma no

Ah, a opressão de tudo isto!

Oprime como ser feliz!

Que vida idílica, se fosse outra pessoa que a tivesse

Com o zumbido ou murmúrio monótono de nada

Sob o céu sardento de estrelas,

Com o ladrar dos cães polvilhando o sossego de tudo!

Vim para aqui repousar,

Mas esqueci-me de me deixar lá em casa.

Trouxe comigo o espinho essencial de ser consciente,

A vaga náusea, a doença incerta, de me sentir.

Sempre esta inquietação mordida aos bocados

Como pão ralo escuro, que se esfarela caindo.

Sempre este mal-estar tomado aos maus haustos

Como um vinho de bêbado quando nem a náusea obsta.

Sempre, sempre, sempre

Este defeito da circulação na própria alma,

Esta lipotimia das sensações,

Isto...

Tuas mãos esguias, um pouco pálidas, um pouco minhas,

Estavam naquele dia quietas pelo teu regaço de sentada,

Como e onde a tesoira e o dedal de uma outra.

Cismavas, olhando-me, como se eu fosse o espaço.

Recordo para ter em que pensar, sem pensar.

De repente, num meio suspiro, interrompeste o que

Olhaste conscientemente para mim, e disseste:

"Tenho pena que todos os dias não sejam assim" -

Assim, como aquele dia que não fora nada...

Ah, não sabias,

Felizmente não sabias,

Que a pena é todos os dias serem assim, assim;

Que o mal é que, feliz ou infeliz,

A alma goza ou sofre o íntimo tédio de tudo,

Consciente ou inconscientemente,

Pensando ou por pensar -

Que a pena é essa...

Lembro fotogràficamente as tuas mãos paradas,

Molemente estendidas.

Lembro-me, neste momento, mais delas do que de ti.

Que será feito de ti?

Sei que, no formidável algures da vida,

Casaste. Creio que és mãe. Deves ser feliz.

Porque o não haverias de ser?

Só por maldade...

Sim, seria injusto...

Injusto?

(Era um dia de sol pelos campos e eu dormitava,

..........................................................................................

A vida...

Branco ou tinto, é o mesmo: é para vomitar.

O Chiado(a ideia do Chiado) sabe-me a açorda.

Corro ao fluir do Tejo lá em baixo.

Mas nem ali há universo.

E o tédio persiste como uma mão regando no escuro.

Quase sem querer(se o soubéssemos!) os grandes

O sargento acaba imperador por transições

Em que se vai misturando

O conseguimento com o saber do que se consegue a

E o caminho vai por degraus visíveis, depressa.

Ai dos que desde o princípio vêem o fim!

Ai dos que aspiram a saltar a escada!

O conquistador de todos os impérios continua sempre

A amante de todos os reis - mas dos já mortos - é mãe

Se assim como vejo os corpos por fora, visse as almas

Ah, que penitenciários os desejos!

Que manicómio o sentido da vida!

Mais vale o clássico seguro,

Mais vale o romântico cantante,

Mais vale qualquer coisa, ainda que má,

Que os arredores inconstruídos de qualquer coisa boa...

"Tenho a minha alma!"

Não, não tens: tens a sensação dela.

Cuidado com a sensação!

Muitas vezes é dos outros,

E muitas vezes é nossa

Só pelo acidente estonteado de a sentirmos...

Já sei: alguém disse a verdade -

Até as cadeiras parecem aflitas,

Entra neste lar o objectivo.

E cada um ficou de fora, como um pano na corda

Que a chuva apanhou esquecido na noite de janelas

fechadas.

*

CLEARLY NON-CAMPOS!

Não sei qual é o sentimento, ainda inexpresso,

Que sùbitamente, como uma sufocação, me aflige

O coração que, de repente,

Entre o que vive, se esquece.

Não sei qual é o sentimento

Que me desvia do caminho,

Que me dá de repente

Um nojo daquilo que seguia,

Uma vontade de nunca chegar a casa,

Um desejo de indefinido,

Um desejo lúcido de indefinido.

Quatro vezes mudou a 'stação falsa

No falso ano, no imutável curso

Do tempo consequente;

Ao verde segue o seco, e ao seco o verde,

E não sabe ninguém qual é o primeiro,

Nem o último, e acabam.

Minha imaginação é um Arco de Triunfo.

Por baixo passa toda a Vida.

Passa a vida comercial de hoje, automóveis, camions,

Passa a vida tradicional nos trajes de alguns regimentos,

Passam todas as classes sociais, passam todas as formas

E no momento em que passam na sombra do Arco de

São momentaneamente um triunfo que eu os faço ser.

Qualquer cousa de triunfal cai sobre eles,

E eles são, um momento, pequenos e grandes.

O Arco de Triunfo da minha Imaginação

Assenta de um lado sobre Deus e do outro

Sobre o quotidiano, sobre o mesquinho(segundo se

Sobre a faina de todas as horas, as sensações de todos

E as rápidas intenções que morrem antes do gesto.

Eu-próprio, à parte e fora da minha imaginação,

E contudo parte dela,

Sou a figura triunfal que olha do alto do arco,

Que sai do arco e lhe pertence,

E fita quem passa por baixo elevada e suspensa,

Monstruosa e bela.

Mas às grandes horas da minha sensação,

Quando em vez de rectilínea, ela é circular

E gira vertiginosamente sobre si-própria,

O Arco desaparece, funde-se com a gente que passa,

E eu sinto que sou o Arco, e o espaço que ele abrange,

E toda a gente que passa,

E todo o passado da gente que passa,

E todo o futuro da gente que passa,

E toda a gente que passará

E toda a gente quejá passou.

Sinto isto, e ao senti-lo sou cada vez mais

A figura esculpida a sair do alto do arco

Que fita para baixo

O universo que passa.

Mas eu próprio sou o Universo,

Eu próprio sou sujeito e objecto,

Eu próprio sou Arco e Rua,

Eu próprio cinjo e deixo passar, abranjo e liberto,

Fito de alto, e de baixo fito-me fitando,

Passo por baixo, fico em cima, quedo-me dos lados,

Totalizo e transcendo,

Realizo Deus numa arquitectura triunfal

De arco de Triunfo posto sobre o universo,

De arco de triunfo construído

Sobre todas as sensações de todos que sentem

E sobre todas as sensações de todas as sensações...

Poesia do ímpeto e do giro,

Da vertigem e da explosão,

Poesia dinâmica, sensacionista, silvando

Pela minha imaginação fora em torrentes de fogo,

Em grandes rios de lava, em grandes vulcões de lume.

*

. Claramente não Campos. VOLTAR.

BARROW-ON-FURNESS>

I

Sou vil, sou reles, como toda a gente,

Não tenho ideais, mas não os tem ninguém.

Quem diz que os tem é como eu, mas mente.

Quem diz que busca é porque não os tem.

É com a imaginação que eu amo o bem.

Meu baixo ser porém não mo consente.

Passo, fantasma do meu ser presente,

Ébrio, por intervalos, de um Além.

Como todos não creio no que creio.

Talvez possa morrer por esse ideal.

Mas, enquanto não morro, falo e leio.

Justificar-me? Sou quem todos são...

Modificar-me? Para meu igual?...

- Acaba lá com isso, ó coração!

. Cidade da Grã-Bretanha conhecida por sua engenharia. VOLTAR.

II

Deuses, forças, almas de ciência ou fé,

Eh! Tanta explicação que nada explica!

Estou sentado no cais, numa barrica,

E não compreendo mais do que de pé.

Porque o havia de compreender?

Pois sim, mas também porque o não havia?

Água do rio, correndo suja e fria,

Eu passo como tu, sem mais valer...

Ó universo, novelo emaranhado,

Que paciência de dedos de quem pensa

Em outra cousa te põe separado?

Deixa de ser novelo o que nos fica...

A que brincar? Ao amor?, à indif'rença?

Por mim só me levanto da barrica.

III

Corre, raio de rio, e leva ao mar

A minha indiferença subjectiva!

Qual "leva ao mar"! Tua presença esquiva

Que tem comigo e com o meu pensar?

Lesma de sorte! Vivo a cavalgar

A sombra de um jumento. A vida viva

Vive a dar nomes ao que não se activa,

Morre a pôr etiquetas ao grande ar...

Escancarado Furness, mais três dias

Te aturarei, pobre engenheiro preso

A sucessibilíssimas vistorias...

Depois, ir-me-ei embora, eu e o desprezo

(E tu irás do mesmo modo que ias),

Qualquer, na gare, de cigarro aceso...

IV

Conclusão a sucata!... Fiz o cálculo,

Saiu-me certo, fui elogiado...

Meu coração é um enorme estrado

Onde se expõe um pequeno animálculo...

A microscópio de desilusões

Findei, prolixo nas minúcias fúteis...

Minhasconclusões práticas, inúteis...

Minhas conclusões teóricas, confusões...

Que teorias há para quem sente

O cérebro quebrar-se, como um dente

Dum pente de mendigo que emigrou?

Fecho o caderno dos apontamentos

E faço riscos moles e cinzentos

Nas costas do envelope do que sou...

V

Há quanto tempo, Portugal, há quanto

Vivemos separados! Ah, mas a alma

Esta alma incerta, nunca forte ou calma,

Não se distrai de ti, nem bem nem tanto.

Sonho, histérico oculto, um vão recanto...

O rio Furness, que é o que aqui banha,

Só irònicamente me acompanha,

Que estou parado e ele correndo tanto...

Tanto? Sim, tanto relativamente...

Arre, acabemos com as distinções,

As subtilezas, o interstício, o entre,

A metafísica das sensações -

Acabemos com isto e tudo mais...

Ah, que ânsia humana de ser rio ou cais!

O frio especial das manhãs de viagem,

A angústia da partida, carnal no arrepanhar

Que vai do coração à pele,

Que chora virtualmente embora alegre.

No fim de tudo dormir.

No fim de quê?

No fim do que tudo parece ser...,

Este pequeno universo provinciano entre os astros,

Esta aldeola do espaço,

E não só do espaço visível, mas até do espaço total.

A vida é para os inconscientes(ó Lídia, Celimène,

E o consciente é para os mortos - o consciente sem a

Fumo o cigarro que cheira bem à margem dos outros,

E sou ridículo para eles porque os observo e me

Mas não me importo.

Desdobro-me em Caeiro e em técnico,

- Técnico de máquinas, técnico de gente, técnico de

E do que descubro em meu torno não sou responsável

O estandarte roto, cosido a seda, dos impérios de Maple -

Metam-o na gaveta das coisas póstumas e basta...

Gostava de gostar de gostar.

Um momento... Dá-me de ali um cigarro,

Do maço em cima da mesa de cabeceira.

Continua... Dizias

Que no desenvolvimento da metafísica

De Kant a Hegel

Alguma coisa se perdeu.

Concordo em absoluto.

Estive realmente a ouvir.

Nondum amabam et amare amabam(Santo Agostinho).

Que coisa curiosa estas associações de ideias!

Estou fatigado de estar pensando em sentir outra coisa.

Obrigado. Deixa-me acender. Continua. Hegel...

Encostei-me para trás na cadeira de convés e fechei os

E o meu destino apareceu-me na alma como um

A minha vida passada misturou-se-me com a futura,

E houve no meio um ruído do salão de fumo,

Onde, aos meus ouvidos, acabara a partida de xadrez.

Ah, balouçado

Na sensação das ondas,

Ah, embalado

Na ideia tão confortável de hoje ainda não ser amanhã,

De pelo menos neste momento não ter

De não ter personalidade pròpriamente, mas sentir-me

Em cima da cadeira como um livro que a sueca ali

Ah, afundado

Num torpor da imaginação, sem dúvida um pouco

Irrequieto tão sossegadamente,

Tão análogo de repente à criança que fui outrora

Quando brincava na quinta e não sabia álgebra,

Nem as outras álgebras comx e y's de sentimento.

Ah, todo eu anseio

Por esse momento sem importância nenhuma

Na minha vida,

Ah, todo eu anseio por esse momento, como por outros

Aqueles momentos em que não tive importância

Aqueles em que compreendi todo o vácuo da existência

E havia luar e mar e a solidão, ó Álvaro.

O tumulto concentrado da minha imaginação

Fazer filhos à razão prática, como os crentes enérgicos...

Minha juventude perpétua

De viver as coisas pelo lado das sensações e não das

(Álvaro de Campos, nascido no Algarve, educado por

padre, que lhe instilou um certo amor às coisas clássicas).

(Veio para Lisboa muito novo...)

A capacidade de pensar o que sinto que me distingue

Mais do que ele se distingue do macaco.

(Sim, amanhã o homem vulgar talvez me leia e

Sim, admito-o,

Mas o macaco já hoje sabe ler o homem vulgar e lhe

Se alguma coisa foi porque é que não é?

Ser não é ser?

As flores do campo da minha infância, não as terei

Em outra maneira de ser?

Perderei para sempre os afectos que tive, e até os afectos

Há alguém que tenha a chave da porta do ser, que não

E me possa abrir com razões a inteligência do mundo?

Ah, perante esta única realidade, que é o mistério,

Perante esta única realidade terrível - a de haver uma

Perante este horrível ser que é haver ser,

Perante este abismo de existir um abismo,

Este abismo de a existência de tudo ser um abismo,

Ser um abismo por simplesmente ser,

Por poder ser,

Por haver ser!

- Perante isto tudo como tudo o que os homens fazem,

Tudo o que os homens dizem,

Tudo quanto construem, desfazem ou se construi ou

Se empequena!

Não, não se empequena... se transforma em outra coisa -

Numa só coisa tremenda e negra e impossível,

Uma coisa que está para além dos deuses, de Deus, do

Aquilo que faz que haja deuses e Deus e Destino.

Aquilo que faz que haja ser para que possa haver seres,

Aquilo que subsiste através de todas as formas

De todas as vidas, abstratas ou concretas,

Eternas ou contingentes,

Verdadeiras ou falsas!

Aquilo que, quando se abrangeu tudo, ainda ficou fora,

Porque quando se abrangeu tudo não se abrangeu

Porque há qualquer coisa, porque há qualquer coisa,

Minha inteligência tornou-se um coração cheio de pavor,

E é com minhas ideias que tremo, com a minha

Com a substância essencial do meu ser abstracto

Que sufoco de incompreensível,

Que me esmago de ultratranscendente,

E deste medo, desta angústia, deste perigo do ultra-ser,

Não se pode fugir, não se podefugir, não se pode fugir!

Cárcere do Ser, não há libertação de ti?

Cárcere de pensar, não há libertação de ti?

Ah, não, nenhuma - nem morte, nem vida, nem Deus!

Nós, irmãos gémeos do Destino em ambos existirmos,

Nós, irmãos gémeos dos Deuses todos, de toda a espécie,

Em sermos o mesmo abismo, em sermos a mesma

Sombra sejamos, ou sejamos luz, sempre a mesma noite.

Ah, se afronto confiado a vida, a incerteza da sorte,

Sorridente, impensando, a possibilidade quotidiana de

Inconsciente o mistério de todas as coisas e de todos os

Porque não afrontarei sorridente, inconsciente, a Morte?

Ignoro-a? Mas que é que eu não ignoro?

A pena em que pego, a letra que escrevo, o papel em

São mistérios menores que a Morte? Como se tudo é o

E eu escrevo, estou escrevendo, por uma necessidade

Ah, afronte eu como um bicho a morte que ele não

Tenho eu a inconsciência profunda de todas as coisas

Pois, por mais consciência que tenha, tudo é

Salvo o ter criado tudo, e o ter criado tudo ainda é

Porque é preciso existir para se criar tudo,

E existir é ser inconsciente, porque existir é ser possível

E ser possível haver ser é maior que todos os Deuses.

Contudo, contudo,

Também houve gládios e flâmulas de cores

Na Primavera do que sonhei de mim.

Também a esperança

Orvalhou os campos da minha visão involuntária,

Também tive quem também me sorrisse.

Hoje estou como se esse tivesse sido outro.

Quem fui não me lembra senão como uma história

Quem serei não me interessa, como o futuro do mundo.

Caí pela escada abaixo sùbitamente,

E até o som de cair era a gargalhada da queda.

Cada degrau era a testemunha importuna e dura

Do ridículo que fiz de mim.

Pobre do que perdeu o lugar oferecido por não ter

Mas pobre também do que, sendo rico e nobre,

Perdeu o lugar do amor por não ter casaco bom dentro

Sou imparcial como a neve

Nunca preferi o pobre ao rico,

Como, em mim, nunca preferi nada a nada.

Vi sempre o mundo independentemente de mim.

Por trás disso estavam as minhas sensações vivíssimas,

Mas isso era outro mundo.

Contudo a minha mágoa nunca me fez ver negro o que

Acima de tudo o mundo externo!

Eu que me aguente comigo e com os comigos de mim.

Acordar da cidade de Lisboa, mais tarde do que as

Acordar da rua do Ouro,

Acordar do Rossio, às portas dos cafés,

Acordar

E no meio de tudo a gare, que nunca dorme,

Como um coração que tem que pulsar através da

Toda a manhã que raia, raia sempre no mesmo lugar,

Não hámanhãs sobre cidades, ou manhãs sobre o campo.

À hora em que o dia raia, em que a luz estremece a

Todos os lugares são o mesmo lugar, todas as terras são

E é eterna e de todos os lugares a frescura que sobe por

Uma espiritualidade feita com a nossa própria carne,

Um alívio de viver de que o nosso corpo partilha,

Um entusiasmo por o dia que vai vir, uma alegria por

São os sentimentos que nascem de estar olhando para

Seja ela a leve senhora dos cumes dos montes,

Seja ela a invasora lenta das ruas das cidades que vão

Seja.

A mulher que chora baixinho

Entre o ruído da multidão em vivas...

O vendedor de ruas, que tem um pregão esquisito,

Cheio de individualidade para quem repara...

O arcanjo isolado, escultura numa catedral,

Siringe fugindo aos braços estendidos de Pã,

Tudo isto tende para o mesmo centro,

Busca encontrar-se e fundir-se

Na minha alma.

Eu adoro todas as coisas

E o meu coração é um albergue aberto toda a noite.

Tenho pela vida um interesse ávido

Que busca compreendê-la sentindo-a muito.

Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo,

Aos homens e às pedras, às almas e às máquinas,

Para aumentar com isso a minha personalidade.

Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim

E a minha ambição era trazer o universo ao colo

Como uma criança a quem a ama beija.

Eu amo todas as coisas, umas mais do que as outras,

Não nenhuma mais do que outra, mas sempre mais as

Do que as que vi ou verei.

Nada para mim é tão belo como o movimento e as

A vida é uma grande feira e tudo são barracas e

Penso nisto, enterneço-me mas não sossego nunca.

Dá-me lírios, lírios,

E rosas também.

Dá-me rosas, rosas,

E lírios também,

Crisântemos, dálias,

Violetas, e os girassóis

Acima de todas as flores...

Deita-me às mancheias,

Por cima da alma,

Dá-me rosas, rosas,

E lírios também...

Meu coração chora

Na sombra dos parques,

Não tem quem o console

Verdadeiramente,

Exceto a própria sombra dos parques

Entrando-me na alma,

Através do pranto.

Dá-me rosas, rosas,

E lírios também...

Minha dor é velha

Como um frasco de essência cheio de pó.

Minha dor é inútil

Como uma gaiola numa terra onde não há aves,

E minha dor é silenciosa e triste

Como a parte da praia onde o mar não chega.

Chego às janelas

Dos palácios arruinados

E cismo de dentro para fora

Para me consolar do presente.

Dá-me rosas, rosas,

E lírios também...

Mas por mais rosas e lírios que me dês,

Eu nunca acharei que a vida é bastante.

Faltar-me-á sempre qualquer coisa,

Sobrar-me-á sempre de que desejar,

Como um palco deserto.

Por isso, não te importes com o que penso,

E muito embora oque eu te peça

Te pareça que não quer dizer nada,

Minha pobre criança tísica,

Dá-me das tuas rosas e dos teus lírios,

Dá-me rosas, rosas,

E lírios também...

Dá-me rosas, rosas,

E lírios também,

Todas as flores são belas,

Todas as flores consolam,

Mas neste momento dos meus nervos,

Só me aprazem certas flores...

Por isso deita-me às mancheias,

Por cima da alma,

Só lírios e rosas...

Dá-me rosas, rosas,

E lírios também...

Meu coração chora

Na sombra dos parques.

Não tenho quem o console

Verdadeiramente,

Excepto a própria sombra dos parques

Entrando-me na alma,

Através do pranto.

Dá-me rosas, rosas,

E lírios também...

Minha dor é velha

Como um frasco de essência cheio de pó.

Minha dor é inútil

Como uma gaiola numa terra onde não há aves,

E minha dor é silenciosa e triste

Como a parte da praia onde o mar não chega.

Chego às janelas

Dos palácios arruinados

E cismo de dentro para fora

Para me consolar do presente.

Dá-me rosas, rosas,

E lírios também...

Mas por mais rosas e lírios que me dês,

Eu nunca acharei que a vida é bastante.

Faltar-me-á sempre qualquer cousa,

Sobrar-me-á sempre de que desejar,

Como um palco deserto.

Por isso, não te importes com o que eu penso,

E muito embora o que eu te peça

Te pareça que não quer dizer nada,

Minha pobre criança tísica,

Dá-me das tuas rosas e dos teus lírios,

Dá-me rosas, rosas,

E lírios também...

A mulher que chora baixinho

Entre o ruído da multidão em vivas...

O vendedor de ruas, que tem um pregão esquisito,

Cheio de individualidade para quem repara...

O arcanjo isolado, escultura numa catedral,

Siringe fugindo aos braços estendidos de Pã,

Tudo isto tende para o mesmo centro,

Busca encontrar-se e fundir-se

Na minha alma.

Eu adoro todas as cousas

E o meu coração é um albergue aberto toda a noite.

Tenho pela vida um interesse ávido

Que busca compreendê-la sentindo-a muito.

Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo,

Aos homens e às pedras, às almas e às máquinas,

Para aumentar com isso a minha personalidade.

Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim

E a minha ambição era trazer o universo ao colo

Como uma criança a quem a ama beija.

Eu amo todas as cousas, umas mais do que as outras -

Não nenhuma mais do que outra, mas sempre mais as

Do que as que vi ou verei.

Nada para mim é tão belo como o movimento e as

A vida é uma grande feira e tudo são barracas e

Penso nisto, enterneço-me mas não sossego nunca.

Dá-me lírios, lírios

E rosas também.

Hoje estou triste como um barco negro ao sol.

Minha alegria foi-se embora com as malas.

Meu coração anda por casa do silêncio

Abrindo as portas e espreitando para os quartos.

E tudo isto, que não tem nenhum sentido,

É o sentido essencial daminha vida...

Lembro-me bem do seu olhar.

Ele atravessa ainda a minha alma

Como um risco de fogo na noite.

Lembro-me bem do seu olhar.

O resto...

Sim o resto parece-se apenas com a vida.

Ontem, passei nas ruas como qualquer pessoa.

Olhei para as montras despreocupadamente

E não encontrei amigos com quem falar.

De repente vi que estava triste, mortalmente triste,

Tão triste que me pareceu que me seria impossível

Viver amanhã, não porque morresse ou me matasse,

Mas porque seria impossível viver amanhã e mais nada.

Fumo, sonho, recostado na poltrona.

Dói-me viver como uma posição incómoda.

Deve haver ilhas lá para o sul das cousas

Onde sofrer seja uma cousa mais suave,

Onde viver custe menos ao pensamento,

E onde a gente possa fechar os olhos e adormecer ao sol

E acordar sem ter que pensar em responsabilidades

Nem no dia do mês ou da semana que é hoje.

Abrigo no meu peito, como a um inimigo que temo

Um coração exageradamente espontâneo

Que sente tudo o que eu sonho como se fosse real

Que bate com o pé a melodia das canções que o meu

Canções tristes, como as ruas estreitas quando chove.

Dai-me rosas e lírios,

Dai-me flores, muitas flores,

Quaisquer flores, logo que sejam muitas...

Não, nem sequer muitas flores, falai-me apenas

Em me dardes muitas flores.

Nem isso... Escutai-me apenas pacientemente quando

Que me deis flores...

Sejam essas as flores que me deis...

Ah, a minha tristeza dos barcos que passam no rio

Sob o céu cheio de sol!

A minha agonia da realidade lúcida!

Desejo de chorar absolutamente como uma criança

Com a cabeça encostada aos braços cruzados em cima

E a vida sentida como uma brisa que me roçasse o

Estando eu a chorar naquela posição.

O homem que apara o lápis à janela do escritório

Chama pela minha atenção com as mãos do seu gesto

Haver lápis, e aparar lápis, e gente que os apara à janela

É tão fantástico que estas cousas sejam reais!

Olho para ele até esquecer o sol e o céu.

E a realidade do mundo faz-me dores de cabeça.

A flor caída no chão.

A flor murcha(rosa branca amarelecendo)

Caída no chão...

Qual é o sentido da vida

(que sentido tem a vida?)

Ah quando nos fazemos ao mar

Quando largamos da terra, quando a vamos perdendo

Quando tudo se vai enchendo do vento puramente

Quando a costa se torna uma linha sombria,

Uma linha cada vez mais vaga no anoitecer(pairam

Ah então que alegria de liberdade para quem se sente.

Cessa de haver razão para existir socialmente.

Não há já razões para amar odiar descrer,

Não haja leis, não há mágoas que tenham sabor humano...

Há só a Partida Abstracta, o movimento das águas,

Omovimento do afastamento, o som

Das ondas marulhando à proa,

E uma grande paz intranquila entrando nervosa, no

Ah, ter toda a minha vida

Fixa instavelmente num momento destes,

Ter todo o sentido da minha duração sobre a terra

Tornado um afastamento dessa costa onde deixei tudo -

Amores, irritações, tristezas, cumplicidades, deveres,

A angústia irrequieta dos remorsos,

A fadiga da inutilidade de tudo,

A saciedade até das cousas imaginadas,

A náusea, as luzes,

As pálpebras pesadas sobre a minha vida perdida...

Irei pra longe, pra longe! Pra longe, ó barco sem causa,

Para a irresponsabilidade pré-histórica das águas eternas,

Para longe, para sempre para longe, ó morte.

Quando souber onde para longe e porque para longe,

Sucata de alma vendida pelo peso do corpo,

Se algum guindaste te eleva é para te despejar -

Nenhum guindaste te eleva senão para te baixar.

Olho analiticamente, sem querer, o que romantizo sem

Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.

Sentir tudo de todas as maneiras.

Sentir tudo excessivamente,

Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas

E toda a realidade é um excesso, uma violência,

Uma alucinação extraordinàriamente nítida

Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,

O centro para onde tendem as estranhas forças

Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos.

Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como

Quanto mais personalidade eu tiver,

Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,

Quanto mais simultâneamente sentir com todas elas,

Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente

Estiver, sentir, viver, for,

Mais possuirei a existência total do universo,

Mais completo serei pelo espaço inteiro fora.

Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for,

Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo,

E fora d'Ele há só Ele, e Tudo para Ele é pouco.

Cada alma é uma escada para Deus,

Cada alma é um corredor-Universo para Deus,

Cada alma é um rio correndo por margens de Externo

Para Deus e em Deus com um sussurro soturno.

Sursum corda! Erguei as almas! Toda a Matéria é

Porque Matéria e Espírito são apenas nomes confusos

Dados à grande sombra que ensopa o Exterior em sonho

E funde em Noite e Mistério o Universo Excessivo!

Sursum corda! Na noite acordo, o silêncio é grande,

As coisas, de braços cruzados sobre o peito, reparam

Com uma tristeza nobre para os meus olhos abertos

Que as vê como vagos vultos nocturnos na noite negra.

Sursum corda! Acordo na noite e sinto-me diverso.

Todo o Mundo com a sua forma visível do costume

Jaz no fundo dum poço e faz um ruído confuso,

Escuto-o, e no meu coração um grande pasmo soluça.

Sursum corda! Ó Terra, jardim suspenso, berço

Que embala a Alma dispersa da humanidade sucessiva!

Mãe verde e florida todos os anos recente,

Todos os anos vernal, estival, outonal, hiemal,

Todos os anoscelebrando às mancheias as festas de

Num rito anterior a todas as significações,

Num grande culto em tumulto pelas montanhas e os

Grande coração pulsando no peito nu dos vulcões,

Grande voz acordando em cataratas e mares,

Grande bacante ébria do Movimento e da Mudança,

Em cio de vegetação e florescência rompendo

Teu próprio corpo de terra e rochas, teu corpo submisso

À tua própria vontade transtornadora e eterna!

Mãe carinhosa e unânime dos ventos, dos mares, dos

Vertiginosa mãe dos vendavais e ciclones,

Mãe caprichosa que faz vegetar e secar,

Que perturba as próprias estações e confunde

Num beijo imaterial os sóis e as chuvas e os ventos!

Sursum corda! Reparo para ti e todo eu sou um hino!

Tudo em mim como um satélite da tua dinâmica íntima

Volteia serpenteando, ficando como um anel

Nevoento, de sensações reminescidas e vagas,

Em torno ao teu vulto interno, túrgido e fervoroso.

Ocupa de toda a tua força e de todo o teu poder quente

Meu coração a ti aberto!

Como uma espada traspassando meu ser erguido e

Intersecciona com meu sangue, com a minha pele e os

Teu movimento contínuo, contíguo a ti própria sempre.

Sou um monte confuso de forças cheias de infinito

Tendendo em todas as direçcões para todos os lados do

A Vida, essa coisa enorme, é que prende tudo e tudo une

E faz com que todas as forças que raivam dentro de mim

Não passem de mim, não quebrem meu ser, não partam

Não me arremessem, como uma bomba de Espírito que

Em sangue e carne e alma espiritualizados para entre

Para além dos sóis de outros sistemas e dos astros

Tudo o que há dentro de mim tende a voltar a ser tudo.

Tudo que há dentro de mim tende a despejar-me no

No vasto chão supremo que não está em cima nem em

Mas sob as estrelas e os sóis, sob as almas e os corpos

Por uma oblíqua posse dos nossos sentidos intelectuais.

Sou uma chama ascendendo, mas ascendo para baixo

Ascendo para todos os lados ao mesmo tempo, sou um

De chamas explosivas buscando Deus e queimando

A crosta dos meus sentidos, o muro da minha lógica,

A minha inteligência limitadora e gelada.

Sou uma grande máquina movida por grandes correias

De que só vejo a parte que pega nos meus tambores,

O resto vai para além dos astros, passa para além dos sóis,

E nunca parece chegar ao tambor donde parte...

Meu corpo é um centro dum volante estupendo e infinito

Em marcha sempre vertiginosa em torno de si,

Cruzando-se em todas as direções com outros volantes,

Que se entrepenetram e misturam, porque isto não é

Mas não sei onde espacial de uma outra maneira-Deus.

Dentro de mim estão presos e atados ao chão

Todos os movimentosque compõem o universo,

A fúria minuciosa e dos átomos,

A fúria de todas as chamas, a raiva de todos os ventos,

A espuma furiosa de todos os rios, que se precipitam.

A chuva como pedras atiradas de catapultas

De enormes exércitos de anões escondidos no céu.

Sou um formidável dinamismo obrigado ao equilíbrio

De estar dentro do meu corpo, de não transbordar da

Ruge, estoira, vence, quebra, estrondeia, sacode,

Freme, treme, espuma, venta, viola, explode,

Perde-te, transcende-te, circunda-te, vive-te, rompe e foge,

Sê com todo o meu corpo todo o universo e a vida,

Arde com todo o meu ser todos os lumes e luzes,

Risca com toda a minha alma todos os relâmpagos e

Sobrevive-me em minha vida em todas as direcções!

Uma vontade física de comer o universo

Toma às vezes o lugar do meu pensamento...

Uma fúria desmedida

A conquistar a posse como que observadora

Dos céus e das estrelas

Persegue-me como um remorso de não ter cometido

Como quem olha um mar

Olho os que partem em viagem...

Olho os comboios como quem os estranha

Grandes coisas férreas e absurdas que levam almas,

Que levam consciências da vida e de si-próprias

Para lugares verdadeiramente reais,

Para os lugares que - custa a crer - realmente existem

Não sei como, mas é no espaço e no tempo

E têm gente que tem vidas reais

Seguidas hora a hora como as nossas vidas...

Ah, por uma nova sensação física

Pela qual eu possuísse o universo inteiro

Um uno tacto que fizesse pertencer-me,

A meu ser possuidor fisicamente,

O universo com todos os seus sóis e as suas estrelas

E as vidas múltiplas das suas almas...

Toda a gente é interessante se a gente souber ver toda a

Que obra-prima virtual cada cara que existe!

Que expressões em todas, em tudo!

Que extraordinário perfil qualquer perfil!

Vista de frente, que cara qualquer cara!

Os gestos humanos de cada qual, que humanos os gestos!

Que somos nós? Navios que passam um pelo outro na

Cada um a vida das linhas das vigias iluminadas

E cada um sabendo do outro só que há vida lá dentro e

Navios que se afastam ponteados de luz na treva,

Cada um indeciso diminuindo para cada lado do negro

Tudo mais é a noite calada e o frio que sobe das águas.

Mas eu não tenho problemas; tenho só mistérios.

Todos choram as minhas lágrimas, porque as minhas

Todos sofrem no meu coração, porque o meu coração

Não tenho sinceridade nenhuma que te dar.

Se te falo, adapto instintivamente frases

A um sentido que me esqueço de ter.

O melodioso sistema do Universo,

O grande festival pagão de haver o sol e a lua

E a titânica dança das estações

E o ritmo plácido daseclípticas

Mandando tudo estar calado.

E atender apenas ao brilho exterior do universo.

O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo.

O que há é pouca gente para dar por isso.

óóóó-óóóóóóóóó-óóóóóóóóóóóóóó

(O vento lá fora).

Ai, Margarida,

Se eu te desse a minha vida,

Que farias tu com ela?

- Tirava os brincos do prego,

Casava c'um homem cego

E ia morar para a Estrela.

Mas, Margarida,

Se eu te desse a minha vida,

Que diria tua mãe?

-(Ela conhece-me a fundo.)

Que há muito parvo no mundo,

E que eras parvo também.

E Margarida,

Se eu te desse a minha vida

No sentido de morrer?

- Eu iria ao teu enterro,

Mas achava que era um erro

Querer amar sem viver.

Mas Margarida,

Se este dar-te a minha vida

Não fosse senão poesia?

- Então, filho, nada feito.

Fica tudo sem efeito.

Nesta casa não se fia.

Comunicado pelo Engenheiro Naval

Sr. Álvaro de Campos em estado

de inconsciência

alcoólica.

No conflito escuro e besta

Entre a luz e o lojame,

Que ao menos luz se derrame

Sobre a verdade, que é esta:

Como é uso dos lojistas

Aumentar aos cem por cento,

Protestam contra um aumento

Que é reles às suas vistas.

E gritam que é enxovalho

Que os grandes, quando ladrões,

Nem guardem as tradições

Dos gatunos de retalho.

Luzistas, que vos ocorra

Roubar duzentos por cento!

E acaba logo o argumento

Entre a Máfia e a Camorra...

Ora porra!

Então a imprensa portuguesa é

que é a imprensa portuguesa?

Então é esta merda que temos

que beber com os olhos?

Filhos da puta! Não, que nem

há puta que os parisse.

ARRE, que tanto é muito pouco!

Arre, que tanta besta é muito pouca gente!

Arre, que o Portugal que se vê é só isto!

Deixem ver o Portugal que não deixam ver!

Deixem que se veja, que esse é que é Portugal!

Ponto.

Agora começa o Manifesto:

Arre!

Arre!

Oiçam bem:

ARRRRRE!

Não, não é cansaço...

É uma quantidade de desilusão

Que se me entranha na espécie de pensar,

É um domingo às avessas

Do sentimento,

Um feriado passado no abismo...

Não, cansaço não é...

É eu estar existindo

E também o mundo,

Com tudo aquilo que contém,

Com tudo aquilo que nele se desdobra

E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.

Não. Cansaço porquê?

É uma sensação abstracta

Da vida concreta -

Qualquer coisa como um grito

Por dar,

Qualquer coisa como uma angústia

Por sofrer,

Ou por sofrer completamente,

Ou por sofrer como...

Sim, ou por sofrer como...

Isso mesmo, como...

Como quê?...

Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço.

(Ai, cegos que cantam na rua,

Que formidável realejo

Que é a guitarra de um, e a viola do outro, e a voz dela!)

Porque oiço, vejo.

Confesso: é cansaço!...

Mas eu, em cuja alma se reflectem

As forças todas do universo,

Eu cuja reflexão emotiva e sacudida

Minuto a minuto, emoção a emoção,

Coisas antagónicase absurdas se sucedem -

Eu o foco inútil de todas as realidades,

Eu o fantasma nascido de todas as sensações,

Eu o abstrato, eu o projectado no écran,

Eu a mulher legítima e triste do Conjunto,

Eu sofro ser eu através disto tudo como ter sede sem

O descalabro a ócio e estrelas...

Nada mais...

Farto...

Arre...

Todo o mistério do mundo entrou para a minha vida

Basta!...

O que eu queria ser, e nunca serei, estraga-me as ruas.

Mas então isto não acaba?

É destino?

Sim, é o meu destino

Distribuído pelos meus conseguimentos no lixo

E os meus propósitos à beira da estrada -

Os meus conseguimentos rasgados por crianças,

Os meus propósitos mijados por mendigos,

E toda a minha alma uma toalha suja que escorregou

..........................................................................................

O horror do som do relógio à noite na sala de jantar de

Toda a monotonia e a fatalidade do tempo...

O horror súbito do enterro que passa

E tira a máscara a todas as esperanças.

Ali...

Ali vai a conclusão.

Ali, fechado e selado,

Ali, debaixo do chumbo lacrado e com cal na cara

Vai, que pena como nós,

Vai o que sentiu como nós,

Vai o nós!

Ali, sob um pano cru acro é horroroso como uma

Ali, ali, ali... E eu?

Todos julgamos que seremos vivos depois de mortos.

Nosso medo da morte é o de sermos enterrados vivos.

Queremos ao pé de nós os cadáveres dos que amámos

Como se aquilo ainda fosse eles

E não o grande maillot interior que a nascença nos deu.

Meu corpo é a minha roupa de baixo; que me importa

Que o seu carácter de lixo seja terra de jazigo

Que aqui ou ali a coma a traça orgânica toda?

Eu sou Eu.

Que tenho eu com a roupa cadáver que deixo?

Que tem o eu com as calças?

Viva eu porque estou morto! Viva!

Então não teremos nós cuecas por esse infinito fora?

O quê, o para além dos astros nem me dará outra camisa?

Bolas, deve haver lojas nas grandes ruas de Deus.

Irei vestido de astros, com o sol por chapéu de coco

No grande Carnaval do espaço entre Deus e a vida.

Entremos na morte com alegria! Caramba

O ter que vestir fato, o ter que lavar o corpo,

O ter que ter razão, similhanças, maneiras e modos;

O ter rins, fígado, pulmões, brônquios, dentes.

Cousas onde há dor e sangue e moléstias

(Merda para isso tudo!)

Estou morto, de tédio também

Eu bato, a rir, com a cabeça nos astros

Como se desse com ela num arco de brincadeira

Estendido, no carnaval, de um lado ao outro do corredor,

Eu, assombroso e desumano,

Indistinto a esfinges claras,

Vou embrulhar-me em estrelas

E vou usar oSol como chapéu de coco

Neste grande carnaval do depois de morrer.

Vou trepar, com uma mosca ou um macaco pelo sólido

Do vasto céu arqueado em mundo,

Associando a monotonia dos espaços abstractos

Com a minha presença subtilíssima.

Ora até que enfim..., perfeitamente...

Cá está ela!

Tenho a loucura exactamente na cabeça.

Meu coração estoirou como uma bomba de pataco,

E a minha cabeça teve o sobressalto pela espinha acima...

Graças a Deus que estou doido!

Que tudo quanto dei me voltou em lixo,

E, como cuspo atirado ao vento,

Me dispersou pela cara livre!

Que tudo quanto fui se me atou aos pés,

Como a sarapilheira para embrulhar coisa nenhuma!

Que tudo quanto pensei me faz cócegas na garganta

E me quer fazer vomitar sem eu ter comido nada!

Graças a Deus, porque, como na bebedeira,

Isto é uma solução.

Arre, encontrei uma solução, e foi preciso o estômago!

Encontrei uma verdade, senti-a com os intestinos!

Poesia transcendental, já a fiz também!

Grandes raptos líricos, também já por cá passaram!

A organização de poemas relativos à vastidão de cada

Também não é novidade.

Tenho vontade de vomitar, e de me vomitar a mim...

Tenho uma náusea que, se pudesse comer o universo

Com esforço, mas era para bom fim.

Ao menos era para um fim.

E assim como sou não tenho nem fim nem vida...

O mesmo Teucro duce et auspice Teucro

É sempre cras - amanhã - que nos faremos ao mar.

Sossega, coração inútil, sossega!

Sossega, porque nada há que esperar,

E por isso nada que desesperar também...

Sossega... Por cima do muro da quinta

Sobe longínquo o olival alheio.

Assim na infância vi outro que não era este:

Não sei se foram os mesmos olhos da mesma alma que

Adiamos tudo, até que a morte chegue.

Adiamos tudo e o entendimento de tudo,

Com um cansaço antecipado de tudo,

Com uma saudade prognóstica e vazia.

Ah, onde estou ou onde passo, ou onde não estou nem

A banalidade devorante das caras de toda a gente!

Ah, a angústia insuportável de gente!

O cansaço inconvertível de ver e ouvir!

(Murmúrio outrora de regatos próprios, de arvoredo

Queria vomitar o que vi, só da náusea de o ter visto,

Estômago da alma alvorotado de eu ser...

Que lindos olhos de azul inocente os do pequenito do

Santo Deus, que entroncamento esta vida!

Tive sempre, feliz ou infelizmente, a sensibilidade

E toda a morte me doeu sempre pessoalmente,

Sim, não só pelo mistério de ficar inexpressivo o orgânico,

Mas de maneira directa, cá do coração.

Como o sol doura as casas dos réprobos!

Poderei odiá-los sem desfazer no sol?

Afinal que coisa a pensar com o sentimento distraído

Por causa dos olhos de criança de uma criança...

Que noite serena!

Que lindo luar!

Que lindabarquinha

Bailando no mar!

Suave, todo o passado - o que foi aqui de Lisboa - me

O terceiro andar das tias, o sossego de outrora,

Sossego de várias espécies,

A infância sem o futuro pensado,

O ruído aparentemente contínuo da máquina de

E tudo bom e a horas,

De um bem e de um a-horas próprio, hoje morto.

Meu Deus, que fiz eu da vida?

Que noite serena!

Que lindo luar!

Que linda barquinha

Bailando no mar!

Quem é que cantava isso?

Isso estava lá.

Lembro-me mas esqueço.

E dói, dói, dói...

Por amor de Deus, parem com isso dentro da minha

O ter deveres, que prolixa coisa!

Agora tenho eu que estar à uma menos cinco

Na Estação do Rossio, tabuleiro superior - despedida

Do amigo que vai no "Sud Express" de toda a gente

Para onde toda a gente vai, o Paris...

Tenho que lá estar

E acreditem, o cansaço antecipado é tão grande

Que, se o "Sud Express" soubesse, descarrilava...

Brincadeira de crianças?

Não, descarrilava a valer...

Que leve a minha vida dentro, arre, quando descarrile! ...

Tenho desejo forte,

E o meu desejo, porque é forte, entra na substância do

Começo a conhecer-me. Não existo.

Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me

Ou metade desse intervalo, porque também há vida...

Sou isso, enfim...

Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulho de

Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim

É um universo barato.

Vai pelo cais fora um bulício de chegada próxima,

Começam chegando os primitivos da espera,

Já ao longe o paquete de África se avoluma e esclarece.

Vim aqui para não esperar ninguém,

Para ver os outros esperar,

Para ser os outros todos a esperar,

Para ser a esperança de todos os outros.

Trago um grande cansaço de ser tanta coisa.

Chegam os retardatários do princípio,

E de repente impaciento-me de esperar, de existir, de ser,

Vou-me embora brusco e notável ao porteiro que me

Regresso à cidade como à liberdade.

Vale a pena sentir para ao menos deixar de sentir.

Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa

Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que

Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;

E recìprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-

(Excepto, naturalmente, o que estava na algibeira onde

Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,

E romantismo, sim, mas devagar...).

Sinto uma simpatia por essa gente toda,

Sobretudo quando não merece simpatia.

Sim, eu sou também vadio e pedinte,

E sou-o também por minha culpa.

Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:

É estar ao lado da escala social,

É não ser adaptável às normas da vida,

Às normas reais ou sentimentais davida -

Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,

Não ser pobre a valer, operário explorado,

Não ser doente de uma doença incurável,

Não ser sedento da justiça ou capitão de cavalaria,

Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas

Que se fartam de letras porque têm razão para chorar

E se revoltam contra a vida social porque têm razão

Não: tudo menos ter razão!

Tudo menos importar-me com a humanidade!

Tudo menos ceder ao humanitarismo!

De que serve uma sensação se há uma razão exterior

Sim ser vadio e pedinte, como eu sou,

Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:

É ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,

É ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso

Tudo mais é estúpido como um Dostoiewski ou um

Tudo mais é ter fome ou não ter que vestir.

E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente

Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso

Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,

E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.

Coitado do Álvaro de Campos!

Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!

Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!

Coitado dele, que com lágrimas(autênticas) nos olhos,

Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,

Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco,

Pobre que não era pobre, que tinha olhos tristes por

Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se

Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!

E, sim, coitado dele!

Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,

Que são pedintes e pedem,

Porque a alma humana é um abismo.

Eu é que sei. Coitado dele!

Que bom poder-me revoltar num comício dentro da

Mas até nem parvo sou!

Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.

Não tenho, mesmo, defesa nenhuma; sou lúcido.

Não me queiram converter a convicção: sou lúcido.

Já disse: sou lúcido.

Nada de estéticas com coração: sou lúcido.

Merda! Sou lúcido.

A alma humana é porca como um cu

E a Vantagem dos canalhas pesa em muitas imaginações.

Meu coração desgosta-se de tudo com uma náusea do

A Távola Redonda foi vendida a peso,

E a biografia do Rei Artur, um galante escreveu-a...

Mas a sucata da Cavalaria

Ainda corria nossas almas, como um perfil Distinto.

Está frio.

Ponho sobre os ombros o capote que me lembra um

O chale que minha tia me punha aos ombros na infância

Mas os ombros da minha infância sumiram-se muito

E o meu coração da infância desceu-se muito, para

Sim, está frio...

Está frio em tudo que sou, estáfrio...

Minhas próprias ideias têm frio, como gente velha...

E o frio que eu tenho das minhas ideias terem frio é

Engelho o capote à minha volta...

O Universo da gente... a gente... as pessoas todas!...

A multiplicidade da humanidade misturada,

Sim, aquilo a que chamamos a vida, como se só

Sim, a vida...

Meus ombros descaem tanto que o capote resvala...

Querem consertar melhor? Puxem-me para cima o

Ah, parte a cara à vida!

Liberta-te com estrondo no sossego de ti!

Na ampla sala de jantar das tias velhas

O relógio tictaqueava o tempo mais devagar.

Ah o horror da felicidade que se não conheceu

Por se ter conhecido sem se conhecer,

O horror do que foi porque o que está está aqui.

Chá com torradas na província de outrora

Em quantas cidades me tens sido memória e choro!

Eternamente criança,

Eternamente abandonado,

Desde que o chá e as torradas me faltaram no coração.

Aquece, meu coração!

Aquece ao passado,

Que o presente é só uma rua onde passa quem me

Névoas de todas as recordações juntas

(A institutrice loura dos jardins pacatos)

Recordo tudo a ouro de sol e papel de seda...

E o arco da criança passa vago por quase rente a mim...

Não ter emoções, não ter desejos, não ter vontades,

Mas ser apenas, no ar sentido das coisas

Uma emoção abstracta com asas de pensamento,

Não ser desonesto nem não desonesto, separado ou

Nem igual a outros, nem diferente dos outros,

Vivê-los em outrem, separar-se deles

Como quem, distraído, se esquece de si...

O que é haver ser, o que é haver seres, o que é haver

O que é haver vida em plantas e bichos e gente,

E cousas que a gente constrói -

Maravilhosa alegria de cousas e de seres -

Perante a ignorância em que estamos de como isto tudo

Mas não é só o cadáver

Essa pessoa horrível que não é ninguém,

Essa novidade abísmica do corpo usual,

Esse desconhecido que aparece por ausência na pessoa

Esse abismo cavado entre vermos e entendermos -

Não é só o cadáver que dói na alma com medo,

Que põe um silêncio no fundo do coração,

As cousas usuais externas de quem morreu

Também perturbam a alma, mas com mais ternura no

Sejam de um inimigo,

Quem pode ver sem saudade a mesa a que ele sentava,

A caneta com que escrevia? Quem pode ver sem uma

O casaco do mendigo morto, onde ele metia as mãos

Os brinquedos, horrivelmente arrumados já, da criança

A espingarda do caçador desaparecido sem ela para

Tudo isso me pesa de repente no entendimento

E uma saudade do tamanho damorte apavora-me a

A plácida face anónima de um morto.

Assim os antigos marinheiros portugueses,

Que temeram, seguindo contudo, o mar grande do Fim,

Viram, afinal, não monstros nem grandes abismos,

Mas praias maravilhosas e estrelas por ver ainda.

O que é que os taipais do mundo escondem nas

Desfraldando ao conjunto fictício dos céus estrelados

O esplendor do sentido nenhum da vida...

Toquem num arraial a marcha fúnebre minha!

Quero cessar sem consequências...

Quero ir para a morte como para uma festa ao

*

. Ainda não amava e já amava amar. VOLTAR

. Variante: 3o verso - Perdeu o lugar do amor por não ter casaco bom dentro das simpatias. VOLTAR.

. Coração ao alto! VOLTAR

. Referência a "Nil desperandum Teucro duce et auspice Teucro".(Horácio, Odes, I, 7, 27). "Não há por que desesperar tendo Teucro como capitão e como protetor." Horácio faz alusão à lenda de Teucro, filho de Telamão, rei da Salamina, que o impediu de desembarcar à sua volta de Troia por não ter impedido o suicídio do irmão, Ájax. O príncipe consola com estas palavras aqueles que o acompanham ao exílio. VOLTAR.

CANÇÃO DO MOCHO(AEROPLANO AO NATURAL)

Pio!

D'Annunzio foi pra Fiúme

Pio!

D'Annunzio foi de Fiúme.

Pio?

O que foi d'Annunzio fazer a Fiúme?

Pia

O que é d'Annunzio ou Fiúme?

Saudação a todos quantos querem ser felizes:

Saúde e estupidez!

............................................

Isto de ter nervos

Ou de ter inteligência

Ou até de julgar que se tem uma coisa ou outra

Há-de acabar um dia...

Há-de acabar com certeza

Se os governos autoritários continuarem.

*

O FUTURO

Sei que me espera qualquer cousa

Mas não sei que cousa me espera.

Como um quarto escuro

Que eu temo quando creio que nada temo

Mas só o temo, por ele, temo em vão.

Não é uma presença: é um frio e um medo.

O mistério da morte a mim o liga

Ao triste fim do meu poema.